Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O porquê da duplicidade

MÍDIA ALARMISTA

Ricardo Antônio Lucas Camargo (*)

Todo aquele que pretende assumir a posição do perscrutador da verdade, a meu sentir, deve assistir ao filme Casablanca, dirigido por Michael Curtiz, levado às telas em 1942, tendo em seu elenco nomes como Humphrey Bogart, Ingrid Bergman, Paul Henreid, Peter Lorre e Claude Rains. O personagem por este último vivido ? o capitão Renault ? diz a segunda frase mais famosa do filme: "Round up the usual suspects". Não há necessidade de se ir mais a fundo nas investigações: basta prender os suspeitos de costume, uma vez que são portadores de um dado qualquer apto a satisfazer a presença da presunção absoluta de culpa. É curioso que esta visão adotada nos processos de Moscou, em que só se garantia formalmente o contraditório uma vez que a sentença condenatória já estava dada, conte com a simpatia daqueles que acreditam piamente que o Diabo é vermelho e, portanto, só pode ter sido o Diabo o culpado. Daí por que estou de acordo com o comentário de Diego Cruz no OI de 5 de agosto de 2003 [veja remissão abaixo]:


A grande mídia, percebendo uma maior atuação dos movimentos sociais, que até então hibernavam na expectativa do novo governo, desce rapidamente do palanque da objetividade e, contrariando os manuais, assume um lado. Um dos casos mais significativos foi o assassinato do fotógrafo da revista Época no terreno da Volkswagen ocupado por sem-teto em São Bernardo do Campo. A revista estampou o crime na capa, relacionando-o às recentes ocupações promovidas pelo movimento dos sem-terra e dos sem-teto. Em destaque, sob o fundo preto, a exigência ?Chega!?. Não havia ainda qualquer indício sobre os responsáveis pelo assassinato.


Literalmente, o que se tem presente é o dito do capitão Renault. Não interessa o detalhe de, por exemplo, o presumível culpado eventualmente estar a quilômetros de distância ou nem sequer conhecer quem perpetrou o crime, nunca haver com ele trocado quaisquer palavras nem ter qualquer conhecido em comum: a culpa é ontológica, e não ética. Mas quando se vem a sustentar que a tese dos suspeitos usuais é a que deve prevalecer, o que se diz, mesmo, é outra coisa, muito mais grave: é que o voluntarismo e o preconceito devem tomar o lugar do Estado Democrático de Direito, porque este somente será respeitável na medida da conveniência dos interesses patrocinados pela mídia.

Trata-se justamente da ética hedonista, por muitos praticada, por poucos assumida, que numa frase pode ser resumida: "Bom é o que me agrada, verdadeiro é o que justifica as decisões que quero tomar". Em um opúsculo (Interpretação jurídica e estereótipos, Sérgio Antônio Fabris, Porto Alegre, 2003) procurei radiografar o papel que desempenham os estereótipos, viciando a interpretação dos fatos, levando, muitas vezes, a conclusões aptas a negar os direitos das pessoas. Tema que já foi explorado na literatura por Jean Paul Sartre em A prostituta respeitosa e por Guy de Maupassant, em Bola de sebo.

Sob o ponto de vista jurídico, entretanto, embora tenha sido tangenciado por quantos tratam o problema da igualdade perante a lei, e principalmente perante a lei penal, entendi que havia mister provocar o debate sobre este próprio vício no pressuposto do raciocínio, porque, quando o pressuposto está viciado, a conclusão fatalmente será viciada, como ensina a experiência comum. Até mesmo a recusa em admitir que sejam verdadeiros tais ou quais fatos se coloca em prol de evitar a subversão da ordem. Voltemos ao texto de Diego Cruz:


O âncora da Rede Record, Boris Casoy, revivendo delírios da Guerra Fria, e pré-64, é enfático: "O objetivo destas ocupaç&otilotilde;es é instaurar um regime comunista no país". O Jornal Nacional esmera-se em provar que os líderes das ocupações referenciam-se em ideologias socialistas (talvez pensassem que fossem keynesianos ou liberais!). No Bom dia Brasil, Alexandre Garcia exige do ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, que se cumpra a lei, enquanto este declara solenemente que resguardará o "Estado democrático de direito", aliás expressão bastante ouvida nos últimos dias.


O fato de se admitir que a causa invocada existe não significa apoio aos métodos. Nem muito menos que estes se justifiquem quando quem os utilize seja pessoa simpática aos titulares do poder econômico privado. Novamente, a palavra está com Diego Cruz:


A crescente horda de indigentes nunca foi mencionada como risco à estabilidade institucional, e a inconstitucionalidade do latifúndio improdutivo nunca recebeu importância proporcional a uma ocupação de sem-terra. Assim como uma declaração de Stedile a meia dúzia de sem-terra causa furor, a incitação ao armamento de fazendeiros feita pelo ministro da Agricultura, o ruralista Roberto Rodrigues, não é motivo para pânico.


Quem defenda o Estado Democrático de Direito terá uma certa surpresa nesta duplicidade de pesos e medidas por parte da mídia e reprová-la-á, neste sentido. Quem conheça o dilema midiático entre ser a voz e a consciência do povo, como falam todos os que se debruçam sobre o tema "liberdade de imprensa", ou maquiar-se como tal e informar na medida da capacidade de geração de lucros, mesmo não justificando a atitude e, até, colocando-se abertamente contra tal manipulação, compreenderá perfeitamente o porquê da duplicidade de pesos e medidas.

(*) Advogado em Porto Alegre, doutor em Direito Econômico pela Universidade Federal de Minas Gerais

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