Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O presidente e a redenção da mandioca

CULTURA DE RAIZ

Nivaldo T. Manzano (*)

Permita-me, leitor, uma confissão: sinto-me redimido em minha atividade profissional com a decisão programática do governo Lula de restabelecer a dignidade ancestral e cultural da mandioca. É o que espero ver confirmado nos próximos meses e anos, assim como a redenção de tudo o que caracteriza e distingue a nossa cultura tropical, sem prejuízo dos influxos de fora, de que também somos feitos em nossa miscigenação.

Neto de imigrantes instalados no café, nascido no mato, busquei ao longo da vida equilibrar-me entre meu pé de matuto e meu pé de citadino e intelectual. Felizmente, para a minha sorte não venceu um nem outro e assim, no conflito, pude na adolescência desfrutar de mais de uma visão de mundo, ao observar meu avô Segundo, espanhol semi-analfabeto, a ridicularizar na sua atividade de capataz de fazenda a sabença do engenheiro-agrônomo, assim como pude observar o engenheiro-agrônomo ridicularizar a visão "limitada" de meu avô. Eram dois mundos conflitantes, excludentes, fechados em si mesmos, surdos um para o outro, a ciência contra a opinião, a verdade contra o erro, mundos que não se contagiavam nas suas respectivas auto-suficiências. E, eu no meio, entre eles, a desfrutar da oportunidade pedagógica de poder enxergar a realidade sob mais de um ponto de vista, para compreendê-los e a mim mesmo, em vez de julgá-los e julgar-me.

Mais tarde, orientado por tal aprendizado, em vez de eliminar, busquei, por prazer não isento de risco, alimentar em mim esse conflito, na expectativa de ver multiplicados os pontos de vista com que a sociedade enxerga a realidade, e eu a mim mesmo, como microcosmo dela. Quanto mais pontos de vista conflitantes, mais eu acreditava enxergá-la melhor, a ponto de recear, quando do estudo da epistemologia das ciências, acolher de modo excludente o princípio lógico da identidade (A = A), segundo a recomendação de Aristóteles, em prejuízo do princípio de equivalência, segundo o qual tudo deve ser visto a um só tempo sob os aspectos da unidade e da diversidade.

É como se eu não tivesse deixado de lado a visão de meu avô Segundo nem a leitura de Aristóteles. Ao lê-lo, tenho a impressão de que o drama intelectual e existencial de Aristóteles era equivalente ao meu draminha. Pois, na hora de escrever a sua Política, ou de refletir sobre a vida política na cidade, ele se viu forçado a deixar de lado a sua lógica, o princípio de identidade que criara, para se instalar no terreno do princípio da equivalência. Assim, Aristóteles escreve contra Platão em sua Política ? a propósito da necessidade de se reconhecer a legitimidade da diversidade de pontos de vista na vida política ?, que um piquenique é mais prazeroso que um jantar oferecido por um anfitrião: enquanto no jantar do anfitrião prova-se somente o prato que ele oferece (identidade), no piquenique tem-se a oportunidade de exercitar o paladar na degustação recíproca dos diversos pratos trazidos de casa pelos participantes (equivalência). E acrescenta, em minha tradução livre, que o homem comum está mais capacitado para entender de política do que aqueles que dela fazem uma profissão.

O velho mateiro

O estímulo à cultura da mandioca, na decisão programática do governo Lula, converte-se agora numa ocasião longamente esperada de exercitar a minha pequena vingança, vingança dupla: (1) daquele meu lado matuto, que aprendeu na infância o valor cultural da mandioca na alimentação humana e animal, e depois na leitura de Spix e Martius, e depois nas viagens país afora, nas quais vim a saber que não era o trigo, e sim a mandioca, o "pão-do-pobre" e alimento de sua animalia, e depois no valor de suas mil e uma utilidades como matéria-prima "moderna" na indústria agroalimentar e outras; e (2) vingança também de meu lado citadino e intelectual, que aprendeu a reconhecer nos valores "locais", em contraposição não excludente aos valores globais, o nosso diferencial nas vantagens comparativas e competitivas no comércio internacional.

Nada temos a ganhar em copiar servilmente os outros, a sua realidade, que não é a nossa. Ou seja, não há como se inserir positivamente na globalização uniformizadora (econômica ou cultural), para recuperá-la, senão valorizando o que é singularmente brasileiro: eis o princípio da equivalência, que reconhece a própria diferença no reconhecimento da identidade do outro. Somos, nós e os povos do mundo, iguais e diferentes ao mesmo tempo. Para quem não sabe, a mandioca é brasileira: tem no Brasil o seu centro vavloviano de difusão. Os povos guaranis conheciam cerca de cinqüenta usos da mandioca.

Com a vitória de Lula, sinto-me hoje na pele de meu avô Segundo, quando me recordo do engenheiro-agrônomo, doutor em ciências ambientais por uma universidade da França, a ridicularizar minha aplicação jornalística na divulgação do valor nutritivo do caule e dos ramos da mandioca no arraçoamento animal ? "cultura de ignorantes", dizia ele. Ele, colonizado, sonhava com animais alimentados por grãos, como ocorre nos Estados Unidos ? a um custo de produção, sabe-se hoje, muito mais elevado. E, quanto mais quixotesco lhe parecia meu empenho, mais me empenhava, a ponto de ter eleito a figura emblemática do mateiro como o professor que teria faltado na universidade ao engenheiro florestal.

E o fiz em 1987, quando em visita a um amigo, Aulo de Carvalho, cacauicultor de Ilhéus, formado em Direito, conhecedor do mundo e com três engenheiros-agrônomos na família (filhos e nora), dirigimo-nos um dia ao Centro de Pesquisa da Lavoura Cacaueira (Ceplac), em Itabuna (BA), levando num saco de aniagem pequenos tocos de madeira retirados de sua fazenda localizada na Mata Atlântica. Ele havia recebido autorização do então IBDF para cortar algumas árvores e queria identificá-las. Fomos recebidos por três engenheiros-florestais, numa manifestação de deferência para com "doutor Aulo", que havia sido um dos criadores da Ceplac. Depois de examiná-los atentamente, os três, confessando-se incapazes, convocaram um velho mateiro, ali empregado nos serviços gerais, e lhe perguntaram: "Que pau é esse?". O mateiro, depois de observar os veios da madeira, cheirar, sopesar, apalpar e lamber, reconheceu cada espécie pelo seu nome popular. Lembrei-me, então, por contraste, de meu lado citadino e intelectual, que fez evocar Ivan Illich e sua temática ? "desescolarizar a sociedade", como condição para ela poder reconciliar-se com a sua própria cultura, que é a um só tempo razão, intuição, ética, estética e sentimento.

Estabelecer prioridades

Diz-se que o ser humano, como ser inteligente, acumula experiência na forma de conhecimento, e a ideologia dominante do engenheiro assume de modo arrogante que conhecimento é sinônimo de aprendizado formal. Mas o fato é que a cada novo estado de mudança, a cada nova transição do suposto estado de ignorância para o novo estado de conhecimento, ambos teriam a impressão, secreta, de que os sentidos ?o paladar, o olfato, o tato, a visão e a audição ? regridem à condição de "analfabetos", incapazes de reler o mundo que passou e despreparados para ler o mundo que chega. Isso ocorre também no amor.

Agora, com a proposta redenção emblemática, cultural, social e econômica da mandioca, a pessoa do presidente Lula chega para dizer que matuto e engenheiro-florestal são duas faces de uma mesma moeda: saber acadêmico e saber tradicional são indissociáveis, embora distintos, na caracterização dos valores de toda cultura. Eis o sentido cultural e histórico da vitória política do "Silva", diz a voz de minha pequena vingança. A proposta é ir de mateiro e de engenheiro ao mesmo tempo, como estratégia de afirmação da singularidade brasileira em nossa inserção na globalização. O desafio é estar aberto ao mundo, sem correr o risco neoliberal de perder a própria identidade.

Sem ser PhD e tendo sido consultor da Embrapa na área de comunicação rural por quatro anos, vivi o drama íntimo e silencioso de ter de reconhecer a parte de razão que cabe ao mateiro contra o saber doutoral excludente dos "peagadeuses". Pois a minha função ali, definida por eles, era desenhar receitas de comunicação, a serem enfiadas goela abaixo dos mateiros, um projeto supostamente tão mais exitoso quanto mais se conseguisse convencê-lo a remover de si mesmo a sua suposta "ignorância". Foi quando firmei a convicção de que não poderia ignorar o valor da "ignorância" de meu avô Segundo, sem deixar de valorizar ao mesmo tempo o conhecimento formal do engenheiro-agrônomo que o contestava.

Mas o auge da exacerbação e da valorização de meu conflito ocorreu anos depois, quando li na revista Cadernos de Ciência e Tecnologia (Embrapa, jan/abr 2001) o artigo de um doutor em economia rural, a subordinar a solução do problema da fome à necessidade de se superar a dependência do país em relação às tecnologias de informação, importadas, como se sabe. A fome brasileira teria a sua explicação na nossa carência de tecnologias de informação. Pensei, então, em Santos Dumont.

Quando Santos Dumont se pôs a projetar o seu avião, o Brasil não produzia aço: importava-o dos países do Hemisfério Norte. Mas a idéia do avião não estava naturalmente inscrita no aço, na hélice, nos pneus, nos tirantes, nas porcas e nos parafusos. Era uma idéia dele, que deve ter pensado num meio de transporte capaz de cobrir velozmente a extensão de um grande território, problema de país de dimensões continentais, que era o seu. As soluções tecnológicas, que ganham dimensão universal, têm necessariamente inspiração contextual, local. É preciso estar inserido em algum ponto da realidade para se poder enxergar esse ponto e também o mundo. Não existe dimensão global sem dimensão local.

No Vale do Silício desconhecem-se ? e por isso desvalorizam-se ? as propriedades culturais e econômicas da mandioca. Os fabricantes norte-americanos de tecnologias de informação somente passarão a ter interesse na mandioca quando se derem conta de que a cultura brasileira reconhece-se a si mesma no contexto que a valoriza, como bem cultural e como recurso susceptível de ser incorporado ao circuito de valorização do capital. O valor econômico de tais tecnologias aplicadas à mandioca é nenhum, antes que nós mesmos tenhamos respondido a uma pergunta, cujo alcance, desdobramentos e implicações, para o Brasil e para o mundo, estão embebidos na nossa cultura e dela são indissociáveis: "Que pau é esse?".

O seqüenciador automático de genes, de que fala o doutor no artigo na revista da Embrapa, é de grande valia na busca de uma resposta enriquecedora à pergunta "Que pau é esse?". E a urgência de se recorrer a essa tecnologia será tanto maior quanto mais a cultura brasileira souber de suas carências e de suas potencialidades locais, que o seqüenciador contribui para explicitar e operar. A cultura o sabe quando está integrada pela sua própria referência, e não pela referência do seqüenciador fora de contexto, que é nenhuma. As potencialidades somente são potencialidades no contexto em que são reconhecidas, e o seqüenciador não saberá valorizá-las, pois somos nós brasileiros que pressentimos o seu valor no exercício cultural das equivalências, que nos leva a selecionar do ambiente isto e não aquilo, estabelecendo prioridades, orientados pela referência de nosso contexto, e não do contexto dos outros. E, então, sim, será possível conferir razão de ser à indagação sobre "Que pau é esse?".

Exercício contextual

Assumir como valor desejado o reconhecimento do próprio contexto, e não uma coisa, eis o desafio. O objetivo não é a coisa e sim o que se pretende fazer dela. É somente quando a ela se vincula um coeficiente de valor, conferido pela referência do contexto nacional, que ela se converte em valor. A compra de um automóvel realiza-se somente depois de se saber o que se pretende fazer dele. É o que parece não ter compreendido o doutor do artigo na revista da Embrapa, ao subordinar a reconstrução do habitat da inteligência brasileira, pela remoção da fome, ao acesso a uma coisa, como se às coisas coubesse dizer ao ser humano o que deve fazer, e não ao ser humano fazer das coisas o que pretende fazer. Um engenheiro florestal, tecnicamente melhor equipado, jamais alcançaria a sabedoria do mateiro por força de sua atualização e independência tecnológica. O seu problema não está na falta de um GPS associado ao seu relógio de pulso, que lhe permitisse localizar-se com precisão no meio da floresta, e sim em saber o que pretende fazer com a madeira que retira floresta mediante o auxílio do GPS. Para atribuir ao GPS ou à madeira algum valor contextual, ele precisa saber responder antes à pergunta "que pau é esse?".

Reconstruir, mediante um programa radical de erradicação da fome, o habitat da inteligência brasileira significa capacitar-se para enxergar o próprio contexto, em cuja referência está inscrito o projeto nacional. Uma vez reconhecida e explicitada a referência do contexto, que não é uma coisa, tem-se a visualização da solução. Depois disso, basta confiar a ambos ? engenheiro-florestal e mateiro, apoiados estrategicamente pelo Estado ? a tarefa de desenhar o autômato (software) com o qual se pretende seqüenciar a madeira, tarefa que pressupõe o exercício simultâneo do conhecimento científico e do conhecimento tradicional, da racionalidade, da intuição e do sentimento. Entregar-se a esse exercício é reconhecer o próprio contexto, ou seja, saber responder adequadamente à pergunta "que pau é esse?".

Essa tarefa, ao contrário do que pensam os neoliberais, não se compra nem se vende. Uma vez desenhados o autômato e o software, em parceria entre o engenheiro e o mateiro, é encomendar à indústria norte-americana, européia ou japonesa do "ferro" informático o chip que lhe corresponde e aguardar pela entrega. Invertem-se assim os termos do problema: não haveria mais por que se queixar de uma suposta dependência tecnológica que nos impediria de enxergar o próprio caminho. É no ato de enxergá-lo que já não seríamos dependentes. Ao cuidar de reconhecer e explicitar nosso contexto, para valorizá-lo programaticamente, estaríamos em condições de afirmar a nossa soberania e a nossa diversidade cultural, e a reconhecer a dos outros, podendo oferecer uma resposta adequada à eventual pretensão dos outros de responder em nosso lugar à indagação "que pau é esse?".

Responder a essa pergunta no plano da tecnologia é habilitar-se, ipso facto, a construir o autômato que lhe corresponde, para se poder manipular geneticamente a madeira, ou a mandioca. E é mediante o mesmo processo, exercitado no habitat da inteligência em estado puro, que se concebem e se desenvolvem todos os autômatos (réplicas mecânicas dos processos reais), incluídos aqueles de que se serve a indústria do "ferro" informático para fabricar o chip. Assim como avião de Santos Dumont, o chip, antes de se materializar em chip, nasce na cabeça e esta, para tornar manipulável a nova abstração, converte a abstração num autômato, do qual se fará um software, que torne possível geri-la segundo os propósitos que a nação brasileira tem em mente. Tudo remete, pois, à inteligência brasileira a ser redimida da fome, e não é a inteligência que se fará inteligente mediante a incrustação de chips na cabeça. Não é o chip e sim a inteligência brasileira que será capaz de responder a indagações como a dos engenheiros-florestais: "Que pau é esse?".

E assim como os engenheiros metalúrgicos confiam a execução de seus projetos à forjaria, deixe-se para a forja do Vale do Silício a modelagem, fundição e usinagem das peças. Cá, de nosso lado, cuidemos de valorizar a inteligência, projetando peças, mapeando processos culturais nacionais (econômicos, sociais, energéticos, biológicos, agrícolas, eletrônicos etc.), uma tarefa de que somente nós brasileiros somos capazes, na condição de sujeitos e de objetos de nosso próprio desafio, a partir de cujo reconhecimento será possível exponenciar as nossas potencialidades. De acréscimo, estaríamos contribuindo para estender a geração de emprego e renda assim criados até às forjarias estadunidenses, locais onde, por definição, se fabricam coisas, mas não a inteligência da realidade brasileira. As coisas, que interessam ao doutor da revista da Embrapa, nada sabem, pois é a inteligência, cujo exercício é necessariamente contextual, que sabe responder à indagação "que pau é esse?".

A mandioca, como emblema da redenção da contextualidade brasileira, ressurge dos tempos coloniais no bojo do programa do governo Lula para valorizar a nossa singularidade cultural, que não se importa nem se exporta. O único modo como a singularidade cultural sabe operar é o da exponenciação, na valorização da própria inteligência que, ao fazê-lo, contribui ao mesmo tempo para o enriquecimento da diversidade cultural dos povos, por estar capacitada para responder à indagação que somente ela sabe responder: "Que pau é esse?".

(*) Jornalista; as considerações feitas neste ensaio são objeto de discussão do livro do autor intitulado Que pau é esse? (São Paulo, Editora Texto Novo, 2002)