Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O jornalismo independente de Caros Amigos: um processo de contra-hegemonia

A PRODUÇÃO DA NOTÍCIA

Marcelo Barbosa Câmara (*)

Parte 1

Introdução

Tornar público ou não um determinado fato ou idéia, eis um dilema da política nos dias de hoje. Para tanto só a mídia e principalmente o jornalismo são capazes de proceder a esta publicidade. Portanto, o entendimento das formas de se construir a notícia é fundamental para se saber que publicidade as empresas de jornalismo estão produzindo e oferecendo aos seus consumidores.

Este artigo, que tem como base pesquisa realizada para formulação de dissertação de mestrado [sob orientação da professora Vera Lúcia M. Chaia e com o título de "Caros Amigos: Esfera Pública, Política e Jornalismo Independente (1997-2002)"] defendida na PUC/SP em março de 2002, buscará discutir estas questões e uma forma de se fazer jornalismo que aqui chamarei de jornalismo independente, sua forma especifica de construir reportagens e o que sua comparação com a produção jornalística das grandes empresas de jornalismo pode revelar na relação entre mídia e política. Dado o espaço exíguo deste artigo, a complexidade e o número de temáticas criadas na pesquisa levam a que se proceda a um breve resumo do que foi levantado a respeito de Caros Amigos. Porém, procurarei demonstrar o que de mais relevante há na pesquisa, que é a análise da forma de produção da notícia pelos que fazem a revista.

Esfera Pública: uma idéia ainda possível?

Têm-se que é pela mídia a forma possível de obter informações, numa sociedade de massas, acerca do que acontece na esfera da política nos dias de hoje. Mais especificamente é nas diversas formas de se fazer jornalismo em nossos tempos que se encontram ou se deveria encontrar subsídios para que o cidadão pudesse se informar e a partir das informações e analises veiculadas por essas diversas mídias tomar suas decisões; que vão desde o voto até o fato de concordar ou não com políticas econômicas, programas sociais elaborados e postos em pratica pelos que governam. Assim, com o jornalismo veiculado via internet, televisão, rádio, jornais e revistas se formaria uma gama suficientemente diversificada de formas de abordar a notícia, com conteúdos diversos, de maneira a ilustrar o cidadão com opiniões capazes de lhe dar condições de efetivamente tomar decisões. A mídia e o jornalismo propriamente dito constituem-se desta forma peças fundamentais na formação da Esfera Pública.

Utilizando-se o conceito de Esfera Pública analisado por Habermas (1984), estaremos nos referindo ao espaço em que seriam efetivados os debates a respeito das decisões a serem tomadas no direcionamento de uma racionalização possível dentro da sociedade. Porém, o fato de este conceito ainda perdurar e ainda constituir-se como algo crível é fato que no mínimo deve merecer reflexão.

As transformações por que passa a Esfera Pública dentro da perspectiva de Habermas podem ser divididas em três momentos: o primeiro, no qual haveria uma circunscrição dos interesses privados da nobreza no tocante à construção da Esfera Pública; o segundo, constituído pela Esfera Pública Burguesa, no qual a racionalidade e a reflexão a respeito dos interesses da burguesia seriam os parâmetros de sua construção; e, por último, um terceiro momento, no qual se processaria uma refeudalização da Esfera Pública. Novamente seriam interesses privados, agora dos que detêm os meios de comunicação de massa (MCM) ou que têm influência sobre os MCM, os que delimitam o que e como deve ser feita a publicidade das coisas.

Já delimitando a diferença entre a racionalidade e o consenso que a laboriosa exposição de idéias formava no tempo da Esfera Pública Burguesa, Habermas observará que o que acontece nos tempos dos MCM é a formação de um "consenso fabricado", assinalando: "Naturalmente, o consenso fabricado não tem a sério muito em comum com a opinião pública, com a concordância final após um laborioso processo de recíproca ?Aufklärung?, pois o ?interesse geral?, à base do qual é que somente seria possível chegar a uma concordância racional de opiniões em concorrência aberta, desapareceu exatamente à medida que interesses privados privilegiados a adotaram para si a fim de auto-representarem através da publicidade" (Habermas, 1984:228).

Assim a importância de se colocar o conceito de refeudalização da Esfera Pública enquanto base para o entendimento do papel dos MCM na publicidade e no tipo de publicidade que estes meios se prestam a fazer se coloca como atual na reflexão entre as relações entre a mídia e a política.

Se nos voltarmos para cobertura jornalística tomando como exemplo qual abordagem as grandes empresas de jornalismo no Brasil adotam, via de regra, no que se refere à política poderemos observar qual consenso é criado na sociedade a partir da publicidade destas empresas.

A formação da agenda política brasileira que veio a dar o tom dos governos de Fernando Collor a Fernando Henrique Cardoso demonstra o poder que as grandes empresas de jornalismo têm, desde apoiar candidatos, caso de Fernando Collor e o apoio que lhe foi dado principalmente pela Rede Globo de Televisão, e de ser o ponto fundamental para a absorção pela sociedade [sobre a formação da hegemonia neoliberal e o papel da imprensa no período mencionado, consultar Francisco Fonseca em Divulgadores e vulgarizadores: a grande imprensa e a constituição da hegemonia ultraliberal no Brasil (2001)] dos pressupostos ideológicos do que fundamentou a forma de governar destes presidentes. Nesse sentido, "o fenômeno político eleitoral em que se transformou a eleição de Collor à Presidência, seu processo de impeachment, a construção do imaginário popular com os pressupostos ideológicos do neoliberalismo, a implantação do Plano Real, a candidatura de FHC e seu governo, que contou e conta com uma cobertura específica por parte das grandes empresas de jornalismo, são dados que revelam o caráter da relação entre mídia e política e a construção de uma agenda específica advinda desta relação" (Câmara, 2002: 16).

A publicidade dos temas que fariam parte desta agenda neoliberal apareceria nas grandes empresas de jornalismo na mesma medida em que outras formas de se pensar a política e a organização da sociedade ou desapareceriam ou seriam tidas como incapazes de se adequarem à realidade. A realidade seria, portanto o que é possível de se conceber partindo-se dos dogmas neoliberais. Os que se opuseram verdadeiramente ao neoliberalismo no Brasil foram execrados pelas grandes empresas de jornalismo: é o caso do MST e de Itamar Franco, deixando, é claro, de lado as diferenças entre o que representam do ponto de vista político o MST e o ex-presidente da República [sobre o tratamento dado pela imprensa a estas oposições ao governo neoliberal especialmente na era FHC, ver Marcelo B. Câmara em "Caros Amigos: Esfera Pública e Jornalismo Independente (1997-2002)" (2002)].

Por outro lado, os que não procederam a oposição tão veemente foram consideravelmente agraciados com a simpatia de pelo menos parte das grandes empresas de jornalismo ou tiveram sua imagem retocada, ou seja, já não eram bichos papões. Assim foram as matérias da Veja que retratavam o PT light ou cor-de-rosa, nos tempos de candidatura de Marta Suplicy; em matéria mais recente, a revista República, hoje com o nome de Primeira Leitura, tece elogios ao caráter conciliatório do que chama de PT de Lula e Zé Dirceu [em 11 de outubro de 2000, a revista Veja publica matéria na qual observa o crescimento eleitoral do Partido dos Trabalhadores, colocando como um dos principais fatores daquele crescimento o abandono dos ideais socialistas e a diminuição da influência dos sindicalistas no PT. Em agosto de 2001, a então República enaltece as virtudes do PT moderado e não-revolucionário dirigido por nomes como Lula e Zé Dirceu].

O apoio dado durante mais de uma década à realização e à divulgação de políticas neoliberais não conheceu grandes dissonâncias por parte das grandes empresas de jornalismo. Vez ou outra uma certa crítica, ao se referirem a alguma crise causada pelas próprias políticas econômicas por eles apoiadas. Instituições como o FMI (Fundo Monetário Internacional) não conheceram grandes questionamentos por parte desta mídia, e são vez ou outra criticadas de forma pontual; questões como a Alca (Área de Livre Comércio das Américas) e seu principal interessado, os EUA, também podem merecer crítica vez ou outra sem que os fundamentos das políticas econômicas apoiadas sejam abalados por críticas mais profundas e contundentes [em edição de 21 de agosto de 2002 a IstoÉ, em matéria de capa, critica a política econômica de Bush e o provável uso que o presidente americano fará da crise econômica brasileira quando da negociação para implantação da Alca].

Em vez de constituir-se em forma de dissenso ou fonte de informação diversificada ao leitor, a abordagem que alguns temas passam a perceber dentro das grandes empresas de jornalismo denotam, isto sim, a incapacidade de que estas empresas foram portadoras durante todo o período de consolidação das políticas neoliberais no país. Incapazes, é claro, se pensarmos em informações e análises da política que dêem margem ao entendimento do processo político e na formação de um consenso formado num amplo processo de enfrentamento de idéias na disputa política. Assim, ao negarem a própria conseqüência de seu fiel apoio às políticas econômicas de nossos governos neoliberais, atestam que não deram ao público-leitor a oportunidade de entender que a implantação daquelas políticas cedo ou tarde resultaria em algo semelhante ao atual estado de coisas da economia brasileira, como relata a matéria citada de IstoÉ.

Se algumas empresas de jornalismo divergem pontualmente de um ou outro ponto acerca da gestão da economia brasileira, é certo também que não há nas grandes empresas de jornalismo nada que possa demonstrar que dentre elas haja grande divergência a ponto de que aconteça uma quebra da hegemonia do discurso neoliberal na produção de suas notícias.

O jornalismo de Caros Amigos

Se nos últimos anos a produção das grandes empresas de jornalismo vêm se pautado pela hegemonia do discurso neoliberal, algumas iniciativas têm caminhado no sentido de se opor a este processo. A principal publicação no campo da contra-hegemonia ao neoliberalismo tem sido a da Editora Casa Amarela, a revista mensal Caros Amigos. E, mais do que somente oposição ao ideário neoliberal, Caros Amigos pauta-se pelo inverso, em sua forma de fazer jornalismo, do que se pratica nas grandes empresas.

Pluralidade de idéias, formas diversas de se pensar a política e a sociedade nas paginas da revista. Precisamente os que ficaram de fora dos MCM nos tempos de neoliberalismo ou ainda os que estão mais próximos do campo democrático-popular são, via de regra, os que colaboram e fazem Caros Amigos.

Esta forma de se fazer jornalismo veio de algo que vai além da fundação da revista, em 1997. A preocupação com um jornalismo independente e sem concessões editoriais a anunciantes ou outras formas de pressão estava presente nos tempos da Revista Realidade e dos chamados, na década de 70, alternativos, como Bondinho e Ex.. Sérgio de Souza, atual editor da Caros Amigos, Roberto Freire [Roberto Freire desligou-se de Caros Amigos no início de 1999.], um dos fundadores e idealizadores da revista, Mylton Severiano, Gilberto Felisberto Vasconcelos, Walter Firmo são exemplos de jornalistas [sobre os jornalistas de Caros Amigos ver também "Caros Amigos: Esfera Pública, Política e jornalismo Independente (1997-2002)"] que, a par de suas posturas ideológicas, não necessariamente convergentes, cultivam o jornalismo independente e a produção jornalística que concebe que posturas ideológicas diversas possam ser divulgadas, coisa inconcebível nas grandes empresas de jornalismo.

Na caracterização do que seja um jornalismo independente deve-se levar em conta algumas questões que considero fundamentais na diferenciação entre o jornalismo independente e o jornalismo praticado pelas grandes empresas de jornalismo, que se pode perceber no levantamento e na análise de seus elementos.

1) O fato de que formas diversas de se conceber a cultura, a política e a organização da sociedade são passíveis de serem refletidas e divulgadas numa mídia, fato que acontece no jornalismo de Caros Amigos;

2) Os anunciantes e a relação que mantêm com as empresas de jornalismo via de regra delimitam os espaços de liberdade na produção da notícia;

3) As fontes escolhidas ou preteridas ao se produzir a notícia delimitam a abordagem.

O estudo deste jornalismo diverso do produzido pelas grandes mídias se mostrou um caminho para o entendimento das relações entre mídia e política.

A construção de um jornalismo independente

Percorrendo as páginas de Caros Amigos desde seu primeiro número até o número 60 (trata-se de publicação mensal) observou-se a inexistência de anunciantes que corriqueiramente estão presentes de maneira perene nas grandes revistas de circulação nacional. Para sermos mais exatos, estes anunciantes apareceram e logo desapareceram, como que por encanto, provavelmente ao perceberem o conteúdo editorial da revista. A indagação a ser feita seria exatamente esta: por que não anunciar em Caros Amigos se seu público-leitor, como comprovou pesquisa da própria revista em 1997, tem poder aquisitivo semelhante ao dos leitores de IstoÉ, República ou Carta Capital?

"De fato, nosso leitor consome tanto quanto o de outras revistas de circulação nacional, mas no Brasil é pecado mortal fazer jornalismo crítico. Ser independente, quer dizer, não prestar favores editoriais também merece condenação. E falar que é de esquerda, então, é sacrilégio, ou seja, ainda há ? e muitos ? publicitários e empresários para os quais somos comedores de criancinhas e, portanto, não merecemos existir." (Entrevista realizada em 15/6/2000, com Sérgio de Souza, editor de Caros Amigos).

A falta de anunciantes não é novidade em publicações que discordam da perspectiva e do caráter monocórdio da notícia e das analises das grandes empresas de jornalismo. Em sua dissertação de mestrado, Célia Costa Cardoso (1995) também observa a escassez de anunciantes nos chamados alternativos dos tempos do regime militar. Naquele período jornais como Movimento, além da censura do regime, tinham que lidar com a escassez de anunciantes, fato que denota que uma linha editorial não-engajada ao caráter antipopular da estrutura da sociedade brasileira já não agradava parcela considerável do empresariado brasileiro Isso não é portanto exclusividade da Caros Amigos e dos tempos de hoje.

Nesses anos de existência, a revista vem sendo bancada às custas de pequenos anunciantes e de anúncios das prefeituras de Belém, Santo André e Acre, além, é claro, da venda em bancas e assinaturas. Porém, o fato de abrir espaço para anúncios das prefeituras do Partido dos Trabalhadores não alterou a linha editorial da revista e nem impediu que Caros Amigos empreendesse, em repetidas oportunidades, severas críticas ao PT. Naturalmente que, mesmo não tendo sido oposição ferrenha à política neoliberal dos tempos de FHC, o PT conta com eleitores e militantes que se identificam com boa parte da linha editorial da revista, fato que pode demonstrar, mais do que uma postura política de aguda oposição ao regime por parte do PT, uma vontade de vincular sua imagem à da revista e ao caráter democrático popular de Caros Amigos.

Na construção de um jornalismo independente, não é a falta de anunciantes que caracteriza este modo de se produzir a notícia, mas o fato de não prestar favores editoriais a anunciantes ou a grupos políticos, podendo formular críticas até aos próprios anunciantes da revista, caso de Caros Amigos e o PT. A própria relação do PT com a revista e sua linha editorial constitui-se exemplo de postura democrática também do partido enquanto anunciante, posto que na revista circulam, e não raramente, além de críticas, opiniões de políticos de outros partidos e de colaboradores afinados com formas de conceber a política que divergem das do PT.

Apesar de fundamental, a relação com anunciantes não é a única característica do jornalismo independente. A escolha das fontes também compõe o tipo de postura editorial que um grupo jornalístico possa vir a ter. Não se faz necessária uma observação exaustiva da produção jornalística das grandes empresas do setor para se comprovar o tipo de fonte a que recorrem em praticamente todas as matérias. De maneira indiferente, não importando a mídia que escolhermos, internet, televisão ou jornalismo escrito, são as opiniões dos que estão no circulo de poder que embasam as matérias destas mídias. Portanto, a autoridade suprema em Previdência Social é o ministro desta pasta; se abordarem o tema moeda é Armínio Fraga, atual presidente do Banco Central, a grande fonte. E assim é que se pretende, segundo o discurso destas mídias, ser imparcial e informar ao cidadão-leitor.

O critério de escolha de reportagens, colaboradores e entrevistados em Caros Amigos já denota as diferenças entre as fontes do jornalismo das grandes empresas e do jornalismo independente: "(…) O critério principal é o entrevistado ser absolutamente independente de forma a poder criticar até o próprio meio em que atua. No caso das reportagens, a preocupação é mostrar exemplos edificantes, em alguns casos; em outros, revelar coisas que não são reveladas na imprensa; em outros ainda registrar o universo das periferias ou do campo, exatamente onde vive a maioria da população, com seus problemas e suas virtudes." (Entrevista realizada em 15/6/2000, com Sérgio de Souza).

Se seguidas, as afirmações de Sérgio de Souza, editor de Caros Amigos, a linha editorial da revista já se diferenciaria totalmente das grandes empresas de jornalismo. Neste sentido, acompanhando as edições mensais e as especiais da revista, num total de mais de 70 números, pude testar as afirmações do editor da revista, formando o que seriam as temáticas e observando o enquadramento [sobre o conceito de enquadramento ver Mauro Porto em "Muito além da informação ? mídia, cidadania e o dilema democrático ? Comunicação & informação". São Paulo, em Perspectiva, revista da Fundação Seade. Volume 12/n? 4/out-dez/1998 pág.17] dado à notícia no período pesquisado.

Temáticas e enquadramento da notícia

Se a mídia tem o poder de permitir ou não que certos temas venham a ser públicos, também tem o poder de dar a forma pela qual os consumidores de notícias conhecerão movimentos sociais, as formas de se conceber a política, a cultura e a sociedade.

Nos números pesquisados de Caros Amigos, dois movimentos sociais, principalmente, constituíram temáticas especificas da revista, o que demonstra a forma como trata certos temas e dando a oportunidade de comparação entre o enquadramento de Caros Amigos e o de outras revistas não-independentes.

Grande demônio dos tempos de FHC, tanto para o grupo político à volta do projeto político do presidente como para absolutamente todo o jornalismo não-independente, o MST teve em Caros Amigos o único espaço possível numa mídia direcionada a um público mais amplo, e não somente a militantes e simpatizantes do movimento, para que suas formas de organização, seus objetivos políticos e sua luta pela reforma agrária pudessem ser divulgadas.

Se for necessária a publicidade ampla do que acontece na sociedade, Caros Amigos deu ao MST a oportunidade de se mostrar ao público-leitor da revista como um movimento que vai muito além do universo pontual das invasões. "A abordagem de Caros Amigos no que se refere às questões relativas ao MST difere da mídia em geral não somente em relação às denuncias sobre a perseguição política empreendida pelo Estado brasileiro e pela mídia em geral, mas também por buscar esclarecer o leitor quanto aos objetivos e às conquistas já obtidas no campo através da luta e da organização do movimento." (Câmara, 2002:115).

A primeira de uma série de reportagens sobre o MST foi "Pontal: Do grande grilo aos Sem-Terra", que na edição de maio de 1997 de Caros Amigos reconstituía a história da luta pela terra na região do Pontal do Paranapanema, no interior do Estado de São Paulo, até o surgimento, em março de 1984, do Movimento dos Sem-Terra no Pontal do Paranapanema.

A marcha dos sem-terra a Brasília, em 1999, foi retratada na edição de novembro daquele ano. A organização da marcha [Caros Amigos, naquela edição, relata que a marcha foi iniciativa do Consulta Popular, movimento que nasceu em 1997, e que conta com a participação do MST, da Central dos Movimentos Populares, da Articulação Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais, do Movimento de Pequenos Agricultores, do Movimento dos Atingidos pelas Barragens, das pastorais sociais da CNBB e de sindicalistas (CA n? 32, nov.1999:.28.)], os objetivos do movimento com a organização da manifestação e as análises que os integrantes do MST fazem sobre o atual regime político e também dos partidos de esquerda do Brasil são temas da reportagem. Na oportunidade não faltaram críticas contundentes à postura política do PT e a sua opção pela via eleitoral, não dando a devida atenção às lutas populares.

A denúncia da violência dos que estão à testa do Estado e dos latifundiários contra o movimento também foram temas de reportagens da revista. A edição especial "Massacre de Eldorado dos Carajás", de novembro de 1999, dedica-se exclusivamente ao massacre perpetrado pela polícia do estado do Pará, que deixou saldo de 19 sem-terra mortos. Ainda neste número especial, um levantamento dos números da violência contra trabalhadores rurais organizados: "De 1980 para cá, 1.517 trabalhadores rurais foram assassinados no campo. Com as 11 mortes já registradas este ano, o número de homicídios na vigência do governo FHC subiu para 184 (…) Nem a ditadura militar matou tanto. Somente na década de 90 foram mortos 370 dirigentes do MST no país, mais gente do que as 281 vítimas assassinadas no regime militar. As duas modalidades mais freqüentes no campo ocorrem quando há invasão policial para cumprimento de ordens judiciais de despejo e por meio de emboscadas de pistoleiros profissionais ou de milícias armadas contratadas por fazendeiros."

"A impunidade dos crimes alimenta a violência: não há registro de latifundiário preso e o número de condenações de PMs é insignificante ? entre oficiais, apenas o major Vitório Mena Mendes, um dos comandantes da chacina de Corumbiara, foi condenado. No entanto, no dia 3 de julho passado, a juíza Ana Cristina Paz Néri, da comarca de Boituva, SP, condenou a oito anos e 10 meses de prisão, em média, seis integrantes do MST incriminados por ?roubo, incêndio e danos a instalações públicas? a um posto da Rodovia Castelo Branco, durante manifestação contra fome e o desemprego." (CA, especial MST, out.2000:15).

Outras reportagens e entrevistas sobre o MST estiveram nas páginas de Caros Amigos nesses anos de levantamento. E fica patente, além das fontes ? os próprios trabalhadores ou participantes do movimento [além de integrantes como Jaime Amorin, César Benjamin, do Consulta Popular, que hoje é colaborador fixo de Caros Amigos, também João Pedro Stedile participou da "Entrevista Explosiva" de junho de 2000, e de uma entrevista-debate com Bautista Vidal, em janeiro de 1998. Em março de 2002, Stedile passou a fazer parte do quadro fixo de colaboradores da revista] ?, o enquadramento dado nas reportagens ao movimento.

Em conversa com um leitor durante a pesquisa sobre a revista indaguei o que ele tinha a observar, nas características das grandes empresas de jornalismo e de Caros Amigos, no tocante ao enquadramento das notícias ligadas aos movimentos sociais: "Caros Amigos é um dos raros espaços de mídia que pautam assuntos mais voltados aos movimentos sociais sem a ?doentia? passionalidade de contrariedade que parece marcar boa parte dos periódicos, quando se trata de discutir e informar sobre o que fazem os movimentos sociais no Brasil." (SLG, jornalista, professor universitário, de Santa Catarina).

Ainda nesse sentido, a forma com que Caros Amigos se volta para promover a cobertura jornalística de periferias e morros dos grandes centros urbanos já delimita sua diferença de abordagem no tocante aos MCM. Estes variam suas matérias sobre as populações de periferias e morros, ora mostrando a miséria e a violência que parece brotar somente da ineficiência policial e da crueldade de alguns traficantes, ora procurando demonstrar que a salvação são projetos culturais ? em que essas populações ou rebolam ao som de alguma música no estilo Olodum, batucando em latões ? ou sociais, salvas por alguma organização do estilo Instituto Airton Senna.

"No que se refere à organização e ao tipo de movimento que se estabelece nas periferias dos grandes centros urbanos, a revista produziu uma edição especial, "Movimento Hip Hop", uma série, "Literatura marginal, a cultura da periferia ? Ato I", em parceria com a Editora Literatura Marginal; além da capa e da reportagem sobre Mano Brown, líder do conjunto de rap Racionais MCs (janeiro de 1998), contando ainda com a participação fixa do colaborador Ferréz, idealizador da série "Literatura marginal." (Câmara, 2002:121).

As matérias que compuseram esta temática construíram uma perspectiva da periferia e do movimento hip-hop, que privilegia a produção cultural e a organização política dos jovens desses bairros. Mais uma vez a fonte foram os próprios moradores da periferia e participantes locais dos movimentos organizados. A série "Literatura marginal", uma iniciativa de Ferréz e da Editora Casa Amarela, se dedica a autores de diversos bairros de periferia e de morros, principalmente de São Paulo e Rio de Janeiro. A violência policial, o preconceito, a falta de oportunidades e a privação material de que estas regiões e seus jovens são vitimas são as principais temáticas da série.

[Fim da Parte 1. Clique em PRÓXIMO TEXTO para ler a segunda e última parte desta matéria]

(*) Mestre em Ciências Sociais/Política pela PUC/SP, integrante do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política ? Neamp/PUC-SP