Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O norte absoluto

PAULO FRANCIS (1930-1997)

Wagner Carelli (*)

O Francis foi para mim, antes de tudo, o que foi para minha geração: a figura intelectualmente mais importante, o norte absoluto, em uma bússola de altíssima precisão; a ligação com o mundo, com o todo.

Haveria de ser meu norte como jornalista, igualmente. Procurei imitá-lo em tudo, principalmente na coragem de ficar sozinho ao lado da verdade, ainda que contra tudo e todos. Francis sabia melhor do que um monge budista que tudo neste mundo é de mentirinha, que estamos aqui num faz-de-conta, e fazia desafinar todas as trombetas tonitruantes a alardear a importância das coisas. Só não procurei imitar o seu estilo, não incorri nessa impossibilidade, nessa temeridade, nessa petulância, nesse erro.

Ele foi o único a ficar ao meu lado quando o Brasil inteiro caiu de pau em uma reportagem que fiz para a revista IstoÉ, nos idos de 1979. Ele não tinha nem sequer ouvido falar de mim. Toda a elite política e intelectual do país malhou o solerte aqui, e Francis teve aquela coragem a qual já me referi anteriormente: a de ficar comigo e com o que lhe pareceu uma claríssima verdade, contra todos. Eu mesmo já estava em dúvida, já quase me juntava aos que me batiam sem qualquer piedade. Francis salvou-me a vida, a carreira e algumas crenças sem as quais não se vive.

Um ou dois anos depois fui para Nova York. O Brasil estava falindo, e juntei-me através da revista Senhor, do Mino Carta, a alguns jornalistas de todo o mundo que lá estavam pra flagrar o Delfim saindo com uma mão na frente e outra atrás da sala de reunião com os banqueiros.

Naquele tempo tínhamos de remeter pra lá os dólares que usaríamos, não podíamos sair daqui com eles, e obviamente, quando cheguei aos Estados Unidos, os dólares que a revista me remetera não estavam lá.

Eu não tinha um tostão, estava pior que o Brasil. Dormia num catre imundo que muito gentilmente cedeu-me um amigo, o Vincent Silva, um americano filho de brasileiros que transportava quadros em uma van onde se lia o nome de sua empresa-solo, Quick Silva.

Nessa mesma época encontrei com a Sonia [Nolasco] num saguão do Plaza, nós nos apresentamos, eu não fazia idéia de que ela era a mulher do Francis, e ela se lembrou do meu nome como autor daquela fatídica reportagem. Cobriu-me de elogios, algo que eu jamais havia recebido por aquele texto, e disse que o Francis iria gostar de me conhecer.

Ele estava no Oak Room, tomando uma aguinha mineral, já naquela época ele estava fora do uísque e álcool em geral ? e este mero mortal foi apresentado a Paulo Francis no Oak Room do Plaza.

Não ficou só nisso: por sugestão da Sonia, levaram-me pra casa deles e me instalaram no apartamento-palacete que era então o escritório do Francis. Dias depois eles partiram de férias para a Itália e eu saí do anexo para as dependências principais do palácio, onde exerci orgulhoso e deliciado, pela primeira de várias vezes, o cat-sittering de Branquinha, Botafogo e Jojô Bundinha.

Sonia e eu montamos uma editora que leva seu nome e que publicará todos os seus livros.

Francis ajudou-me em tudo o que vim a fazer depois, em tudo mesmo. Até hoje. Ele foi o homem pessoalmente mais generoso, desinteressado, afetuoso, acima do bem e do mal que conheci. Seu contraponto feminino exato, nesses quesitos, foi minha mãe.

Ambos grandes, descomunais espíritos enviados a este grão de poeira universal pra lembrar que não pertencemos a este lugar, que não somos finitos, que não temos limites. Minha mãe era católica fervorosa, Francis ateu. Ela acreditava em um Deus barbudo e punitivo, do qual ele se ria. Era a prova de que em Deus não se acredita ? Deus se conhece. Quem conheceu o Francis e a dona Josefa sabe que Deus existe, que é de amor, e que Ele os têm.

(*) Jornalista, fundou em novembro de 2002, com Sonia Nolasco, mulher de Francis, a Editora W11, que relançou os romances Cabeça de Papel (1977) e Cabeça de Negro (1979); texto publicado originalmente em <http://www.paulofrancis.com/main/main.htm>

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