Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O popularesco domina Salvador

MÍDIA & MÚSICA

Alexandre Figueiredo (*)

Salvador está vivendo o ápice, ou melhor, o fundo do poço do processo de mediocrização da cultura. Antigo pólo cultural de excelência, a capital baiana vem sendo ridicularizada com uma sucessão de modismos popularescos, da axé-music ao pagode.

A capital baiana já viveu tempos prósperos na cultura. Falar de Jorge Amado e Dorival Caymmi virou lugar-comum mas, de fato, ambos se tornaram expressão máxima da cultura baiana. Depois, vieram muitos nomes de diversas modalidades artísticas: o Teatro dos Novos, cujo reduto foi o Vila Velha, nos anos 50, e de onde saiu o ator Othon Bastos, de grande destaque nacional. A Tropicália teve pelo menos cinco personagens baianos: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethania e Tom Zé, nomes de vanguarda e do mainstream. Teve o rock peculiaríssimo de Raul Seixas, surgido num tempo em que era raro haver roqueiros no Brasil. O Cinema Novo viu seu cineasta mais audacioso, Glauber Rocha, surgir na Bahia. Há o historiador Cid Teixeira e houve o crítico de cinema Walter da Silveira, nomes comprometidos com a memória cultural baiana. Houve uma infinidade de grandes nomes.

Salvador, até 1964, era uma potência cultural brasileira. Depois do golpe militar, Salvador foi ferida aos poucos, e parece ter sido torturada, embora o projeto urbanístico de ACM, com todo o caráter duvidoso do atual senador, tenha sido ponto positivo em mar revolto e perigoso da época ditatorial. Golpeada, Salvador tentou resistir com a Tropicália e com a pós-Tropicália dos Novos Baianos, de Armandinho, Dodô & Osmar e o grupo A Cor do Som, que reuniu músicos de diversos estados e até um estrangeiro (Victor Biglione, argentino radicado no Brasil há muitos anos).

Mas as travessuras políticas e a alienação imposta ao povo levaram a capital baiana a sucumbir à mediocrização, tendo seu último suspiro no samba-reggae dos blocos afro, que nos anos 90 deu lugar a um pop-afro pasteurizado para turista ouvir, dos quais o Araketu é o exemplo mais vergonhoso, reduzido a um grupo de axé-brega altamente meloso e tolo. E isso com a ascensão de raposas-velhas da vida política local. É vergonhoso que um dos "radialistas" mais populares de Salvador seja um ex-prefeito acusado de corrupção, que roubou não só o dinheiro do povo mas sua boa-fé.

Embuste constrangedor

E não pára aí. O que parece ser uma "renovação cultural", a axé-music, na verdade é um movimento meramente comercial. Que valor musical têm Chiclete com Banana, Asa de Águia, Banda Beijo, Pimenta Nativa, Banda Mel, entre outros? Nenhum. Mas o pior nem está neles, que parecem se destinar a fazer música para adolescentes riquinhos e turistas alcoolizados a cambalear em carnavais e micaretas mil. O pior está em outros gêneros, baianos ou não-baianos, consumidos passivamente por um povo pobre que acredita que toda essa porcaria preparada artificialmente pela indústria fonográfica é "música popular por excelência". Sob as bênçãos da mídia cultural.

Bênção dada ao breganejo de Chitãozinho & Xororó, Zezé Di Camargo & Luciano, Daniel (com e sem João Paulo) e Leonardo (com e sem Leandro) etc.. À lambada requentada em forró eletrônico de Mastruz com Leite, Magníficoss e na "nova sensação" Calcinha Preta (nome de muito mau gosto para um grupo musical; e já tem outro, Cueca Branca) etc. Ao "batidão" que muitos pensam ser funk, como MC Serginho, Bonde do Tigrão, Latino etc. Ao romantismo tosco de Layrton dos Teclados e Asas Livres, ou ao pedantismo pseudo-MPB de Alexandre Pires. E ao pagode paulista de Só Pra Contrariar, Negritude Júnior, Belo etc.

Mas, o pior disso tudo é o pagode baiano, dotado de altas doses de pornografia, grosseria e brutalidade sonora, com ritmos monocórdicos e, por isso mesmo, mais pobres em acordes e melodias do que o punk rock.

O pagode baiano é visto com piedade pela grande mídia. "Desprovidos" (ou superprovidos?) de preconceitos, alguns modernosos justificam a grosseria como se o povo fosse grosseiro por natureza. Alguns "misericordiosos" de plantão chegam a falar em "pagode de qualidade", "samba de raiz" (só porque se usa o cavaquinho) e "ritmo gostoso". Quem não se lembra do constrangedor embuste chamado É o Tchan, que desmoraliza o gênero tão bem trabalhado no passado por Pixinguinha, Cartola, Noel Rosa, Nelson Cavaquinho etc.? Picaretagem de fazer o Milli Vanilli (aquela armação germano-americana) parecer um primor de sinceridade, o É O Tchan foi um grande hype, que a mídia "cultural" consagrou. Carla Perez, a dançarina do grupo, foi promovida como uma Leila Diniz às avessas, um ícone "moderno" do feminismo ? só que pelos estereótipos machistas, da mulher-objeto. Neste caso, é lamentável que digam que a Kelly Key é uma neofeminista. Mas isso é assunto para outro texto.

Patrimônio condenado

É O Tchan teve tudo: demagogia, falta de talento, mentira, fraude. A letra de Segura o tchan, empurrada até ao consumo infantil, impune e explicitamente, faz alusões ambíguas: "Tudo que é perfeito/A gente pega pelo braço/Joga lá no meio/Mete em cima/Mete em baixo/Depois de nove meses/Você vê o resultado." Enquanto isso, as pessoas se enganam com os sorrisos ingênuos de Carla Perez e, mais recentemente, das sheilas, bumbum na Playboy sob os olhares aprovadores das famílias.

Narcotização desse tipo nem o Planet Hemp consegue fazer. A sexualidade precoce das meninas, para alegria dos abomináveis adeptos da pedofilia, acaba fortemente estimulada pelo "espetáculo". Apologia geral da pornografia, estímulo à prostituição a partir do "ingênuo rebolado".

Depois, veio uma infinidade de grupos, até o pagode baiano, no qual os próprios vocalistas rebolam. O negro, que no pagode em geral já é tratado como pateta lascivo, principalmente num estado como a Bahia, que viu nascer o exemplo altamente digno do geógrafo Milton Santos, agora faz o papel de "mulata assanhada", rebolando de forma abjeta e vulgar. Seria a tradução baiana para Village People, aquele grupo de machistas que dança como drag-queens?

É humilhante ver que a juventude gosta dessa música ruim. Não se pode comparar isso ao blues e ao jazz dos EUA do início do século 20, porque naquela época, em que pese a dança e o poder lascivo dessas músicas, havia a preocupação artística, melódica, havia mais dignidade musical. Hoje, o que ocorre são estilos musicais pobres, artificiais, altamente mercantilistas, que não representam dignidade alguma para o povo brasileiro, que não estimulam a auto-estima, e põem os brasileiros numa eterna contemplação do ridículo, que pode criar até transtornos psicológicos, como a própria imbecilização, a alienação crônica e o desejo sexual descontrolado.

O popularesco está acabando com o país, com a Bahia, com os outros estados. Falta moralidade, falta dignidade, falta esperança. Sim, porque se iludir com a pretensa simpatia dos popularescos, verdadeiros lobos com pele de cordeiro, não é acreditar na esperança nem fortalecer a auto-estima. Sua música de qualidade duvidosa, por si só, contraria severamente a tão rica, versátil e peculiar música brasileira autêntica, cujo patrimônio está condenado ao esquecimento popular.

(*) Jornalista