Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O ministro, a mídia e a realidade

DESOBEDIÊNCIA CIVIL

J.M. Leitão (*)

Cheguei à conclusão de que passei a fazer parte de um estranho mundo de leitores brasileiros: o daqueles que lêem e não entendem o que leram; massa a ocupar elevado percentual de meus (e nossos) letrados e semi-alfabetizados concidadãos, segundo estudos fartamente divulgados pela mídia pátria.

Senão, vejamos. Depois de tanto ver e ler nas páginas de diários e hebdomadárias revistas desta bruzundanga (O Globo, Folha, JB, Correio Braziliense, Veja, IstoÉ, Época etc.) a descrição sensacionalista do episódio da galinha preta atirada na prefeita de São Paulo, Marta Suplicy, continuo em desacordo com tudo que foi escrito a título de interpretação do incidente ? "atentado à democracia", "abuso do direito de protestar" etc. etc. etc. Até porque reis, presidentes, primeiros-ministros, potentados, autoridades outras e magnatas do porte de Bill Gates, por exemplo, já levaram tomates, bolos, tortas, ovos podres e pedradas e a mídia divertiu-se em noticiar tais agressões do modo mais simpático possível. Nada mais que meras e livres "manifestações democráticas", dizem sempre, desde que distantes, bem longe do território nacional, o que me leva a crer que verdade verdadeira é que só no dos outros é refresco.

Pior ainda quando nos dedicamos à leitura da análise da nada enigmática fala de sua excelência, Márcio Thomaz Bastos, ministro da Justiça do atual governo: aquele negócio de que atirar uma galinha preta na prefeita equivaleria a jogar um veado em um homem (apenas repito o que li, si non è vero…): mundo de bobagens as mais desatinadas!

Desobediência civil

Enfim ? já se fazia hora ?, pude, pelo menos isto, divertir-me com a página bem-humorada, da lavra de Roberto Pompeu de Toledo, na Veja, (edição 1.816) : "Sobre veados, flamingos e outros bichos". Ele sim (Toledo), entrando diretamente no domínio tão ciosamente atribuído somente às falas presidenciais (atenção, atribuído às falas do presidente Lula, mas não primazia dele), o emprego da metáfora! Isto mesmo, metáfora, vê-se logo, foi o que sua excelência Márcio Thomaz Bastos, em má hora, empregou, ao comparar homem e mulher com veado e galinha preta (de qualquer cor, penso). Sem que se percam as válidas considerações, como bem lembrou, repito, coerentemente, Roberto Pompeu de Toledo sobre as dificuldades, decorrentes de tamanho, proibições legais e desabusado peso do delicado quadrúpede ruminante, para se jogar um veado em alguém. Portanto, conclui Toledo, "atirar veado em homem não é o mesmo que atirar galinha em mulher. É muito pior" ? e eu também acho.

No mais, quem mantiver a mínima dúvida sobre o real significado da desastrada fala do ministro, nada melhor que consultar os verbetes: Metáfora, Galinha e Veado, no Aurélio mais a mão.


Metáfora

[Do gr. metaphorá, pelo lat. metaphora.]

S. f.

1.Tropo que consiste na transferência de uma palavra para um âmbito semântico que não é o do objeto que ela designa, e que se fundamenta numa relação de semelhança subentendida entre o sentido próprio e o figurado; translação.

[Por metáfora, chama-se raposa a uma pessoa astuta, ou se designa a juventude primavera da vida.]

Galinha

[Do lat. gallina.]

S. f.

1 Zool. Ave galiforme, fasianídea, a fêmea, adulta, do galo1 (1).

2.Cul. Prato feito com ela.

3. Fig. Pessoa muito volúvel, que se entrega [ v. entregar (10) ] com facilidade.

4. Fig. Pessoa fraca, covarde ou medrosa.

5. Pessoa que não se contenta em ter apenas um parceiro sexual.

Veado

[Do lat. venatu, ‘caça morta’.]

S. m.

1. Zool. Animal mamífero, artiodáctilo, cervídeo, desprovido de incisivos superiores e em geral muito tímido e veloz. V. cervídeos. [Sin.: suaçu.]

2. Cul. Prato feito com esse animal.

3. Bras. No jogo do bicho (q. v.), o 24? grupo (14), que abrange as dezenas 93, 94, 95 e 96, e corresponde ao número 24.


4. Bras. Chulo Homossexual (3).[Cf. veiado.]

Ao fim e ao cabo, permito-me, no caso da arremessada galinha na prefeita, a partir de minha crença nas instituições democráticas e haver sido jovem e universitário, pichado paredes, participado de greves e até esvaziado pneus dos carros de professores, entre outras irrelevâncias, optar pelo motivo mais prosaico e provavelmente real. Os meninos contestadores tão-somente buscavam, talvez por discordarem da atuação da prefeita Marta, da falta de empregos, da alta da violência e do preço da cesta básica, ou por não gostarem do namorado franco-argentino (da prefeita), em via de abocanhar importante e polpudo cargo, malgré estrangeiro e de poucas letras (quem diz é a Veja), enfronhar-se, mesmo desconhecendo Thoreau, nos básicos princípios da desobediência civil: é isso e c?est tout.

Toda e qualquer interpretação outra corre por conta das desastradas e inoportunas palavras de sua excelência, o ministro da Justiça, e dos exageros da mídia.

(*) Médico em Brasília

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