Wednesday, 01 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O medo midiático

VIOLÊNCIA JUVENIL

Paulo Afonso Graner Fessel (*)

“Michael Moore ? Você sabia que o dia dos atentados em Columbine foi o dia em que o governo americano desferiu o mais violento bombardeio sobre Kosovo?”

“Marilyn Manson ? Sim, eu sei disso, e é realmente irônico que ninguém diga que ?talvez o presidente tenha influenciado esse comportamento violento? [O massacre de Columbine]. Porque não é isso que a mídia deseja noticiar e enfatizar. O fato é que você assiste às notícias da televisão e elas empurram o medo por sua goela abaixo. Ocorrem enchentes, a Aids existe, alguém é assassinado, corte para o comercial, compre um Acura, compre Colgate, pois se você tiver mau hálito ninguém vai querer conversar com você, se você tiver espinhas as garotas não vão querer transar com você, e assim existe toda essa campanha de medo e de consumo, e que deriva da idéia básica de que ?se você mantiver as pessoas aterrorizadas, elas consumirão?.” (Tiros em Columbine (2002), dirigido por Michael Moore)

“Está diminuindo o espaço de racionalidade. O problema essencial é que somos vítimas de gente que também é vítima. Se não tivermos a capacidade de lidar com essa incômoda obviedade não vamos a lugar nenhum. Ou melhor, vamos: vamos disseminar, para sempre, a cultura inútil do extermínio.” (Gilberto Dimenstein, “Os seres humanos que viraram lingüiça, FSP, 23/11/2003)

O filme é americano, os personagens (reais) também o são, mas a descrição que eles fazem da mídia encaixa-se como uma luva em tudo o que é produzido aqui, principalmente na televisão. E com os ataques aos postos policiais de São Paulo e o assassinato do jovem casal Liana Friedenbach e Felipe da Silva Caffé, está aberta a mais nova temporada de propagação de medo e ódio na mídia. Uma amiga me escreve e me surpreende, pedindo “pena de morte já” para os assassinos do casal que fora acampar em Embu-Guaçu e que estava desaparecido.

Enquanto isso, a grande imprensa ? falada, escrita e televisada, como se dizia antigamente ? dava grande repercussão ao ocorrido, detalhando mesmo os planos do futuro casal quanto ao destino de suas vidas, dizendo o quanto o casal era querido, que “o moço era incapaz de fazer mal a alguém” etc.

Tese sociológica

Seria irônico se não fosse trágico, uma vez que esse fato veio em seguida à divulgação de uma pesquisa da OAB em que mais de 80% da população defendem a adoção da pena de morte; e ontem, numa síntese da tensão que assola o país quando o assunto é segurança pública, alguns telejornais se apressaram a mostrar o deputado Jair Bolsonaro ? que defende o rebaixamento da idade de maioridade penal de 18 para 16 anos ? agredindo a deputada Maria do Rosário, contrária à medida, o que mostra o estado de espírito do país em relação à questão da violência urbana. E no fim das contas o “barraco” entre os deputados acabou mais importante do o que eles discutiam. Ou seja, a capacidade da mídia de desconstruir idéias e transformar tudo em espetáculo também faz escola por aqui.

A impressão que tive e tenho é que o caso teve toda essa cobertura e abordagem porque era mais um prato irresistível: um casal jovem e bonito, cheio de sonhos, que teve a vida ceifada por marginais. Prato ainda mais irresistível para os urubus da mídia: os apresentadores dos programas policiais de fim de tarde. Que entre um comercial das Lojas Marabrás, das Casas Bahia, de fabricantes de automóveis e do creme dental Sorriso, bradam pela implantação da pena de morte e pela “exterminação” dos bandidos. Tal veemência só se compara ao seu silêncio ensurdecedor quanto às causas da violência sobre a qual faturam ? para si mesmos e para as emissoras. E mais: só vejo indignação em relação ao casal de jovens, enquanto as chacinas que dizimam dezenas de pessoas todo mês merecem notinhas anônimas de rodapé. Nenhuma emissora, nenhum jornal nunca envia ninguém a esses lugares para descobrir como esses mortos anônimos viviam e mostrar como vivem ? como viviam ? seu dia-a-dia.

Como se as vidas do rapaz pacífico e da jovem loura fossem mais importantes do que essas outras, que são também impiedosamente ceifadas todos os dias. Como nas novelas, tragédia de rico vende; tragédia de pobre vira tese sociológica, que terá acesso cuidadosamente controlado à população em geral.

Pequenos assassinos

E aí me lembro do documentário e vejo que a tese sobre os meios de comunicação controlarem a nossa vida continua sendo válida aqui. Jornais, revistas, televisão e rádio faturam alto em cima da violência, trazendo-nos em cores e com visão aérea as rebeliões e crimes em tempo real. A bandidagem deve achar isso ótimo: aparece na mídia de graça, tem sua “causa” divulgada aos quatro ventos e ainda consegue aterrorizar toda a população por intermédio dos meios de comunicação. Para esses dois grupos sociais ? barões da mídia e marginalidade ? é um belo jogo de “ganha-ganha”, ao passo que todo o restante da população sai perdendo.

E tome programas policiais para deixar as pessoas trancafiadas dentro de casa, aterrorizadas, consumindo constantemente e deixando os proprietários das empresas de mídia cada vez mais ricos. Sem contar os jornais, que relataram em grande detalhe os requintes de crueldade a que as vítimas foram submetidas, o que transforma jornalões como Folha e Estado em sucedâneos ricos dos jornais que “pingavam sangue”, como o falecido Notícias Populares. Aparentemente, os meios de comunicação já cruzaram a linha de separação entre civilização e barbárie.

Nesse contexto, a questão que mais aterroriza a mídia é se algum dia as pessoas perceberão como estão sendo manipuladas a consumir, a ficar em casa e consumir e ficar em casa novamente. E aí, aproveitando-se da comoção que esses casos criam, lançam inocentemente ao ar o balão da pena de morte… Algo que entreterá os telespectadores e fará com que se venda muito, mas muito jornal mesmo. Enquanto isso esquecemos que, ao outorgar ao Estado o poder de matar legal e ritualisticamente, tal não impede que nos transformemos todos em pequenos assassinos. Esquecemos que, para um bandido que for receber a pena capital, matar um ou matar 100 não vai fazer a menor diferença ? pois até prova em contrário só se morre de condenação à morte uma vez.

Odio como commodity

Abrimos mão de mais um pouquinho da nossa humanidade, de nossa capacidade em sentir compaixão pelo outro. Algo que até um (ex?) campeão dos direitos humanos, o rabino Henry Sobel fez, ao declarar alto e bom som que “como pai”, apóia a pena de morte. Estranho que o rabino tenha feito isso somente após uma moça judia ter sido assassinada, pois os que morrem na periferia da cidade não são judeus, e assim, aparentemente, não conseguiram influenciar a consciência desse ilustre religioso. De qualquer maneira, prefiro não aprofundar este assunto por aqui.

E aí vamos à segunda citação: a de que estamos perdendo a racionalidade. De que para combater o inimigo devemos nos transformar em seres tão baixos quanto eles. Que para extinguir a violência devemos todos cruzar a linha que, em tese, nos separa deles. Algo que só contribui para perpetuar a espiral de violência que permeia nossa sociedade; perpetuação essa que é extremamente conveniente à mídia em geral. Enquanto isso, os problemas que levam a essa situação ? a péssima distribuição de renda, a falta de perspectiva e de apoio do Estado ao jovem de baixa renda, a falta de alternativas culturais e de lazer à maior parte das pessoas; a falta de um real processo de formação da criança e do jovem, enfim ? são convenientemente empurrados para baixo do tapete, enquanto aguardamos a próxima vítima de classe média. E nós, que podemos (e ainda estamos vivos), vamos consumindo carros, livros, jornais, móveis, DVDs, cinema, música entre uma tragédia e outra, devidamente aterrorizados e… irracionalizados.

Nesta atmosfera de irracionalidade e terror total, o artigo de Gilberto Dimenstein é leitura obrigatória. Deveria ser lido em todas as escolas, nos gabinetes governamentais e nas empresas para recolocar-nos de volta ao reino da racionalidade. Juntamente com Tiros em Columbine, que ilustra muito bem o que pode ser uma sociedade aterrorizada, que consome terror e ódio como commodity. Ambos devem nos servir de lição para que, num futuro (distante?), tragédias como a do jovem casal sejam evitadas.

Infelizmente, racionalidade não ganha eleição…

(*) Analista de sistemas e músico