Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O jornalismo à moda da França

IMPRENSA FRANCESA

No rastro dos casos Baudis e Schneidermann, que deixaram mal na
foto grandes jornais franceses [veja remissões abaixo],
a revista parisiense Le Nouvel Observateur <
http://www.nouvelobs.com/articles/p2034/index2.html
> dedicou
à imprensa a capa da edição n? 2.034, a última
de outubro. Sob o título "A face oculta do jornalismo",
abre o longo dossiê, constituído de várias matérias,
uma frase famosa na mídia: "Porter la plume dans la
plaie". De autoria do mais célebre repórter francês,
Albert Londres, morto em 1932 ? e até hoje referência
ética do jornalismo ?, a frase completa diz, em tradução
livre: "Não há que ser contra ou a favor. Nosso
dever é levar a pena à ferida".

O Observateur se propõe no dossiê a focalizar
os holofotes no próprio ofício ? coisa rara na mídia
? para entender por que a imprensa é tão ruim e por
que, em repetidas sondagens, a opinião do público
sobre a imprensa é tão negativa. "A imprensa
raramente se interessa pelos trens que chegam no horário",
diz o diretor de redação da revista, Laurent Joffrin,
no texto de abertura, aludindo ao desinteresse da mídia pela
boa notícia. "Negligenciamos os jornalistas escrupulosos,
que tentam fazer seu trabalho honestamente, e no entanto eles são
muitos."

Esta assertiva dá início na verdade a uma bela defesa
da profissão, porque o Observateur não se mostra
disposto a engolir todas as críticas sem contestação.
Diz Joffrin: "Discordamos das condenações sumárias
vindas quase sempre dos seguidores de Pierre Bourdieu. Como a imprensa
está submetida às leis de mercado, dizem eles, ela
é necessariamente vendida ao poder financeiro. Conformismo
político e cultural, práticas corrompidas, conivência
generalizada, ocultação de informações:
tudo é ruim para esta construção arqueomarxista
[de marxismo arqueológico]", rebate o autor, desafeto
antigo de Bourdieu, a quem chamava de "sociólogo enervante".

Análises radicais

No sistema midiático francês, plural apesar de todos
os defeitos, segundo Joffrin, as informações importantes
são publicadas, os debates têm lugar (na imprensa,
notadamente), os poderosos são criticados e os males da sociedade
ficam claramente expostos. "Os desvios constatados (por vezes,
no Observateur), as influências publicitárias
ou financeiras que apontamos em muitos veículos de imprensa
são objeto de combate nas redações, e não
de submissão automática. É para prevenir essa
submissão e ajudar nesse combate que quisemos mostrar esta
?face escondida? do jornalismo."

Depois dos empresários e dos políticos, os jornalistas
estão no centro das críticas mais pesadas, reconhece
Airy Routier, redator-chefe da revista, na matéria seguinte.
Não somente a televisão, biombo cômodo para
a imprensa escrita, tão patentes são seus desvios,
mas toda uma profissão tem princípios, moral e práticas
postos em xeque.

Airy Routier volta ao sociólogo francês morto em 2002
que retratou a mídia com acidez. "Estamos longe das
análises radicais de Pierre Bourdieu, para quem a imprensa,
dominada pelas forças do dinheiro, traveste a realidade social
e política, impõe o pensamento único e a visão
neoliberal do mundo, faz o jogo do imperialismo americano e aliena
as massas", diz. "Para ele, como para seus discípulos,
a moral profissional nada pesa diante da submissão dos meios
a seus proprietários e a sua ideologia. Servis, por natureza
e obrigação, os jornalistas não passam de cães
de guarda
do grande capital", continua o texto.

Ampla desconfiança

Na defesa da profissão, o Observateur dedica espaço
a ataques não só a Bourdieu, mas ao Diplô
de Bernard Cassen e Ignacio Ramonet. "Teóricos, estes
críticos têm impacto relativo, desconectados que são
das práticas diárias de qualquer redação,
já que emanam dos domínios de Le Monde Diplomatique,
o jornal mais ideológico que existe", reduz Routier.
Mas os questionamentos à imprensa se multiplicaram, tornaram-se
mais argumentativos, portanto mais eficazes. "O jornalista
é acusado de ligeireza, incompetência, cobiça,
irresponsabilidade, de conivência com os poderosos, de esconder
o essencial, de estar a serviço dos acionistas e de se achar
intocável."

"Nas livrarias há pilhas de obras questionando a imprensa.
Fenômeno: todas vendem bem, algumas vezes muito bem. A denúncia
do jornalismo virou um gênero literário à parte!",
exclama Routier. "Paradoxo: esta profissão vilipendiada,
particularmente pelos mais jovens, é a que suscita mais inveja.
Os candidatos afluem às 11 escolas de Jornalismo reconhecidas:
as mais sérias recusam 19 candidatos em 20."

No entanto, ano após ano os institutos de pesquisa confirmam
a desconfiança dos franceses com as mídias, especialmente
a imprensa escrita. Sondagem divulgada em fevereiro indicou que
57% dos franceses acham que os jornalistas não informam honestamente
os fatos, enquanto três quartos os julgam dependentes dos
poderes políticos e financeiros. Esta visão soturna
é desmentida por outra pesquisa, de agosto, segundo a qual
41% dos franceses têm confiança na imprensa diária
e 75% deles se consideram mais bem-informados do que há 10
anos. "Paradoxalmente, 70% pensam os meios ?evitam abordar
assuntos que incomodem gente influente?", comenta Routier.

Apelo ao passado

Um outro paradoxo entristece o autor: a TV é considerada,
na pesquisa, o veículo que analisa melhor a atualidade. "Triste,
mas verdadeiro: Le Vrai Journal de Karl Zero, no Canal+,
fixa as normas de toda uma geração, uma vez que o
animador mistura verdadeiro e falso, manipula a informação
e até compra testemunhas", lamenta. Vai longe o tempo
em que nos escandalizávamos com a falsa entrevista de Fidel
Castro a Patrick Poivre d?Arvor, que assumiu como suas respostas
dadas numa coletiva, diz Routier.

"Não se trata aqui de dar lições aos
colegas", ressalva. Ainda mais que o Observateur não
está livre de críticas. Ainda somos atentos demais
com os amigos da casa ? curva-se Routier. Acontece de misturarmos
fatos e comentários, de ceder à tentação
de coberturas consideradas comerciais demais, e demos crédito
a um impostor que se fez passar por guarda-costas de Saddam Hussein
? enumera o redator-chefe os erros de sua revista. Ele inclui na
lista até mesmo uma falha pessoal, na apuração
de matéria sobre a Elf.

Ele em breve volta à defesa da profissão. "Os
ataques à imprensa são freqüentemente injustos,
motivados primeiramente pelo desconhecimento das práticas
e das dificuldades da profissão", diz. "Achamos
que a situação não pára de melhorar."
Para comparar, apela ao passado. "Alguém sente falta
da época em que radiojornais eram corrigidos no Ministério
do Interior, ou da época em que Marcel Dassault promovia
seus aviões nas páginas de seu jornal? Mas a formação
e a exigência dos leitores cresceram tanto ou mais depressa
do que a melhora dos jornais." [Clique em PRÓXIMO
TEXTO
, no pé da página, para completar
a leitura desta matéria
](Marinilda Carvalho)

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