Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O jornalismo e a ficção

MODELO DE COBERTURA

Ivo Lucchesi (*)

Pelo desenrolar dos acontecimentos, o século 21 parece colocar na pauta das amplas discussões um tema que, até então, envolvia apenas seletos setores avançados da Física. A depender de como algumas coberturas jornalísticas tratam os fatos, será inevitável que, cada vez mais, físicos sejam contratados para atuarem no campo da comunicação. Pensando bem, aliás, ao lado de físicos deverão figurar dramaturgos, romancistas e cineastas. Consideradas as diferenças fundamentais entre eles, algo lhes é comum e familiar: a realidade na dupla dimensão entre o visível e o invisível, o concreto e o abstrato.

O jornalismo tradicional sempre fez do rigor da informação o fundamento de sua virtude e justificativa. Não tem sido, porém, essa a face exposta nos últimos tempos. Por inconsistência, limitação ou imperativos de origem obscura, o fato é que o regime da informação tem cedido largos espaços ao avanço da imaginação da qual tanto se nutre o mundo da ficção. Vamos ignorar, em nome de alguma objetividade maior, acontecimentos anteriores ao épico-dramático 11 de setembro de 2001, para nos concentrarmos nos episódios a partir da data citada.

"Cadáver-sósia"

Das ruínas do World Trade Center resultou a figura mítica de Osama bin Laden, cujo atributo, entre outros, seria o de liderar a poderosa organização do terrorismo avançado internacional, al-Qaeda. Muito sobre ambos foi escrito e publicado. Nada de mais consistente até hoje se sabe. Portentosa invasão foi articulada para extrair das cavernas sombrias e áridas do Afeganistão aquele que profanara um dos mais singelos símbolos do poder americano. Bombas, satélites, mísseis de alta precisão… e nada. O fantasma de Osama continua pairando, como ser volátil, no reino encantado da imaginação: tornou-se personagem de ficção.

A respeito da organização, vez por outra, surge identificado e preso um agente apontado como um dos cabeças. Todavia, a exemplo de uma "entidade", da al-Qaeda não se tem notícia quanto à sua queda. Em nome do obstinado projeto de "purificação", sob a legenda cinematográfica da "Justiça Infinita", entra em cartaz a "maldição de Saddam". Novamente, alta tecnologia, mísseis de absoluta resolução ? até agora, foram lançados 750, o equivalente à módica cifra de US$ 750 milhões ? em nome do extermínio daquele que representa a saga do horror. São prometidas intensas emoções, cenários caríssimos são montados e elencos de prestígio contratados. Tudo pronto. Têm início as filmagens. Anuncia-se no limiar do filme que o "gênio do mal" fora abatido: ferido gravemente ou morto. Nada. Nenhuma prova para concretizar a mensagem. Ali começava a construção narrativo-mítica de um novo signo da imaterialidade do real a somar-se aos demais.

Saddam, numa ponta, e armas químicas e biológicas, na outra, formam a motivação da atual "guerra", de acordo com o ingênuo discurso oficial. Bem, seja qual for o desfecho ? que, aliás, não é lá difícil de se deduzir ? textos ficcionais estão preparados. Caso não encontrem verdadeiramente as tais armas, nada impede que "operações artificiais" se encarreguem de apresentá-las ao mundo. Afinal de contas, que as inventou e as vendeu é o mesmo que agora desesperadamente as procura; portanto, não precisa procurar o que já tem. Bastará apenas deslocar do lugar onde estão para o lugar desejado. Vitória para a ficção. Quanto à figura do líder (ou do tirano), nenhum problema. Como existe a versão sobre os "sósias" de Saddam (inicialmente eram três, depois aumentaram para cinco e, desta feita, já se fala em dez), qualquer "cadáver-sósia" poderá ser apresentado como o "oficial". Outra vitória da ficção. Reais mesmo são os corpos de correspondentes internacionais abatidos nas estéreis areias do deserto, em nome da "verdade oculta"…

Ética e verdade

Já foi amplamente abordado ? tema da última edição do programa Observatório da Imprensa (rede pública de TV, 1/4/03) ? que o presente conflito serve também como marco para um novo modelo de cobertura, à luz das recentes tecnologias da linguagem, conforme destacaram alguns integrantes do programa citado. Contudo, nunca a desinformação e a manipulação foram tão freqüentes. Há algo de estranho na apologia às supostas conquistas tecnológicas da informação que precisa ser analisado. Embarcar nas seduções "teóricas" de um Pierre Lévy pode custar alto preço.

O que se deseja aqui pontuar é que, no novo mundo do século 21, a narrativa sobre os grandes e impactantes acontecimentos não está mais sob o controle da informação. Na essência da redefinição geopolítica do mundo, o universo da linguagem como representação da realidade passa por um novo conceito. É o signo da desreferencialidade. Tal fenômeno não é de pouco alcance. Em seu interior, consta um novo elenco de temas a exigir profundo reexame a respeito do pacto entre linguagem, ética e verdade. O desafio não é pequeno como menor não haverá de ser seu efeito transformador. Ressurge, com todo o vigor, o "fantasma da ópera"…

(*) Ensaísta, articulista, doutorando em Teoria Literária pela UFRJ, professor-titular da Facha, co-editor e participante do programa Letras & Mídias (Universidade Estácio de Sá), exibido mensalmente pela UTV/RJ