Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O nascimento do pensamento econômico brasileiro

HIPÓLITO E SEU TEMPO

Paulo Roberto de Almeida (*)

Recém-formado em direito por Coimbra em meados de 1798, Hipólito José da Costa recebe do conde de Linhares, menos de três meses depois, o encargo de fazer no território da América do Norte (Estados Unidos e México) o que se poderia designar, na moderna linguagem dos negócios, de comissão de prospecção econômica. Grande estadista português da transição para o século XIX, d. Rodrigo de Sousa Coutinho ostentava uma concepção essencialmente econômica da administração pública, preocupando-se com a agricultura, o comércio, a gestão financeira e as novas práticas industriais. Foi provavelmente Linhares quem inculcou em Hipólito o gosto pelas questões econômicas, inclinação que este manteve durante toda a sua vida, aliás revelada de maneira cabal nas páginas do seu “armazém literário”. Com efeito, a rubrica Comércio (geralmente acompanhada das “artes”) vinha logo após a importante seção inaugural dedicada à política. Tão pronunciada era a tendência de Hipólito pelo estudo das questões econômicas que, em 1819, já no auge de sua carreira jornalística, ele protestava solenemente contra a proibição dos estudos de economia política na Universidade de Coimbra. [Cf. “Os estudos de economia política são proibidos na Universidade de Coimbra e não sabemos que haja no Reino escolas em que se aprendam” [CB, 22: 84], apud Mecenas Dourado, Hipólito da Costa e o “Correio Brasiliense” (Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1957), t. 1, p. 44.]

Na verdade, a missão nos Estados Unidos comportava um caráter sobretudo técnico, mais do que de prospecção de mercados ou de incentivo ao comércio. Tratava-se de levantar os recursos naturais e apreciar os conhecimentos científicos que a jovem nação independente da América do Norte mobilizava em sua marcha ascensional para o progresso econômico. Em outros termos, o encargo comportava também aspectos que hoje em dia poderiam ser equiparados à “espionagem industrial ou tecnológica”, numa etapa histórica na qual os direitos de propriedade intelectual não desfrutavam da mesma proteção absoluta como na atualidade. O futuro “pai da imprensa” brasileira estava amplamente habilitado para fazê-lo, uma vez que, ademais dos conhecimentos práticos aprendidos em sua vida de fazenda no Rio Grande, ele tinha sido formado em outras matérias que simplesmente filosofia e direito. Os estudos de filosofia em Coimbra comportavam, precisamente, o ensino de botânica, agricultura, zoologia, física, química e mineralogia, artes e disciplinas nas quais também se destacava o futuro “pai da independência”, José Bonifácio, freqüentador das academias européias.

Quando Hipólito partiu para os Estados Unidos e o México, no final de 1798, ele era, portanto, nada mais do que um recém formado, alguém que de certa forma completou seu “mestrado” numa missão de trabalho, mais do que na forma de estudos suplementares, virtualmente inexistentes aliás. As instruções de Linhares eram no sentido de se obter as informações as mais detalhadas possíveis sobre todos os progressos havidos na América do Norte no terrenos das artes práticas, das culturas agrícolas e dos ofícios ligados ao fabrico e manufatura de bens em geral, complementando a missão pelo encargo de recolher as espécimes e variedades de plantas e cultivos que se pudessem aproveitar em Portugal e na colônia brasileira. Nos Estados Unidos atenção especial deveria ser dada ao cultivo do tabaco, então concentrado em Maryland e na Virgínia, ao passo que no México, ademais de observar as minas de ouro e prata, a instrução essencial era a de lograr subtrair o inseto e a planta da cochinilha, iludindo a vigilância rigorosa das alfândegas espanholas. De tudo, Hipólito deveria mandar relatórios circunstanciados, o que ele obviamente fez de maneira rigorosa, ao despachar notícias teóricas e comentários práticos sobre tudo o que viu e ouviu em sua longa estada naquelas partes, nos anos finais do século XVIII.

Nos Estados Unidos, Hipólito teve de, algumas vezes, fazer-se de diplomata, mesmo sem autorização ou diploma legal, por motivo da ausência do representante português, ministro Cipriano Ribeiro Freire. Mais importante do que esse exercício episódico de diplomacia, de fato mais bem em encargos consulares, foi a provável adesão de Hipólito, nessa estada, à maçonaria, possivelmente mais relevante na determinação de seu futuro destino político do que a missão de “espionagem industrial” pela qual iniciava sua vida profissional. Em todo caso, sua prospecção técnico-científica na América do Norte poderia ser também aproximada de uma missão de diplomacia econômica, não no sentido negocial, mas no de uma “embaixada” voltada para a informação a mais ampla possível sobre as capacidades naturais e os atributos humanos de uma potência amiga, como forma de habilitar a sua pátria (e a sua terra de formação) a competirem em melhores condições no grande jogo econômico das indústrias e do comércio que Linhares adivinha formavam a base da potência das nações.

Nessa missão Hipólito conheceu artesãos, cientistas e agricultores, ademais do futuro, Thomas Jefferson, e do então presidente dos Estados Unidos, John Adams, cuja informalidade e falta de protocolo surpreenderam um pouco o súdito de uma monarquia absoluta, rigorosa com o cerimonial. Seu “diário de viagem” não é uma simples coleção de observações naturalistas e agrícolas, pois que Hipólito tece considerações extensas sobre as religiões dos americanos e, mais importante, sobre questões econômicas e monetárias. Não deixou de notar a preferência dos americanos pelo comércio, mais que pela agricultura, e o seu gosto acentuado pela especulação, sendo o dinheiro um valor absoluto naquela sociedade. [Ver Hipólito José Costa, Diário de minha viagem para Filadélfia, 1798-1799 (Rio de Janeiro: Publicações da Academia Brasileira, 1955). Como argumentei em outro texto, trata-se provavelmente da primeira obra sobre os Estados Unidos escrita do ponto de vista de um observador do Brasil, preocupado em trazer para a colônia lusitana da América as espécies vegetais e animais e aqueles melhoramentos técnicos que julgava poder contribuírem para o engrandecimento de sua pátria; cf. Paulo Roberto de Almeida, “Tendências e perspectivas dos estudos brasileiros nos Estados Unidos”, em Paulo R. de Almeida, Marshall C. Eakin & Rubens A. Barbosa (eds.), O Brasil dos brasilianistas: um guia dos estudos sobre o Brasil nos Estados Unidos, 1945-2000 (São Paulo: Editora Paz e Terra, 2002).] Já naquela época, os bancos emprestavam facilmente, acima das posses reais, animando os empreendimentos e facilitando as especulações mercantis, muito embora no interior do país a falta de dinheiro condenasse os produtores muitas vezes ao escambo. Ele observou, também, as tendências a falências abruptas e a uma mobilidade excepcional nos negócios, traços que ainda hoje marcam a modalidade peculiar do capitalismo americano.

Os Estados Unidos do final do século XVIII estavam obviamente longe de se constituírem em uma sociedade industrial e, de fato, eles se tornaram a primeira potência econômica do planeta apenas no final do século XIX, quando ultrapassaram o volume da produção industrial combinada da Grã-Bretanha e da Alemanha. Naquela conjuntura, os fluxos de comércio, as inovações técnicas e as finanças internacionais ainda eram dominados pelos países mais avançados da Europa, mas o “modo inventivo” americano já exibia todas as características sociais e financeiras que converteriam o país de uma sociedade agrária em potência industrial. Ainda que não descritas com tal estilo “sociológico” em seu diário de viagem, essas características empíricas da sociedade americana ? mais do que qualquer teoria econômica ou doutrina comercial, das quais os EUA continuariam, aliás, sendo importadores líquidos pelo resto do século XIX ? devem ter impressionado a mente do jovem Hipólito, determinando muito de suas reflexões pragmáticas posteriores sobre os problemas econômicos, comerciais e monetários “brazilienses”.

Hipólito não foi como José da Silva Lisboa, o visconde de Cairu, um teórico da economia, muito embora não tenha repugnado a entrar em considerações doutrinárias em seus muitos escritos posteriores da fase do Correio. Ainda antes, e à volta de sua missão americana, ele verteu para o português, em 1801 e provavelmente sob a sugestão de Linhares, a História do Banco da Inglaterra, de E. Fortune, e os Ensaios econômicos e filosóficos de Benjamin Rumford. [História breve e authentica do Banco da Inglaterra com dissertações sobre os metaes, moedas e lettras de cambio e carta de incorporações, por E. Fortune? traduzida da 2? edição de Londres; impressa por ordem de S. Alteza Real o Principe Regente Nosso Senhor, por Hypolito José da Costa Pereira, Lisboa, na Typographia Chalcographica e Litteraria do Arco do Cego, anno MDCCCI; Ensaios politicos economicos e philosophicos, por Benjamin Conde de Rumford? traduzida em vulgar por Hippolito José da Costa Pereira, tomo I, Lisboa, na Regia Officina typographica, MDCCCI, por ordem superior; cf. Mecenas Dourado, op. cit., t. 1, pp. 80-81. Mais adiante, já como editor do Correio, Hipólito traduz e publica o economista suíço Simonde de Sismondi.] D. Rodrigo, que nessa época era ministro da Fazenda e presidente do Erário, o envia nesse ano à Inglaterra e à França, para “adquirir livros, máquinas e outros materiais para a Imprensa Régia”.[Cf. M. Dourado, op. cit., t. 1, p. 82.] Esse tipo de literatura, muito voltada para as condições econômicas concretas do país mais avançado, então, no plano industrial, e, sobretudo, sua missão anterior aos Estados Unidos é que devem ter constituído a base do conhecimento empírico e teórico de Hipólito sobre questões econômicas e comerciais. Em qualquer hipótese, muito pouca oportunidade lhe restou, depois de sua primeira missão à Inglaterra, de aperfeiçoar suas leituras em questões econômicas, uma vez que três ou quatro dias após sua volta foi preso em sua casa, numa nova demonstração da intolerância da Inquisição portuguesa para com os suspeitos de maçonaria.

A publicação, em 1804, dos Princípios de economia política, de José da Silva Lisboa, o primeiro economista brasileiro, ainda encontraria Hipólito na prisão, de onde ele sairia apenas no ano seguinte, para viajar imediatamente para a Inglaterra. Foi na Grã-Bretanha ? seu refúgio nos dezessete anos seguintes e onde ele empreenderia o “ato fundador” da imprensa “braziliense” ? que Hipólito continuaria sua obra de tradutor e de comentarista das atualidades nacionais (portuguesas e brasileiras) e internacionais. Ele foi um compilador das “coisas práticas” da vida econômica, política, científica e literária, geralmente sob a forma mais usual da transcrição de documentos oficiais, mas muitas vezes fazendo ele mesmo pequenas resenhas e comentários pessoais, alguns não assinados ou então colocados sob pseudônimo.

Esse ativismo literário e jornalístico do novo exilado português da Inquisição não se refletiu de imediato, entretanto, na vida de Hipólito, que ainda passa perto de três anos como tradutor e professor e em diversas atividades comerciais e de intermediação ? quase que de subsistência, poder-se-ia dizer ? antes de se lançar na grande aventura de sua vida, a que o consagraria, na história do Brasil, como o primeiro jornalista independente do país, mesmo se ele jamais tenha voltado a colocar os pés na sua verdadeira pátria. Foi Napoleão quem o tirou da modorra e lhe deu a grande oportunidade de se afirmar como homem de idéias e como crítico de políticas oficiais. De fato, não fosse a invasão napoleônica de Portugal talvez não tivéssemos tido o empreendimento “literário” que marcou, mais que qualquer outra folha, gazeta ou pasquim, as políticas domésticas e internacionais de Portugal e do Brasil, durante os quase 14 anos de residência da Corte no Rio de Janeiro. [De fato, como afirma Mecenas Dourado, o Correio Braziliense “foi um fenômeno napoleônico”; cf. Hipólito da Costa e o “Correio Brasiliense“, op. cit., t. 2, p. 580.]

O Correio foi, por certo, mais importante para o Brasil do ponto de vista das lutas políticas e jornalísticas, pela liberdade de expressão e no controle das autoridades (e também diplomaticamente), do que como arauto de políticas ou doutrinas econômicas e comerciais. Hipólito, aliás, estava longe de ser o jacobino radical e o representante das idéias democráticas da Revolução Francesa que muitos gostariam de ver. Como diz Mecenas Dourado, “na realidade, não era ele senão um discípulo do liberalismo inglês, partidário, em política, da monarquia limitada e repelindo as tendências revolucionárias e democráticas da igualdade rousseaunista”. [Cf. M. Dourado, op. cit., t. 1, p. 302.] Um estudo sobre seu pensamento econômico ainda está para ser feito, mas não parece deslocado afirmar que, nesse terreno, ele ostentava o mesmo pragmatismo e bom senso que o caracterizavam na área política, combinando um liberalismo de princípio quanto ao exercício das atividades econômicas e comerciais, não repugnando, quando fosse o caso, a aplicação de algumas medidas “industrializantes” (avant la lettre), como tinha observado nos Estados Unidos.

Confirmando sua preeminência na atividade jornalística de Hipólito, a seção sobre política sempre foi mais imponente do que a parte comercial nas páginas do Correio. Ocorria freqüentemente, também, que muitos instrumentos econômicos ou comerciais relativos à situação brasileira e dignos de registro em seu periódico eram por ele transcritos na seção “miscelânea” do Correio, por vezes em meio a comentários sobre eventos ou decretos de natureza essencialmente política, o que confirmaria não apenas a confecção por vezes literalmente artesanal do seu “armazém literário”, como poderia indicar igualmente o recebimento irregular dos papéis vindos da Corte do Rio de Janeiro. [Em diversos número do Correio, a seção comercial abrigava, ademais da transcrição dos principais textos oficiais nessa área, informações práticas sobre os preços de mercadorias de interesse do Brasil na praça londrina, dados que constituíam não apenas uma espécie de pesquisa de mercado à intenção dos comerciantes interessados, como também um levantamento das restrições não tarifárias aplicadas a determinados produtos de produ&cccedil;ão brasileira que eventualmente entrassem em competição com mercadorias similares vindas das colônias britânicas do Caribe, por exemplo. Assim, os preços deixavam de ter sua função indicativa da realidade dos mercados para entrar em jogo o tratamento tarifário diferenciado ou a proibição pura e simples de entrada nos portos britânicos.] De resto, tudo era político naqueles tempos conturbados de supremacia napoleônica e de imposição crua da hegemonia inglesa, mesmo um simples acordo comercial ou um tratado de navegação. Como prova, temos que o decreto de abertura dos portos do início de 1808, transcrito no número 3 (agosto) do “armazém literário”, foi por Hipólito colocado nessa primeira seção, sem outro comentário senão a expressão entre colchetes “Continuar-se-há” [CB, 1: 167-68]. [De fato, o texto continha tantas incorreções que, ao final da seção Miscelânea desse mesmo número, Hipólito inseriu a seguinte nota, seguida da transcrição corrigida do decreto de abertura dos portos: “Como a cópia do importante decreto do príncipe regente de Portugal que se imprimiu à folha 167 deste número sucedeu ser incorreta, aqui se insere a exata íntegra do edital a este respeito, vista a importância desde documento para o comércio” [CB, 1: 253-54].]

A chamada “Carta Régia de abertura dos portos” foi expedida por d. João no dia 28 de janeiro de 1808, quando a comitiva real, em fuga de Lisboa, ainda encontrava-se na Bahia, a caminho do Rio de Janeiro. Na carta régia, o príncipe regente explicava que tomava a medida de abertura dos portos “interina e provisoriamente”, em virtude da condição excepcional em que ficara o Reino, por “se achar interrompido e suspenso o comércio”. [Ver Coleção das Leis do Brazil de 1808 (Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1891), pp. 1-2.] Encontrando-se Portugal ocupado por tropas francesas, não havia mesmo alternativa senão abrir o intercâmbio com as “nações amigas”, conjunto que à época excluía grande parte da Europa continental, então sob o domínio de Napoleão.

Por esse ato, os interesses do Brasil se separavam pela primeira vez dos da Metrópole e o comércio exterior do Brasil entraria em fase de notável expansão. As chamadas “mercadorias secas” ? isto é, manufaturas, em geral ? passaram a pagar um imposto ad valorem de 24%, a metade do vigente anteriormente, sendo mantida entretanto a alíquota de 48% para os gêneros líquidos ou molhados (vinhos, águas ardentes, azeites, mas também alimentos, enfim tudo que se transportava em tonéis). Pouco depois, em 11 de junho, outro ato reduzia essa tarifa a 16% para as mercadorias portuguesas e a 19% as mercadorias estrangeiras embarcadas em navios portugueses. Os comerciantes ingleses protestaram rapidamente, solicitando condições igualmente favoráveis para suas mercadorias e suas embarcações. O grande poder de pressão de que dispunha então a Inglaterra, “protetora” da família real portuguesa contra as ameaças franco-espanholas, e as insistentes demandas dos agentes ingleses no Rio de Janeiro obrigaram Portugal a aceitar uma redução substancial das tarifas aplicadas aos produtos ingleses, materializada no tratado comercial de 1810. [Observe-se, a propósito, que o tratado de comércio de Portugal com a Grã-Bretanha foi o único, em toda a América Latina, que continha um dispositivo fixando expressamente o nível tarifário, prática aliás pouco usual nos acordos negociados pelos representantes de Sua Majestade com outros países; de maneira geral, os tratados comerciais, que regulam questões gerais e normas aplicadas ao comércio (cláusula de nação-mais-favorecida, princípio do tratamento nacional, reciprocidade ilimitada ou condicional etc.), não costumam discriminar expressamente níveis tarifários, contentando-se com estipular medidas de caráter geral (redução de um terço ou a metade dos direitos alfandegários normalmente aplicados, diminuição proporcional e recíproca de taxas portuárias etc.); ver D. C. M. Platt, Finance, Trade, and Politics in British Foreign Policy, 1815-1914, (Oxford: Clarendon Press, 1968), p. 315.]

O decreto de abertura dos portos abriu uma nova etapa na história econômica do Brasil, ou mesmo de sua história tout court, podendo-se dele dizer que constituiu, assim, uma espécie de “documento fundador” do país, ao lado do Tratado de Tordesilhas, da carta de Pero Vaz de Caminha e do Tratado de Madri. Encerrava-se com esse ato o longo período de três séculos de exclusivismo comercial português, conhecido como “pacto colonial”, muito embora essa nova situação do Brasil não significasse, em absoluto, uma transformação radical de sua estrutura econômica e social. Organizado essencialmente para fornecer mercadorias coloniais a mercados externos, o Brasil continuaria, já na condição de nação autônoma, no mesmo papel de centro produtor e exportador de bens primários que ele tinha assumido na condição de peça mais importante no comércio exterior português.

Estabelecido o princípio do livre-comércio, tratou-se de criar condições para a produção local e, para esta, foi prevista uma certa proteção contra a concorrência estrangeira. Por um alvará de 1? de abril de 1808 foram eliminadas todas as restrições que tinham sido impostas pelo alvará de 1785 à indústria no Brasil, decretando-se a liberdade de fundação de “todo gênero de manufaturas” em qualquer parte do país, tanto aos vassalos portugueses como aos estrangeiros. Hipólito José da Costa, manifestamente dependente das comunicações intermitentes entre o Rio de Janeiro e Londres nessa fase, bem como do estado ainda precário da disseminação dos papéis oficiais, transcreve o texto desse decreto, sem identificá-lo precisamente, na seção Miscelânea do Correio Braziliense n? 5 (outubro de 1808), caracterizando-o como “verdadeiramente interessante, cheio de justiça e digno de louvor” [CB, 1: 421-22]. [Para o texto oficial, desse decreto, ver Coleção das Leis do Brazil de 1808, op. cit., p. 10.] Ele acrescenta, ao final, seu próprio comentário em relação ao significado desse instrumento para o Brasil: “Eu espero que os Brazilienses, esquecendo-se do justo ódio que estas impolíticas, injustas e opressivas proibições traziam consigo, só se lembrarão de agradecer o remédio que se põe ao mal e, mostrando o seu agradecimento, promover as medidas que podem cooperar para por em plena execução os regulamentos deste decreto. Porque enfim é necessário esquecer as injúrias quando aqueles que as tem causado se aplicam com sinceridade a remediá-las” [CB, 1: 421-22].

O decreto de 11 de junho alterou, como se disse, a carta régia de 28 de janeiro na parte relativa aos direitos alfandegários, determinando-se que as mercadorias de propriedade dos portugueses “e por sua conta carregadas em embarcações nacionais” pagassem apenas 16% de direitos (em lugar dos 24% fixados para as estrangeiras). Também foram isentas de impostos as matérias-primas que tivessem de importar as fábricas, como todas as exportações, até então submetidas a gravames. Passaram a ser concedidos privilégios aos inventores, num exemplo pioneiro de proteção à propriedade intelectual, e procurou-se favorecer a introdução de máquinas. Um primeiro exemplo de “reserva de mercado” ficou estabelecido ao se declarar a preferência por artigos nacionais no fornecimento de provisões para o exército e a marinha. [Mais tarde, por decreto de 23 de novembro de 1816, foi estabelecido que o comércio de cabotagem deveria ser feito exclusivamente por embarcações nacionais.]

Um aspecto desse decreto de revisão tarifária não escapou a Hipólito José da Costa, que foi a restrição do comércio internacional brasileiro aos portos do Rio de Janeiro, de Salvador da Bahia, de Pernambuco, do Maranhão e do Pará, à exclusão de todos os demais. Em comentário, no seguimento da transcrição desse documento, incluído na seção Miscelânea do Correio n? 5 (outubro de 1808), Hipólito, natural de Colônia mas crescido no Rio Grande do Sul, manifestava sua desconformidade com tal restrição:

Eu não sei que razão se possa dar de limitar-se o comércio do Brasil a quatro portos somente, senão o efeito do antigo prejuízo, do sistema de monopólio, que tem sempre em Portugal feito preferir o interesse de certos indivíduos ao da nação em geral”. Ele se perguntava então: “Com que justiça se concede ao negociante do Rio de Janeiro o fazer todo o negócio que lhe convém, e o negociante do Rio Grande não o há de poder fazer senão debaixo de certas restrições é o que não entendo. Mas ainda deixando de parte a injustiça deste monopólio de preferências, parece que os mesmos motivos que fizeram com que o porto do Maranhão fosse contemplado, deviam também fazer lembrar Santos, Santa Catarina e Rio Grande. Santos porque é o único porto de mar considerável, em toda a Capitania de São Paulo; Santa Catarina por ser o último porto do Brasil, no Sul, capaz de receber navios de grande porte e a entrada tão fácil que parece que a natureza destinou esta ilha para o negócio estrangeiro; o Rio Grande pelo extenso comércio que ali se faz com o Paraguai e o Chile; mas não obstante isto, foram estes três interessantes portos considerados, com todos os mais do Brasil, exceto quatro, filhos bastardos e não dignos da porção dos legítimos”. E ele concluía: “Em outra ocasião falarei mais por extenso destes regulamentos que estou certo têm a desaprovação formal de todos os homens que têm algum conhecimento de economia política e da situação do Brasil. [CB, 1: 424-25]

Os reflexos da nova situação manifestaram-se de imediato na nova atividade dos portos brasileiros e no incremento às atividades locais, como registrou um cronista contemporâneo: “Deste modo, não intervindo os negociantes de Lisboa e do Porto, chegavam as cousas de fora mais baratas e saiam as da terra mais caras, do que antigamente. Por outra parte com a chegada de muitos navios mercantes não podia haver falta dos artigos comerciais estranhos e aumentando-se com a esperança do maior lucro a agricultura do país, devia ser grande a abundância dos gêneros destas. Tudo assim logo sucedeu. Foi mais o tabaco da Bahia, o café do Pará e do Rio de Janeiro, o arroz do Maranhão, o algodão deste e da Bahia, e a madeira e courama das capitanias marítimas”. [De acordo com a Historia do Brazil desde 1807 até o presente (Lisboa: 1819), apud Roberto Simonsen, História econômica do Brasil (São Paulo: Nacional, 1937 [col. Brasiliana, vol. 100-A]), t. 2, p. 258.]

Efetivamente, os navios estrangeiros, em especial ingleses, afluíram ao porto do Rio de Janeiro em grande número. Esses navios não apenas traziam os mais diversos artigos estrangeiros mas transportavam igualmente uma produção brasileira que se diversificava crescentemente. Na verdade, a abertura dos portos entre 1808 e 1816 beneficiou quase que exclusivamente aos mercadores ingleses. “Somente após a grande pacificação, presidida por Metternich, é que os portos brasileiros foram, de fato, abertos a todo o comércio internacional”. [Cf. Dorival Teixeira Vieira, Evolução do sistema monetário brasileiro (São Paulo: Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas da USP, 1962), p. 38.]

No seguimento da abertura dos portos, adotam-se outras medidas de caráter administrativo ou institucional que conformariam a primeira estrutura da diplomacia econômica brasileira, entre elas a própria organização do Estado e a repartição funcional dos “ministérios”. Em 11 de março de 1808, no primeiro gabinete da Monarquia portuguesa organizado no Brasil, d. João cria três secretarias de Estado: a dos Negócios do Reino, a da Marinha e Ultramar e a da Guerra e Estrangeiros, a cargo respectivamente de d. Fernando José, de d. João Rodrigues de Sá e Menezes e de d. Rodrigo de Sousa Coutinho, o mesmo Linhares que tinha mandado Hipólito em missão à América do Norte dez anos antes. [Nas palavras de Rocha Pombo, “todos estes homens de Estado eram apologistas da aliança com a Inglaterra e propensos a seguir a política do gabinete de Londres”; ver História do Brazil (Rio de Janeiro: W. M. Jackson, 1935), vol. 3: “A formação do espirito de pátria”, pp. 305-06.] Nem por isso Hipólito pouparia seu antigo protetor das justas críticas que lhe coube fazer em razão dos relações comerciais privilegiadas que Portugal estabeleceria com a potência hegemônica.

A outra experiência “fundadora” da inserção econômica internacional do Brasil nesse início do século XIX seria dada pela negociação de tratados bilaterais de comércio, a começar pelo de 1810 com a Inglaterra, cujas conseqüências propriamente comerciais ? de resto impregnando igualmente a estrutura produtiva do jovem país ? se fariam sentir durante as primeiras três ou quatro décadas de vida independente. As circunstâncias do momento assim o determinaram. De fato, tão logo armou-se a frota portuguesa em Lisboa para fugir da invasão francesa, os comerciantes ingleses, bastante prejudicados pela política de bloqueio continental de Napoleão, prepararam-se para comerciar com o Brasil. Nos primeiros cinco meses de 1808, mais de quarenta navios ingleses solicitaram licença para zarpar para os portos brasileiros, que logo ficaram abarrotados de mercadorias britânicas em caóticas condições de armazenamento. [Ver Olga Pantaleão, “A presença inglesa”, em Sérgio Buarque de Holanda (coord.), História geral da civilização brasileira (2? ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1965), tomo 2: “O Brasil monárquico”, vol. 1: “O processo de emancipação”, pp. 64-99, cf. pp. 73-74.] A pressão dos comerciantes ingleses e a de seus agentes políticos conduziu à primeira negociação diplomática feita a partir do Brasil, a do Tratado de Amizade e Aliança, complementado pelo de Comércio e de Navegação, ambos repletos de cláusulas favoráveis à Inglaterra e seus súditos. [Roberto Simonsen, para quem o tratado de comércio “aniquilava o surto manufatureiro que se ia verificando no país após a revogação, em 1808, do célebre decreto de d. Maria I, que proibia as indústrias no Brasil”, transcreve a introdução dos tratados de 1810 para mostrar “o espírito com que foram promulgados”; cf. História econômica do Brasil, op. cit., t. 2, pp. 247-52. Ver o texto completo do tratado, nas duas línguas, em Coleção das leis do Brazil de 1810-1811 (Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1892), pp. 51-72.]

Pelo de comércio e navegação, de 19 de fevereiro de 1810, concedia-se aos ingleses, além de outros favores e vantagens (entre muitas outras, a do juiz conservador da nação inglesa, já prevista em tratado anterior entre Portugal e a Inglaterra), a redução da taxa de entrada a 15% ad valorem aplicável a “todos os gêneros, mercadorias e artigos, quaisquer que sejam, da produção, manufatura, indústria ou invenção dos domínios e vassalos de Sua Majestade Britânica […] admitidos em todos e cada um dos portos e domínios de Sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal, tanto na Europa, como na América, África e Ásia, quer sejam consignados a vassalos britânicos, quer a portugueses” (artigo 15), ficando portanto as mercadorias provenientes da Inglaterra mais favorecidas que as próprias portuguesas, que pagariam 16%. O açúcar, o café e outros gêneros coloniais ficavam reciprocamente excluídos do comércio bilateral (artigo 20), com o que se vedava o acesso aos mercados britânicos ao essencial da produção brasileira. [Observe-se que na primeira década do século XIX, as regiões sob dominação britânica produziam aproximadamente 60% das exportações mundiais de açúcar e provavelmente 50% das de café; adicionalmente, elas forneciam quase 40% do algodão importado na Grã-Bretanha; apenas nos anos 40 desse século as exportações cubanas e brasileiras de açúcar ultrapassaram as das Índias Ocidentais britânicas; informações consignadas em David Eltis, Economic Growth and the Ending of the Transatlantic Slave Trade (Nova York: Oxford University Press, 1987), pp. 5-6.]

Pelo seu forte impacto político e ideológico nos homens que passariam a representar os destinos da nação e a dirigir, como membros do gabinete, as relações exteriores do Brasil a partir de meados dos anos 1820, os primeiros tratados de comércio envolvendo diretamente o Brasil ? ainda que não tão “desiguais” como aqueles impostos pelo emergente imperialismo europeu a várias outras nações “periféricas” ? repercutiriam na atitude doravante desconfiada dos nacionais em face dos interesses econômicos estrangeiros e construiriam uma percepção inerentemente “desvantajosa” em relação a esse tipo específico de instrumento internacional. Em qualquer hipótese, o tratado comercial de Portugal com a Inglaterra, “herdado” pelo Brasil independente, certamente contribuiu para a imagem essencialmente negativa que a emergente classe política nativa passaria a ter em face dos tratados comerciais. O fato de sua negociação improvisada e rápida conclusão entre o “protetor” britânico e seu pupilo lusitano não pode ser isolado dos perigos militares e ameaças de extinção do Reino e de desmembramento e adjudicação dos Estados portugueses que o “poder subversivo” francês fazia pesar, naquela conjuntura, sobre a Casa de Bragança: ele era o preço diplomático a pagar e o complemento indispensável do instrumento de aliança militar concluído contemporaneamente.

Do ponto de vista doutrinal, a intermitente adesão da elite dirigente aos princípios do livre-comércio começou com uma das primeiras medidas adotadas pelo príncipe regente à sua chegada no Brasil. Com efeito, tomou ele a decisão, em 23 de fevereiro, de instituir uma “cadeira e aula pública” de economia política no Rio de Janeiro [nesse seu decreto, o príncipe regente começava por dizer que era “absolutamente necessário o estudo da ciência econômica na presente conjuntura em que o Brasil oferece a melhor ocasião de se por em prática muitos dos seus princípios, para que os (seus) vassalos sendo melhor instruídos nele, me possam servir com mais vantagem”], atendendo a sugestão feita ao príncipe regente pelo baiano José da Silva Lisboa, no mesmo ato designado para ocupá-la, em sua nova condição de “conselheiro” da Corte. Lisboa, o futuro visconde de Cairu, educado na Europa, já havia escrito, em 1804 como se disse, um Princípios da economia política [J. S. Lisboa, Princípios de economia política para servir de introdução ao autor dos princípios de direito mercantil (Lisboa: Imprensa Régia, 1804); adepto do liberalismo de Adam Smith, mas reconhecendo os limites do industrialismo, Lisboa foi também um decidido agrarista e defensor de novas técnicas de cultivo, tendo tornado-se o principal arauto do livre-cambismo nesta fase inicial do debate econômico no Brasil], largamente inspirado nas idéias de Adam Smith, o filósofo escocês seguidor do laissez-faire que tinha publicado, em 1776, o livro que veio a tornar-se uma espécie de “bíblia” do pensamento econômico liberal, The Wealth of Nations. [Discorrendo em 1820 (Estudos do bem comum e economia Política) sobre a política de comércio da época joanina, o “conselheiro econômico” do príncipe regente (a partir de 1816 monarca do Reino Unido), chegou a afirmar que o Brasil teria sido um fiel seguidor da doutrina liberal e da liberdade de iniciativa econômica de maneira bem mais completa e de forma ainda mais acabada do que os próprios países europeus, algo relutantes em abraçar tão esclarecida “polícia”, como escrevia ele em 1820, numa clara demonstração de anglicismo: “O Brasil […] teve a felicidade, que lhe concedeu a Divina Providência, de se fazer nele pela nova legislação a tentativa econômica de se por em prática a teoria de [Adam] Smith com tão visíveis e prósperos resultados, contra as dominantes opiniões da Europa, onde […] não é prudente, nem talvez praticável tão liberal polícia, [e onde] ainda o espírito monopolista porfia em sustentar crassos erros”.]

Muitos contemporâneos de Cairu, a começar por Hipólito, discordariam desse argumento, considerando por exemplo que as pressões diplomáticas da Grã-Bretanha em favor da liberdade de comércio eram feitas em primeiro lugar em seu próprio benefício. Com efeito, escrevendo em 1809 no Correio Braziliense (n? 9, datado de fevereiro desse ano), ainda antes, portanto, que se consumasse o instrumento diplomático que muitos consideram como uma espécie de “pecado original” da primeira diplomacia econômica conduzida a partir do Brasil, o jornalista brasileiro avaliou, antecipadamente, a inoportunidade e inconveniência de um tal acordo do ponto de vista da economia e da política do Brasil. A pretexto de comentar um nota publicada em jornal de Londres a propósito de reunião de negociantes interessados no comércio com o Brasil, na qual se tinha informado sobre negociações então em curso entre lorde Strangford e o príncipe regente, Hipólito tecia considerações sobre essas conversações, nas quais reconhecia que a parte brasileira parecia apresentar “mais reserva do que se esperava”. Ele oferecia, em primeiro lugar, reflexões sobre os aspectos comerciais desses entendimentos:

Um tratado de comércio entre o Brasil [sic] e a Inglaterra é uma das mais delicadas empresas em que pode entrar o Brasil, porque o negociador brasiliense não tem precedentes que o guiem. Os tratados que existiam entre a Inglaterra e Portugal eram fundados nos interesses mútuos de exportação dos artigos portugueses de grande consumo na Inglaterra, tais o vinho, o azeite etc., e na situação política daquele pequeno Reino, que, ameaçado constantemente por seus vizinhos, se via obrigado a solicitar a proteção da Inglaterra, ainda à custa de pesados sacrifícios. Estas duas razões cessam agora porque os produtos principais do Brasil estão longe de terem grande consumo em Inglaterra, que nela são proibidos, por causa da competência [concorrência] em que se acham com as colônias britânicas; e quanto à situação política do Brasil, este imenso território acha-se de tal maneira isolado pela natureza, que nenhuma potência lhe pode meter susto, nem causar prejuízos consideráveis, salvo a Inglaterra, embaraçando-lhe o comércio. De onde se segue que, faltando os dois princípios (do interesse mútuo e do temor) que originaram as principais estipulações dos tratados de comércio entre Portugal e Inglaterra, não podem aqueles servir de norma a este tratado do Brasil. [CB, 2: 129-30] [Ver também Carlos Rizzini, Hipólito da Costa e o Correio Braziliense (São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957 [col. Brasiliana Grande Formato, n? 13]), p. 185.]

Hipólito fazia em seguida uma série de considerações que hoje seriam consideradas como de “política industrial”, ou que de certa forma antecipavam o que mais tarde viria a escrever List sobre o argumento da “indústria infante” e a necessidade temporária de um certo protecionismo para ver prosperar um determinado ramo manufatureiro, sem o perigo de vê-lo afogado pela concorrência da indústria estrangeira. Dizia ele, nesse mesmo comentário de fevereiro de 1809:

Outra dificuldade em que se deve achar o negociador brasiliense é a impossibilidade de prever a vereda que tomarão os diferentes ramos de agricultura ou de manufaturas no Brasil, principalmente se o tratado tiver de existir em força por muitos anos; [?] suponhamos mais que antes de cinco anos algum gênio inventor descobre alguma substância vegetal ou mineral, capaz de fazer papel, estabelece uma fábrica no Brasil; esta fábrica deve ficar desde seu princípio arruinada pela importação do mesmo artigo de Inglaterra que, segundo o suposto tratado, nem se pode proibir, nem proporcionar com a fábrica interna pela adição de novos direitos de alfândega. Suponhamos outra hipótese (mui provável) de que vários artigos que agora se tem de receber de Inglaterra, são oferecidos dos Estados Unidos a mais cômodo preço: será político que o Governo Brasiliense se constitua agora na necessidade de não aceitar depois aquela vantajosa oferta?

É logo uma das considerações importantíssimas do negociador brasiliense a probabilidade que há de que tais ou tais artigos se possam, com o tempo, manufaturar no Brasil ou importar de países donde resultem mais vantagens que da Inglaterra. Até que ponto os homens de talentos e ciência política, que passaram com a Corte para o Brasil, estarão em circunstâncias de conhecer a fundo o estado atual da agricultura e indústria do Brasil não se pretende por hora decidir; mas até aqui é certíssimo que as circunstâncias atuais da indústria do Brasil eram mui pouco conhecidas em Portugal; e os produtos naturais do País totalmente ignorados; de maneira que por mais talentos e perspicácia que suponha no negociador brasiliense, se ele não tiver a mais profunda experiência das produções do Brasil, e [o] provável caminho que tomarão os diferentes ramos da indústria, arrisca-se seguramente a lançar os grilhões àquele país, de maneira que o reduza a uma senão perpétua, pelo menos mui duradoura, dependência das nações estrangeiras. [CB, 2: 130-31] [Talvez dirigindo-se diretamente a seu antigo protetor e então ministro dos Negócios Estrangeiros na Corte do Rio de Janeiro, Linhares, Hipólito acrescentava: “Mas é possível, dir-me-ão, achar-se entre os grandes políticos, que foram para o Brasil, um homem que, conhecendo a fundo o estado atual daquele País, e sabendo conjeturar com justeza a possível vereda que levará a indústria dos brasilienses, possa comparar os males que resultam de certas estipulações comerciais, com o bem que se pode obter das ofertas que a Inglaterra fizer para sua compensação” (CB, 2: 130-31; grifo no original).]

Essas posições, expressas por Hipólito de maneira tão clara, dariam origem a uma verdadeira escola de pensamento, se não protecionista e industrializante, pelo menos desconfiada do livre-cambismo e da abertura irrestrita, postura que influencia ainda hoje o universo doutrinal e político das elites dirigentes brasileiras, como observado em relação às negociações comerciais multilaterais ou hemisféricas (no âmbito da projetada área de livre-comércio das Américas, por exemplo). Com efeito, a partir de Hipólito, a maior parte dos cronistas e historiadores tem palavras candentes em relação ao tratado de comércio com a Inglaterra, por vezes repetindo textualmente o que ele escreveu nas páginas do Correio Braziliense.

Hipólito analisou o tratado de 1810 não apenas com sua tradicional perspicácia e rigor pelo detalhe, mas também com seu conhecimento muitas vezes pessoal dos próprios negociadores e suas posturas respectivas em relação aos interesses ingleses em Portugal e no Brasil. Como resumido por Mecenas Dourado, Hipólito realiza, em relação a esse instrumento diplomático, “crítica pertinente e minuciosa, indo até aos equívocos da tradução de palavras, cuja interpretação, em alguns casos, importava em prejuízo para Portugal. Conclui que os negociadores portugueses ? d. Domingos [representante português em Londres] e o irmão d. Rodrigo [Linhares] ? não agiram só com ignorância, mas com o desejo manifesto de serem agradáveis à Inglaterra, traindo a nação e o príncipe. E quando o próprio d. João reconhece a impraticabilidade de certas cláusulas, que deviam ser revistas, Hipólito não perde a oportunidade de voltar ao assunto para reivindicar para si a glória de suas razões iniciais quando todo mundo batia palmas e agora reconhecidas precedentes” [CB, 21: 113; 25: 543]. [Apud M. Dourado, op. cit., t. 2, pp. 425-26.]

A historiografia brasileira subsequente, praticamente do século XIX à atualidade, seguirá Hipólito quase que de maneira unânime, muitas vezes, inclusive, sem registrar a paternidade dos argumentos. Mesmo os historiadores conservadores registram sua contrariedade. Varnhagen consignou, por exemplo, que o negociador português “admitiu estipulações contrárias à dignidade nacional”. [Varnhagen, História geral do Brasil (3? ed., t. 5, p. 135), apud Roberto Macedo, Brasil sede da monarquia, Brasil Reino, 1? parte, vol. 7 da História administrativa do Brasil (coord. Vicente Tapajós. 2? ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília/FUNCEP, 1983), p. 64.] Segundo a opinião de Rocha Pombo, “[n]ão há dúvida que o tratado de comércio foi um erro de que se desaperceberam os conselheiros do príncipe”. [Rocha Pombo, op. cit., vol. 4, p. 310.] O mais famoso historiador do período joanino, Oliveira Lima, reconhece ? no seu Dom João VI no Brasil ? a dificuldade de se concluir, naquelas circunstâncias, um acordo eqüitativo, afirmando que o tratado de 1810 “foi franca e inequivocamente favorável à Grã-Bretanha”. Contestando mais adiante, em sua obra sobre o Império, o princípio da “perfeita reciprocidade” de tratamento dos súditos, produtos e navios das duas nações com respeito a quaisquer impostos, tributos e direitos alfandegários e despesas nos portos (artigos 3, 4, 5 e 7), Lima considerou que a reciprocidade “deste regime de verdadeiro favor, pois que era exclusivo, não passava de ilusória”, uma vez que os gêneros brasileiros análogos aos produtos coloniais britânicos “eram aduaneiramente excluídos do mercado inglês”. [Cf. Oliveira Lima, Dom João VI no Brasil (3? ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996), p. 246.]

De fato, Oliveira Lima nada mais fazia senão repetir o que Hipólito havia escrito, como vimos, de maneira inclusive premonitória. Baseando-se extensivamente em Hipólito, Oliveira Lima afirma: “As condições exaradas no convênio de 1810 significavam a transplantação do protetorado britânico, cuja situação privilegiada na Metrópole era consagrada na nossa esfera econômica e até se consignava imprudentemente como perpétua. A falta de genuína reciprocidade era absoluta e dava-se em todos os terrenos, parecendo mesmo dificílima de estabelecer-se pela carência de artigos que se equilibrassem nas necessidades do consumo, sendo mais precisos no Brasil os artigos manufaturados ingleses do que à Inglaterra as matérias-primas brasileiras. Dava-se ainda a desigualdade na importância que respectivamente representavam suas exportações para os países produtores, constituindo a Inglaterra o mercado quase único do Brasil, ao passo que aquela nação dividia por muitos países os seus interesses mercantis”. [Cf. Dom João VI, op. cit., p. 251.]

Segundo Pandiá Calógeras, que aponta o “triunfo diplomático e financeiro para as praças exportadoras da Grã-Bretanha” e a “gravidade dos atos então subscritos”, “é inegável que [o tratado de 1810] foi um erro de política econômica”. [Cf. J. Pandiá Calógeras, A política exterior do Império (Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão/Câmara dos Deputados/Companhia Editora Nacional, 1989), vol. 1: “As origens”, pp. 342 e 346; mas, ele reconhece que o tratado de comércio “foi vantajoso à população, que poude adquirir utilidades por preços mais baixos (…)”.] Roberto Simonsen é igualmente condenatório: “Não era essa, infelizmente, a política comercial que conviria a um país como o nosso, que apenas iniciava a sua economia independente. Tínhamos que abraçar, àquele tempo, política semelhante a que a nação norte-americana seguiu no período de sua formação econômica. Produtores de artigos coloniais, diante de um mundo fechado por ?políticas coloniais?, tornamo-nos, no entanto, campeões de um liberalismo econômico na América”. [Cf. R. Simonsen, op. cit., p. 260.]

O historiador econômico Denio Nogueira, avaliando o impacto real do tratado de 1810, critica a aversão sem fundamentos de muitos historiadores brasileiros, tais como Oliveira Lima, Roberto Simonsen, Prado Júnior, Celso Furtado ou Nícia Vilela Luz, aos chamados efeitos desindustrializantes desse acordo. “É impossível avaliar o que teria ocorrido no Brasil, na ausência do Tratado de Comércio e Navegação de 1810. Não é improvável, porém, que o progresso do país se tivesse retardado ainda mais, sem qualquer benefício significativo, em termos de industrialização”. [Ver Denio Nogueira, Raízes de uma nação: um ensaio de história sócio-econômica comparada (Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988), p. 193.] Nogueira cita em seu apoio o próprio Celso Furtado, para quem “[o] desenvolvimento dos EUA, a fins do século XVIII e primeira metade do XIX, constitui um capítulo integrante do desenvolvimento da própria economia européia, sendo em muito menor grau o resultado de medidas internas protecionistas adotadas por essa nação americana. O protecionismo surgiu nos EUA, como sistema geral de política econômica, em etapa já bem avançada do século XIX, quando as bases de sua economia já se haviam consolidado”. [Cf. Celso Furtado, Formação econômica do Brasil (14? ed. São Paulo: Nacional, 1976), p. 100. De fato, pela primeira tarifa norte-americana de 1789, “os tecidos de algodão pagavam tão somente 5% ad valorem, e a média de todas as mercadorias era de 8,5%”; ajustes posteriores foram feitos, no sentido de elevar a tarifa, mas numa época “em que a indústria têxtil norte-americana já se podia considerar consolidada” (Idem, loc. cit.).] Continua Nogueira: “Em abono dessa tese, conviria lembrar que as tarifas alfandegárias adotadas pelos Estados Unidos da América, em 1789, foram ainda mais baixas, sem contudo prejudicar a instalação de novas indústrias”. [Cf. D. Nogueira, op. cit., p. 193. Caberia considerar, para a época, o custo relativamente mais elevado dos transportes no preço final das mercadorias.]

Nogueira trata, em contrapartida, da “questão mais importante, ligada ao Tratado [e que] não foi devidamente registrada pela historiografia brasileira. Trata-se da significativa redução da receita fiscal com que a regência se defrontou, em virtude do mesmo. Ainda assim, é pelo menos discutível que aquela conseqüência possa ser integralmente atribuída à diminuição das alíquotas”. [D. Nogueira, op. cit., p. 196.] Na verdade, Mircea Buescu já tinha chamado a atenção para esse fato: “Um dos efeitos mais graves da queda das importações e da incidência aduaneira de 15% foi o impacto sobre a receita pública, uma vez que o imposto sobre importação constituía a principal fonte da receita. Em 1808, ele representava 34% da receita ? em 1820, não passava de 14%”. [Cf. Mircea Buescu, Evolução econômica do Brasil (2? ed. Rio de Janeiro: APEC, 1974), p. 109.]

O próprio Roberto Simonsen chegou a reconhecer, em relação ao tratado de 1810, que, “considerada isoladamente da de Portugal, a situação comercial do Brasil lucraria com qualquer acordo mercantil que se tornasse o complemento da profícua abertura dos seus portos ao tráfico estrangeiro. […] Para o Brasil, o essencial era estabelecer relações comerciais diretas com outros países e ativá-las o mais possível, melhor lhe resultando ainda assim de toda a falta de reciprocidade do convênio Stranford-Linhares do que da decaída tutela nacional [isto é, portuguesa], que obstava a qualquer desafogo econômico”. [Cf. R. Simonsen, op. cit., p. 257.]

Tamanho foi o impacto do tratado de fevereiro de 1810 que o príncipe regente ? ou alguém por ele, talvez o próprio Cairu ? tratou de justificá-lo por meio de um manifesto, no mês de março seguinte, no qual figuram argumentos que ilustrariam qualquer proclamação ideológica em favor da liberdade de comércio. Com efeito, seus termos estão vazados em conceitos doutrinários de economia política que fariam inveja ao estilo de um Adam Smith, ainda que o filósofo escocês não tenha sido expressamente citado.

O manifesto, dirigido ao clero, nobreza e povo, começa por examinar as circunstâncias infelizes da transplantação obrigatória da sede da Monarquia, afirmando o soberano que foi então “necessário procurar elevar a prosperidade daquelas partes do Império livres de opressão […]”, inclusive para “concorrer às despesas necessárias para sustentar o lustre e esplendor do trono”, bem como para assegurar sua defesa contra os inimigos. “Para este fim, e para criar um Império nascente, fui servido adotar os princípios mais demonstrados da sã economia política, quais o da liberdade e franqueza do comércio, o da diminuição dos direitos das alfândegas, unidos aos princípios mais liberais, e de maneira que, promovendo-se o comércio, pudessem os cultivadores do Brasil achar o melhor consumo para o seus produtos […].” Este seria, segundo d. João, o mais essencial modo de o fazer prosperar, e de muito superior ao sistema restrito e mercantil” do pacto colonial, “pouco aplicável a um país onde mal podem cultivar-se por ora as manufaturas, exceto as mais grosseiras”; defendendo o sistema liberal de comércio, ele assevera que a diminuição dos direitos de alfândega

[…] há de produzir grande entrada de manufaturas estrangeiras; mas quem vende muito, também necessariamente compra muito e para ter grande comércio de exportação, é necessário também permitir grande importação, e a experiência vos fará ver que, aumentando-se a vossa agricultura, não hão de arruinar-se as vossas manufaturas na sua totalidade, e se alguma houver que se abandone, podeis estar certo que é uma prova que esta manufatura não tinha bases sólidas, nem dava vantagem real ao Estado. […] Assim [pelo sistema liberal] vereis prosperar a vossa agricultura, progressivamente formar-se uma indústria sólida em que nada tema das rivalidades de outras nações, levantar-se um grande comércio e uma proporcional marinha e vireis a servir de depósito aos imensos produtos do Brasil, que crescerão em virtude dos princípios liberais que adotei, de que enfim resultará uma grandeza da prosperidade nacional de muito superior a toda aquela que antes se vos podia procurar, apesar dos esforços que sempre fiz para conseguir o mesmo fim e que eram contrariados pelo vício radical do sistema restritivo, que então se julgava favorável, quando realmente era sobremaneira danoso à prosperidade nacional. A experiência do que sucedeu sempre às nações, que na prática mais se adaptaram aos princípios liberais, afiançam a verdade destes princípios. [Transcrito em R. Macedo, op. cit., pp. 68-71.]

Após o tratado de fevereiro de 1810, o comércio exterior do Brasil ficou assim organizado: ficavam livres de direitos as mercadorias estrangeiras que já tivessem pago taxas em Portugal, assim como os artigos da maior parte das colônias portuguesas; pagariam 24% ad valorem as mercadorias estrangeiras transportadas diretamente em navios estrangeiros; 16% as mercadorias portuguesas e as estrangeiras transportadas em navios portugueses; 15% as mercadorias britânicas transportadas sob pavilhão britânico ou português (esta última disposição adotada por decreto, apenas em outubro desse ano, para não prejudicar ainda mais a marinha mercante do Reino). Um imposto de exportação foi também criado em 1808, mas pouco rendeu em virtudes das muitas isenções que foram feitas aos principais gêneros de exportação; o próprio tratado de comércio anglo-lusitano “contribuiu mais para uma evasão de rendas do que para a melhor arrecadação de impostos”, uma vez que a cobrança das taxas ad valorem se devia fazer pelo preço das faturas, o que dava margem a fraudes. [ Cf. Dorival Teixeira Vieira, “Política financeira ? o primeiro Banco do Brasil”, em Sérgio Buarque de Holanda (coord.), op. cit., t. 2, pp. 100-18, cf. pp. 101 e 103-04.]

Do ponto de vista do interesse imediato do Brasil, o tratado teve o efeito de fazer baixar o custo de vida, mas no que se refere as suas relações comerciais, ele parece ter constituído um obstáculo ao estabelecimento de laços comerciais com outros países. Preso, como diz Oliveira Lima, pelas “disposições leoninas do tratado de 1810”, Portugal procurou compensação ao acentuar em sua legislação aduaneira uma tendência protecionista, manifesta na imposição, em 1818, de direitos ampliados a todas as importações sem exceção, mesmo pertencentes à família real, “sendo declarados suspensos por 20 anos todos os privilégios e isenções”. [Cf. O. Lima, op. cit., pp. 264-65.]

Ao mesmo tempo, os direitos sobre os produtos portugueses baixaram de 16% para 15%, equiparando-se portanto aos ingleses; eles chegaram mesmo a gozar de uma redução de 5% a título de prêmio, “decretando-se igual favor para os gêneros estrangeiros importados em navios portugueses”. [O. Lima, op. cit., p. 265.] Os comerciantes eram evidentemente obrigados a liquidar o movimento comercial em moeda metálica, ou seja, em ouro, cujo êxodo se fazia portanto através dos saldos negativos do intercâmbio. A paridade metálica entre a libra esterlina e a moeda portuguesa de 6$400 flutuou bastante no período joanino, oscilando em torno de 60 pence por mil réis, mas apresentando picos de valorização ou de baixa em função da conjuntura econômica e política em ambos os países. Como diz o historiador Roberto Simonsen, “a libra havia se enfraquecido com as campanhas napoleônicas; mas, depois de 1815, com o restabelecimento do padrão ouro na Inglaterra, declinaram rapidamente as taxas de câmbio luso-brasileiras”. [Cf. R. Simonsen, op. cit., p. 264.]

Aparentemente, a hipótese do protecionismo comercial, como princípio de diplomacia econômica ou de política industrial, não poderia ser colocada para o Brasil nessa conjuntura histórica, cingido como estava o país a uma situação de dependência num quadro de relações privilegiadas mantidas entre Portugal e Grã-Bretanha. Essa situação se prolongaria durante as primeiras décadas da vida independente, não sem os protestos de uma classe política rapidamente convencida da iniqüidade do sistema de tratados comerciais. [Ver Paulo Roberto de Almeida, Formação da diplomacia econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império (São Paulo: Editora Senac, 2001).] A contestação parlamentar se daria obviamente apenas a partir da independência e da instalação da Assembléia Geral, num contexto em que o primeiro imperador tendia a desconhecer as inclinações da opinião pública e negociava de seu próprio alvitre ? em alguns casos sem submetê-los à aprovação parlamentar ? tratados de aliança e acordos de comércio com as potências amigas, a começar pela própria Grã-Bretanha, que tinha visto o tratado de 1810 ser confirmado na independência e renovado por novo instrumento bilateral em 1827.

Na fase final de seu trabalho como editor do Correio Braziliense, mais precisamente em julho de 1822, Hipólito veio a assumir novo posicionamento em relação à independência do Brasil, posto que ele era favorável, até a ocorrência da Revolução do Porto e a “Constituinte” portuguesa, à continuidade da união política entre Portugal e o Brasil sob a forma de uma monarquia constitucional. Ele temia acima de tudo uma “independência intempestiva” ou o retorno do Brasil a uma situação de colônia. Sua mudança de atitude se deu no quadro dos debates nas Cortes portuguesas, formadas a partir da Revolução de 1820, quando são discutidas diversas medidas no sentido de “recolonizar” o Brasil.

Sob veementes protestos dos representantes brasileiros [os deputados brasileiros encontravam-se em situação de nítida inferioridade em relação aos representantes portugueses, pois, dos 69 originalmente eleitos no Brasil, apenas 46 puderam participar dos trabalhos; nas Cortes de Lisboa, os assuntos brasileiros eram discutidos numa comissão teoricamente paritária, mas alguns desses representantes “brasileiros” votavam manifestamente em conluio com os deputados portugueses; assim, é rejeitada a Universidade do Brasil, sob o argumento de “ser suficiente a existência de escolas primárias na parte americana da Monarquia”; da mesma forma, são estabelecidas juntas governativas nas províncias brasileiras, que seriam diretamente subordinadas a Lisboa], o regime econômico descortinado para o Brasil pelos constituintes, sob influência direta dos comerciantes portugueses, pretendia, tão simplesmente: reservar à marinha portuguesa a navegação entre todos os territórios do Reino Unido, conceder nova exclusividade aos vinhos e aguardentes portugueses no mercado brasileiro e, reciprocamente, aos produtos coloniais brasileiros no mercado português, e isentar de tarifas todas as exportações de manufaturados portuguesas importados no Brasil. Hipólito seguiu de perto as diferentes peripécias das Cortes Constituintes e, ao constatar que se intentava fazer leis apenas para os portugueses de Portugal, chegou a advertir: “Esta omissão nos parece um passo decisivo para a separação de Portugal do Brasil, o que na verdade sentimos que venha a ser um dos efeitos desta revolução” [CB, 25: 707]. [Apud M. Dourado, op. cit., t. 2, p. 331.] A conformação tentativa de uma nova modalidade de pacto colonial em muito acelerou o processo de independência no Brasil. Com efeito, o projeto de regulamentação das relações comerciais Brasil-Portugal, tomado no âmbito da Constituinte lusitana, “foi a última resolução de caráter econômico tomada pela antiga metrópole em relação ao Brasil colonial”. [Cf. José Gabriel de Lemos Brito, Pontos de partida para a história econômica do Brasil (3? ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional/INL-MEC, 1980), p. 405. Segundo esse projeto, os produtos estrangeiros que entrassem no Brasil passariam a pagar direitos de 55% ad valorem, ao passo que os impostos de exportação aplicados a produtos brasileiros vendidos a terceiros países passariam a pagar 12%; idem, p. 403.] Quando ele foi aprovado, contudo, o Brasil já tinha declarado sua independência.

Ao conformar-se a independência do Brasil, Hipólito estava dando por encerrada sua missão de informador crítico e de defensor da liberdade de imprensa no Brasil. Antes de sair de cena como editor ? e ao preparar-se para assumir o cargo de representante consular do Brasil em Londres, agregando ainda um título de adido diplomático ?, ele não deixa de abordar o problema mais crucial da nacionalidade brasileira, o regime de trabalho servil, que tantos serviços prestou à classe senhorial (e à própria economia em formação) e que tantos malefícios representou para sua estrutura social e sua evolução cultural e educacional. Ele já tinha tratado do problema do tráfico e da escravidão no momento dos acordos de Paris, em 1815, que tendiam a limitar o tráfico ao sul do Equador, como etapa prévia à sua completa proibição e como preparação à interdição ulterior da própria escravidão.

Escrevendo em outubro de 1815, ele manifesta sua convicção em uma próxima resolução da própria instituição servil: “Está por fim chegado o tempo em que esta questão da escravatura deve ser decidida afinal” [CB, 15: 735-39]. [Apud M. Dourado, op. cit., t. 2, p. 530.] Ele tinha consciência, porém, dos problemas imediatos em termos de mão-de-obra e de carestia de vida, mas recomendava corrigir esses problemas mediante a introdução de maquinaria e pela promoção da imigração européia. Hipólito volta ao tema depois de proclamada a independência, apontando a contradição entre o objetivo de se ter uma nação livre e a nefanda instituição. Os brasileiros, escrevia ele em novembro de 1822, “devem escolher entre estas duas alternativas: ou eles nunca hão de ser um povo livre, ou hão de resolver-se a não ter consigo a escravidão. [?] um homem educado com escravos não pode deixar de olhar para o despotismo como um ordem de coisas natural [?] a maioria dos homens que são educados com escravos deve ser inclinada à escravidão e quem se habitua a olhar para o seu inferior como escravo, acostuma-se também a ter um superior que o trate como escravo” [CB, 15: 735-39]. [Apud M. Dourado, op. cit., t. 2, pp. 532-33.]

Hipólito esperava que o problema da escravidão fosse ser resolvido em poucos anos, ao consolidar-se a autonomia do novo Estado e organizada em novas bases a economia nacional. Ao morrer em 1823, ele não poderia adivinhar que o problema da escravidão tomaria duas gerações mais, 66 anos adicionais, para ser resolvido de maneira imperfeita. Otimista, mas cauteloso, ele concluía esse comentário com palavras que tinham verdadeira vocação profética em relação ao futuro do Brasil: “Da continuidade da escravatura no Brasil deve sempre resultar uma educação que fará os homens menos virtuosos e mais suscetíveis a submeterem-se ao governo arbitrário de seus superiores” [CB, 15: 735-39]. [Apud M. Dourado, op. cit., t. 2, p. 533.]

Como forma de encaminhar a questão da carência de mão-de-obra de maneira algo mais permanente do que a importação sempre renovada de escravos “boçais”, Hipólito, como muitos outros dirigentes esclarecidos dessa época, a começar pelo próprio Andrada, recomendava a implementação de um programa abrangente de imigração de agricultores europeus. O tema comparece em diversos números do Correio, mas seria apenas no início de 1823, já interrompida no mês de dezembro anterior a edição do Correio Braziliense, que Hipólito elabora um plano preliminar cobrindo diversos aspectos da ocupação racional do território brasileiro. O documento, que tinha como título “Apontamentos para um plano de Correios, Estradas e Colonização do Brasil”, foi remetido por mala diplomática de Londres ao próprio José Bonifácio, em fevereiro de 1823, integrando hoje as coleções do Arquivo Histórico do Itamaraty. [Legação do Brasil em Inglaterra, Despachos Ostensivos, 1822-23, AHD, apud M. Dourado, op. cit., t. 2, p. 535.]

Para atender à implementação das medidas que ele propunha, Hipólito sugeria a adoção de estrutura administrativa própria, sob a forma de uma repartição pública dividida em três seções: a) correios, estradas, pontes, barcos de passageiros; b) terras, registro de propriedades de raiz e estatísticas do país; c) imigração, colonização, cultura de terras e lavra de minas. Reconhecendo que talvez fosse difícil ter uma repartição autônoma para esses diferentes serviços, ele propunha que o encargo ficasse provisoriamente com a secretaria do exterior: “A vasta importância deste objetos, num país tão extenso e tão pouco povoado como é o Brasil, requer o cuidado de uma repartição exclusiva, mas como por ora as relações diplomáticas sejam as que menos tempo ocupem, pode este trabalho anexar-se com muita propriedade ao Ministério dos Negócios Estrangeiros”. [Loc. cit.]

Como vários contemporâneos, Hipólito mantinha a crença que se deveria desestimular a vinda de comerciantes ? preconceito que seria ostentado pelas elites do Brasil até praticamente o final da Segunda Guerra Mundial ?, dando preferência aos agricultores europeus, os únicos que poderiam realizar o objetivo prioritário: a ocupação do solo. Desde 1813 ele expressava essa opinião: “Os únicos estrangeiros que freqüentam agora o Brasil são os negociantes, a pior sorte de população que ali pode entrar, porque o negociante estrangeiro que ali chega não possui outra pátria senão a carteira e o seu escritório, chega, enriquece-se e vai-se embora morar no seu país natal ou aonde lhe faz mais conta” [CB, 10: 374-76]. [Apud M. Dourado, op. cit., t. 2, p. 536.] Hipólito recomendava a importação de artistas, mineiros, pescadores, homens de letras, que viessem ensinar, difundindo a instrução, e, sobretudo, de agricultores, a serem atraídos por medidas apropriadas. Em seu plano de 1823, ele recomendava criar companhias por ações às quais seriam distribuídos lotes (sesmarias), nos quais seriam estabelecidos núcleos urbanos, bancos de depósito e desconto (inclusive com a faculdade de emitir dinheiro válido nesse território) e que contariam com isenção alfandegária para a importação de instrumentos agrícolas e de mineração, máquinas diversas, durante um prazo de 25 anos. A companhia pagaria ao governo o dízimo da produção agrícola e o quinto da mineração e ajudaria na manutenção de estradas e pontes. Finalmente, Hipólito recomendava que se transferisse a capital do Rio de Janeiro para o interior, menos por razões militares do que para atender objetivos de ordem econômica e demográfica.

A despeito da pregação de homens como Hipólito, o protecionismo tarifário e as políticas comerciais “substitutivas”, tais como praticados no Brasil do século XIX, foram, além de ineficazes na prática, essencialmente subprodutos involuntários das dificuldades estruturais do Tesouro, cujas necessidades fiscais levavam à própria taxação das exportações. O protecionismo tarifário, aplicado de maneira algo errática ao longo de quase meio século de Segundo Império, não conseguiu, de fato, desenvolver a indústria, nem satisfez inteiramente as necessidades da lavoura. Medidas adotadas em determinadas épocas para favorecer setores industriais, ou melhor, certas fábricas, apresentaram características mercantilistas, como não deixou de sublinhar uma estudiosa da questão. [Cf. Nícia Vilela Luz, A luta pela industrialização do Brasil: 1808 a 1930 (2? ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1975), p. 38.]

O Brasil tinha iniciado a vida independente com uma camisa de força comercial, a “tarifa inglesa”, depois generalizada para o conjunto dos acordos comerciais. Eliminado, a partir da Regência, esse obstáculo ao aumento das receitas públicas, as autoridades fazendárias passaram a evitar o comprometimento com níveis tarifários inscritos em tratados. Se o princípio permaneceu bem assentado na política comercial então desenhada, sua prática foi tão ciclotímica quanto o comportamento dos orçamentos do Estado ou o movimento errático do câmbio. As orientações das tarifas misturaram princípios liberais, inspirados nos “saudáveis princípios da livre concorrência”, com a busca eventual de uma proteção a determinadas indústrias.

Desde a adoção da primeira pauta protecionista por Alves Branco, em 1844, o Brasil passou por várias reformas aduaneiras, a maior parte delas de cunho fiscal. As tarifas Alves Branco não subsistiram muito tempo, tendo sido alteradas já no período da conciliação (1857), pelo ministro da Fazenda João Maurício Wanderley (Cotegipe), alegadamente com vistas a defender os interesses da agricultura e dos consumidores de modo geral. Apenas no período ulterior a 1860, já refletindo preocupações da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, serão as tarifas elevadas para um nível médio de 50%. [Ver Nícia Vilela Luz, “As tentativas de industrialização no Brasil”, em Sérgio Buarque de Holanda (coord.), História geral da civilização brasileira (2? ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1974), t. 2: “O Brasil monárquico”, vol. 4: “Declínio e queda do Império”, pp. 28-41, cf. p. 35.] Na verdade, o objetivo protecionista era de certa forma secundário à necessidade de maiores receitas para o Estado.

O debate econômico começa a demonstrar o comprometimento de setores da opinião pública com a instalação de indústrias, como tinha pregado Hipólito desde 1808. Os argumentos utilizados eram semelhantes aos que, em conjuntura não muito distante, esgrimiu Hipólito e que, segundo o princípio da proteção à “indústria infante”, viria a preconizar o economista alemão Friedrich List, que tinha aperfeiçoado seu aprendizado econômico nos Estados Unidos. No livro Sistema nacional de economia política, publicado em 1841, List afirmava, mediante conceitos que não seriam estranhos a Hipólito, que a concorrência entre duas economias deveria ocorrer em patamares similares, justificando-se, no caso de países atrasados, a adoção de medidas adequadas para aumentar a capacitação industrial para o enfrentamento da competição estrangeira:

A livre concorrência entre duas nações altamente civilizadas só pode ser mutuamente benéfica no caso de ambas estarem em um grau de desenvolvimento industrial mais ou menos igual; ao contrário, qualquer nação que, em razão de reveses [ele pensava na Alemanha pós-napoleônica], estiver atrasada em relação a outras, do ponto de vista industrial, comercial e naval, embora possua os meios mentais e materiais para desenvolver-se, deve antes de tudo aumentar e consolidar seus próprios poderes individuais para aparelhar-se a entrar na livre concorrência com nações mais evoluídas. [Cf. Friedrich List, Nazionaler System der Volkswirtschaftslehre (1841), consultado na edição brasileira: Sistema nacional de economia política (São Paulo: Nova Cultural, 1989), pp. 3-4.]

Não se sabe em que medida, e com que grau de aceitação, a elite governante brasileira foi influenciada por suas idéias, mesmo se estudiosos da história da economia política no Brasil chegaram a ver no visconde de Cairu, um antecessor teórico de List. Tal parentesco analítico, em relação ao autor dos Princípios de economia política (1804) e das Observações sobre a franqueza da indústria e estabelecimento de fábrica no Brasil (1810), pode parecer indevido, sobretudo porque Cairu defendia sem rebuços o liberalismo econômico. Essa “filiação” intelectual é ainda mais estranha num país no qual parte da classe dominante via nas atividades agrícolas a fonte exclusiva de todo valor, como tinham pregado desde o século anterior os fisiocratas. Em todo caso, Cairu não foi um simples imitador das idéias de Smith, Malthus ou Ricardo, e menos ainda um adepto do laissez faire, laissez passer.

O primeiro titular de uma cadeira de economia política no Brasil ? nunca efetivada, é verdade ? elaborou, por certo, uma consistente obra de crítica inovadora da economia política articulada essencialmente em torno dos grandes princípios do liberalismo econômico e da liberdade de comércio, temperados, entretanto, pela afirmação da primazia de “práticos direitos sociais” sobre os “vagos direitos individuais”, aceitando por exemplo que se fizessem as necessárias restrições à liberdade natural em nome do interesse do bem público. Cairu defendeu, sobretudo, uma política inteligente de promoção da indústria, combinada ao desenvolvimento tecnológico e à qualificação do trabalho pelo conhecimento. Com efeito, se, dentre os fatores de produção, os fisiocratas viam apenas a terra como a causa principal da riqueza das nações, ao que Adam Smith agregaria o trabalho e a Escola de Manchester o capital, José Maria Lisboa incorporaria o elemento da inteligência. [Ver a “Introdução” de José Almeida a José da Silva Lisboa, visconde de Cairu, Estudos do bem comum e economia política ou Ciência das leis naturais e civis de animar e dirigir a geral indústria e promover a riqueza nacional e prosperidade do Estado (Rio de Janeiro: IPEA/INPES, 1975 [1a. ed., 1819-20]).] Os autores comentados por Cairu eram Smith, Malthus, Ricardo, Quesnay, Sismondi, Say, Bentham, ademais de homens públicos como Franklin e Lauderdale. Mais adiante aparecem os nomes de James Mill e de seu filho John Stuart.

Em 1877, a Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional sistematiza o debate que tinha lugar entre os promotores do liberalismo comercial e os propugnadores da indústria nacional. Segundo um relatório publicado em seu boletim, O Auxiliador da Indústria Nacional, os membros da Seção Fabril reconheciam que os países se dividiam entre a tendência “liberal”, ou partidários da Escola de Manchester, e o sistema “protetor ou proibitivo, ou dos Estados Unidos”, sendo que o liberal era aquele “para o qual devem tender todas as nações cultas”. Mas, “no estado atual do mundo e para as nações ainda novas, a liberdade comercial, em vez dos salutares efeitos, a que está destinada, traz ao contrário o perigoso mal da perda da sua autonomia”. O segundo sistema, “é ao contrário do precedente, o meio mais seguro de elevar os países novos ao nível da nação preponderante, e sob este ponto de vista constitui o mais poderoso promotor da associação dos povos, por conseqüência, da verdadeira liberdade comercial. para a qual tende ou deve tender”. [Cf. Edgard Carone, O Centro Industrial do Rio de Janeiro e sua importante participação na economia nacional, 1827-1977 (Rio de Janeiro: Centro Industrial do Rio de Janeiro/Editora Cátedra, 1978), pp. 54-55.] Os defensores do liberalismo comercial, por sua vez, costumavam sustentar seus argumentos com citações tiradas dos livros de Cairu.

As idéias protecionistas de List e Carey, que faziam a defesa doutrinária do nacionalismo industrial, foram introduzidas no Brasil a partir dos cursos de Luís Vieira Souto na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, depois de 1880. [Ver Dorival Teixeira Vieira, “A história da ciência econômica no Brasil”, em Mário Guimarães Ferri & Shozo Motoyama, História das ciências no Brasil (São Paulo: Edusp, 1981), vol. 3, pp. 347-72, cf. pp. 354-56. A cadeira de economia política criada por d. João para Cairu não chegou a ser efetivada, mas outros professores, em Recife e alhures, utilizavam obras de William Petty, Jean-Baptiste Say, Adam Smith, Malthus, James Mill e seu filho John Stuart Mill, David Ricardo e Godwin; idem, pp. 352-53.] Contornando o debate, as autoridades tomavam decisões com base num singular pragmatismo, como referido em declarações do visconde do Rio Branco em reunião da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, em 1877:

As idéias que felizmente predominaram entre os nosso consócios, são as que proclamam a liberdade comercial como regra, sem prejuízo de algum fator restrito e temporário às indústrias nacionais, que o merecem, por sua natureza ou importância de atualidade, e condições especiais. Sua opinião fixa-se nesse meio termo”, que significa a promoção das indústrias nacionais que já existem, “mas sem excluir a concorrência estrangeira, que deve despertar o seu zelo, estimular os seus melhoramentos e suprir a deficiência de sua produção. [Cf. Edgar Carone, op. cit., pp. 60-61. O professor Vieira Souto, se torna, não por acaso, membro da diretoria do Centro Industrial do Brasil, sucessor, em 1904, da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (idem, p. 75).]

Nas revisões tarifárias adotadas desde 1857, combinavam-se a preocupação com os interesses dos consumidores ? isto é, dos proprietários de terras ? com objetivos moderadamente protecionistas. Depois dos “exageros” da tarifa Alves Branco, as correções subseqüentes procuraram diminuir os direitos de importação e, mesmo quando se decretava um aumento nos percentuais dos direitos de exportação, por absoluta necessidade fiscal, sempre se anunciava a intenção de rebaixá-los posteriormente ou de eliminá-los totalmente. Grosso modo, a “indústria”, no Brasil, foi mais protegida pelas necessidades do Tesouro do que como resultado de uma política consciente nos terrenos comercial e industrial por parte do governo.

O debate a respeito das virtudes respectivas do protecionismo e do livre-cambismo, jamais resolvido no plano teórico, continuou intenso durante todo o Segundo Reinado, ecoando aquele igualmente importante entre os metalistas e os papelistas a propósito da política monetária e testemunhando, finalmente, do caráter bastante pragmático e de fato muito pouco doutrinário das elites dirigentes do Império. Deve-se, portanto, tomar com circunspecção o relativo sucesso do protecionismo proclamado pelos poucos “industrializantes” à la List, tanto porque dificilmente poderiam ser encontrados numerosos representantes de uma suposta “burguesia industrial emergente”. Muito embora certas pautas aduaneiras possam ter sido concebidas com o objetivo de proteger similares nacionais eventualmente existentes em alguns setores, as tarifas desempenharam, durante todo o Império (e também na velha República), um papel essencialmente fiscal, o que pode ser indiretamente confirmado pelo fato de que os direitos eram igualmente aplicados à exportação de mercadorias.

Hipólito foi uma figura humana à qual usualmente se tem por costume chamar de “personalidade renascentista”, ou seja, um homem completo, versado nas mais diferentes formas de saber e empregando o conhecimento em prol do estabelecimento de políticas públicas racionais e razoáveis do ponto de vista do interesse nacional. Em seu “armazém literário”, ele “versou e debateu”, no dizer de Mecenas Dourado, “quase todos os problemas fundamentais que interessavam as necessidades e a cultura do seu tempo”. [Cf. M. Dourado, op. cit., t. 2, p. 583.] Tinha muito forte o sentido da história e de fato pretendeu, durante uma certa época, escrever uma história do Brasil, o que pode ter demovido da mesma pretensão outra grande personalidade pública desse período, José Vicente Lisboa, o futuro visconde de Cairu.

Como ainda discute Mecenas Dourado, Hipólito tinha como princípios ordenadores das soluções práticas que se poderia conceber para responder aos problemas sociais duas grandes categorias: a educação pública e o ensino e a prática da economia política. Na primeira vertente, preocupava-se em “apresentar não só as sugestões que facilitassem a difusão do ensino primário em Portugal e Brasil, como dos princípios pedagógicos que deveriam orientar o referido ensino. Tomava como exemplo o que se praticava em outros países mais desenvolvidos, particularmente a Inglaterra, que era do seu íntimo conhecimento, e fazia acompanhar esses exemplos de justificações teóricas com fundamento na psicologia educacional. [Cf. M. Dourado, op. cit., t. 2, pp. 586-87.]

Na segunda, Hipólito “sempre manteve a convicção de que o estudo da economia política é indispensável ao homem público, e lastimava que a Universidade de Coimbra não possuísse, em seu currículo acadêmico, uma cadeira em que se ministrassem esses estudos”. [Id., ibid.] Ele tinha sido educado na escola mercantilista, como era o normal em sua época, mas ao passar à Inglaterra aderiu de forma quase natural às pregações de Adam Smith e à doutrina liberal. Mas, como vimos pela sua discussão do decreto de abertura dos portos e do tratado de 1810, sua noção era a de um liberalismo doutrinal corrigido pelo bom senso e por um extremado pragmatismo. Ele ostentava, sobretudo, uma compreensão muito clara de onde se situava o interesse nacional brasileiro, acima de quaisquer considerações teóricas ou doutrinais. Nas páginas do Correio, ele ofereceu um acolhimento especial às idéias do economista suíço Simonde de Sismondi, chegando mesmo a traduzir e transcrever, em nove volumes do periódico (do vol. XVII ao XXV), com regularidade mensal, largos extratos dos Principes d?économie politique (1813), a ponto de Dourado chamar a atenção para o fato de que, “a vigorar, na época, uma lei regulando os direitos autorais, Hipólito teria que pagar essa edição ao autor”. [M. Dourado, op. cit., t. 2, p. 588, nota 773. Caberia lembrar que o título completo da obra de Sismondi, o que evidenciaria igualmente seu espírito prático, era Princípios de economia política aplicados à legislação do comércio (2 vols. Genebra: s.e., 1813), sendo seu autor membro do Conselho de Comércio, Artes e Agricultura do Leman, uma das regiões da Suíça francesa.]

Essa transcrição tinha propósitos didáticos claramente afirmados. Como recorda Carlos Rizzini, “Cinco anos e 400 páginas [do Correio] gastaria [Hipólito] nesse labor dedicado mais a instruir os governantes do que os leitores”. [Cf. C. Rizzini, Hipólito da Costa e o Correio Braziliense, op. cit., p. 140.] Nas próprias palavras de Hipólito: “Esta obra é elementar e feita sobre os admiráveis princípios que o ilustre inglês Adam Smith estabeleceu primeiro, mas obscuramente, e o nosso autor [Sismondi] desenvolveu e dispôs com clareza e método, destinando-a particularmente à França. Por isso, nos extratos que daremos, traduzidos neste jornal, atenderemos somente aos princípios de aplicação universal e conformes às circunstâncias de todos os países; e do que disser particularmente respeito à França (que ainda assim não é muito) referiremos somente o que também, por algum respeito, nos convier [isto é, ao Brasil] saber” [CB, 16: 338]. [Apud C. Rizzini, op. cit., p. 141.]

Como diz acuradamente Rizzini, “o fim precípuo do Correio Braziliense era o de promover o progresso do Brasil, erguendo-o de colônia a nação”, ainda que nação portuguesa, unida a Portugal, sob o sistema monárquico-representantivo. [C. Rizzini, op. cit., p. 143.] A esse título, Hipólito era contra os privilégios e monopólios, preferindo o comércio livre ao administrado, defendendo certas isenções tributárias para estimular determinadas atividades fabris. Concordava em taxar moderadamente as importações estrangeiras, mas nunca de maneira exagerada, de molde a não estimular o contrabando. Mas ele também tinha plena consciência das desigualdades estruturais que poderiam colocar em confronto os interesses respectivos de dois países desigualmente dotados, como verificado no caso dos tratados “desiguais” negociados pela potência inglesa com os países mais fracos, a começar por Portugal. Como afirma ainda Rizzini, Hipólito acreditava que, depois “da triste experiência com o Tratado de 1810, convinha ao Brasil regular o seu comércio sem novos compromissos, sem se atar em relação a um futuro ainda mal descortinado. Adotasse medidas mutáveis segundo seus interesses e as condições gerais das trocas”. [Idem, p. 181, que cita CB, 13: 782.] Na questão da mão-de-obra, o seu “armazém literário” atribuía o formidável progresso dos Estados Unidos à importação favorecida de braços livres, o que propugnava igualmente para o Brasil, sem sucesso porém, uma vez que continuaram por décadas seguidas o tráfico e a escravidão.

Ao concluir sua obra de editor, no final de 1822, Hipólito escrevia no último número do Correio Braziliense uma espécie de legado intelectual do ponto de vista da economia política: “Quanto às relações comerciais com as demais nações, quer haja quer não a formalidade do reconhecimento [do novo Estado brasileiro independente], o governo do Brasil terá sempre o direito de prescrever aos estrangeiros que lá forem comerciar os regulamentos que bem lhe aprouver; e seguramente a prudência desses regulamentos equivale bem, quando não seja preferível, aos onerosos tratados de comércio, com que muitas vezes as nações ligam, sem o saberem, as mãos da indústria”. [Apud C. Rizzini, op. cit., p. 309.] Palavras de prudência e de preocupação legítima com o progresso futuro da nação, como compete ao verdadeiro estadista que foi Hipólito, aliás sem nunca ter exercido cargo público no Brasil ou sequer ter voltado a por os pés, enquanto adulto, no país que tinha como seu. Em Hipólito, mesmo longe da pátria e impedido por força da censura de expressar livremente o seu pensamento, o exercício teórico e prático da economia política, guiado por uma certa idéia do interesse nacional, estava a serviço da construção da nação.

(*) Doutor em ciências sociais e diplomata; Pesquisador nas áreas de relações internacionais e política externa do Brasil, autor de Formação da Diplomacia Econômica no Brasil (São Paulo: Editora Senac, 2001)