Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O professor, os chavões e o caos

Claudio Julio Tognolli (*)

Desde que, nos anos 60, a contracultura difundida pelos "hereges" de Harvard prodigalizou a idéia segundo a qual a base subjacente do universo é o "caos", a palavra tem sido extirpada de seu contexto original, o da física quântica, para outras áreas do conhecimento. Ser caótico virou sinônimo de ser moderno, atual, de estar além do bem e do mal. Por detrás desta postura estética ?numa época em que ser engajado passa a ser "ter atitude" ? corre um novo irracionalismo. Num grupo de quase 400 estudantes para os quais apliquei uma prova, na qual deveriam postular suas idéias sobre o que teria restado da contracultura, pelo menos 30 trabalhos chegaram com palavras perdidas, com poemas estrambóticos, pré-coerentes. Outros, cinco alunos desse universo vindicaram entregar provas "em branco". No entender de todos: ser contracultural era sinônimo de ser "muito louco". Nada a ver com a "razão louca" de um Nietzsche. Mas, sim, uma anti-razão, uma luta ingente para legitimar um pensamento que nem por essa palavra merece ser definido.

O universo dessas provas sirva talvez como um alerta do que ocorre na mídia adolescente em geral. Um apelo degenerativo para a emoção, numa época de prestação de serviços, rapidez e eficácia. Pensar virou sinônimo de ser careta. Os alunos vindicam, em boa parte, que depois da queda do Muro de Berlim, em outubro de 1989, e o fim de um mundo bipolar, em que capitalismo e comunismo disputavam quem ia ganhar o troféu de "teoria política final da historia", de nada adiantaria pensar muito. A preocupação básica e a de arrumar um emprego, de preferência em um serviço de internet, pois o resto "se conserta". Sobre isto, já há mais de 15 anos alertara o intelectual Sergio Paulo Rouanet:


"Não podemos falar em clima irracionalista sem falar em atores que o defendam ou em suportes que o sustentem. Um tanto impressionisticamente, diríamos que esses suportes incluem, por exemplo, subculturas jovens, em que o rock funciona como instrumento de sociabilidade intragrupal e de contestação geracional do sistema. Nelas, os estereótipos de uma formação livresca são contrapostos a imagem da educação pela própria vida. Reconstitui-se, espontaneamente, sem que os jovens saibam disso, a polarização clássica entre a vida e a teoria, que floresceu, por exemplo, no Sturm und Drang, no romantismo, no atual movimento ecologista e em outras correntes direta ou indiretamente influenciadas pela máxima de Goethe ?cinzenta é toda teoria, e verde apenas a árvore esplêndida da vida?. Incluem também alguns intelectuais, que não hesitam em desqualificar a razão, de modo quase sempre indireto, sob a influência de certos modismos, como a atual vaga neonietzchiana. E incluem determinados movimentos e partidos políticos, que tendem a recusar a teoria e fetichizar a prática. Teríamos assim, do ponto de vista dos atores, algo como um irracionalismo comportamental, um irracionalismo teórico e um irracionalismo político".


Penso ter encontrado algumas pistas que nos podem levar de onde surgiu a idéia de que o "caos", e portanto a vaga idéia de um "não-pensamento", seria antes de mais nada uma forma de engajamento num mundo que, cada vez mais, nos dá sinais de que o funcionalismo e prestação de serviços dariam resposta a tudo. Postulo que a idéia totalizante do funcionalismo não esta apenas impregnada na cabeça dos alunos, mas também, como referiu tão bem Rouanet, na cabeça de outros atores mais influentes na esfera cognitiva do aluno: professores, políticos e empregadores.

Gostaria aqui de analisar três aspectos, à luz do que já foi exposto. Primeiro: a proposição de um esquema teórico a explicar no que pode redundar o funcionalismo extremado num determinado esquema de ensino. Segundo: como esse funcionalismo potencializaria o aluno a não-reflexões sobre a realidade. Terceiro: o surgimento da idéia de que não ser racional pode significar fazer parte de uma estética caótica, no puro sentido da palavra "caos", e portanto "moderna", atual.

Crítica ao funcionalismo

Vou começar com um esquema de análise sobre até onde pode nos levar o funcionalismo. Creio que uma das funções primordiais do comunicador imparcial, senão a primordial, seja transmitir ao leitor as diversas leituras que possam eventualmente ter as comunicações, digamos a título de exemplo, prodigalizadas por um determinado político. Octavio Paz já referia que a primeira forma de corrupção se dá na linguagem. Logo me vem à memória as frases de um ministro da Fazenda do governo José Sarney, que referia não haver inflação no Brasil, mas apenas " a depreciação relativa dos preços relativos". Ou a frase de um ministro do Trabalho do presidente Fernando Henrique Cardoso, que por sua vez contestava os números do desemprego, dizendo que "o problema do desempregado brasileiro é a sua falta de empregabilidade".

Numa sociedade cada vez mais regida pela prestação de serviços, pela eficácia, pelos serviços de internet, o aluno recebe, também cada vez mais, reforços de que um jornalismo de serviços, funcionalista, é o mais bem aceito pelo mercado. Portanto, se o mercado o requer, mais reforço temos de que o que fala o mercado é o que fala a voz da realidade. Como vamos produzir comunicadores sem um aparato crítico suficiente para traduzir as maquinações do discurso político, por exemplo? Prepararmos um profissional "de mercado" pode trazer obviamente o erro de um profissional feito unicamente "para o mercado", para atender a demanda de um funcionalismo que tudo requer, menos a razão crítica e a análise dos dados que esse mercado de informações tão diligentemente divulga.

Uma mediação

Proponho aqui, como um breve cânon de análise, o pensamento do psicanalista Alfred Lorenzer. Ele dividiu os processos linguísticos em três, sempre remontando ao ideal psicanalítico da teoria da interação entre sujeitos a partir da linguagem.

Lorenzer divide a linguagem em clichês, símbolos e signos. Em resumo: pelo clichê, o indivíduo se afasta da interação social desejável graças ao emprego de palavras-chave, que ele usa sem pensar no que significam, e que ele recebe e repassa como uma moeda de marcado. A escassez de pensamento caracteriza o clichê. Na outra ponta desse sistema crítico, refere Lorenzer, temos o que ele chama de significação. Quero salientar que em seu pensamento sobre o que seja "signo" não vai nenhuma referência ao pensamento de Ferdinand de Saussure sobre signo. Em Lorenzer, o sujeito pode se afastar da realidade também pela verborragia. Se o que marca o clichê é a escassez de significado, o que marca o signo é o afastamento dos fatos pelo excesso de palavras. Se temos, numa ponta, a linguagem simplista dos clichês, na outra nos vem a linguagem verborrágica do signo. Se numa ponta temos o comunicador que não sabe interpretar e criticar o mundo sensível dos fatos, graças à sua linguagem empobrecida, na outra nos surge o político que mascara seus números como os dois ministros aqui citados ? o que mascara o desemprego com sua "crise de empregabilidade" e o que mascara a inflação com a sua "depreciação relativa de preços relativos".

Toda a teoria de Lorenzer visa a simbolizacao, processo pelo qual ele acredita o ser humano consiga antecipar formas determinadas de interação, manter a independência social e, a partir do símbolo, " comparar diferentes formas de interação, que passam a integrar um repertório de indicações disponíveis na consciência, estabelecimento de comparações e reconhecimento de situações".

Com formas fixas de comunicação, sejam signos ou clichês, vamos dando curso ao empobrecimento da rede de significados, a criação de "sujeitos disponíveis ao regime dado" e a "perturbações da interação real". Simbolizar, nesse cânon de pensamento, é cumprir o papel da união entre a consciência humana e o comportamento frente a sociedade. Não consigo pensar na formação de um profissional pronto unicamente para as exigências do mercado (clichê) nem na de um profissional encastelado em teorias abortadas dos fatos (signo). Cabe ao professor de comunicação a dosagem entre os dois extremos. Em meu pensamento, esquemas teóricos despejados nos alunos produzem monstros capazes de se afastarem da realidade ? como vimos aqui nas frases ditas pelos dos ministros de Estado. E esquemas práticos e funcionalistas criam comunicadores incapazes de criticar a ordem instituída, de interpretarem o discurso político. A luta do professor de comunicações está justamente em mediar este terreno pantanoso.

Sobre o caos

Já que tanto aqui se falou em clichês, gostaria de discorrer sobre uma das maiores palavras-chave da última década: o caos. Nunca e tanto a mídia aplicou o termo com tamanha recorrência. Uma nova onda irracionalista invade as redações e as salas de aula, que versa mais ou menos o seguinte: já que a física quântica tem demonstrado que a base da natureza é o caos, ser moderno e ser caótico. Enveredar pela meditação, pelo zen-budismo, pelas teorias holísticas, pelo misticismo, pelo taoísmo, pela preservação da natureza, pelo new age é e sinônimo de estar "avançadinho". Quero sugerir que, em certo ponto, toda essa teoria tem servido de substrato ao irracionalismo, ao imobilismo.

Tudo começa em 1947, quando o dinamarquês Niels Bohr ganha o Prêmio Nobel pelo seu trabalho em mecânica quântica. Ao receber a Ordem do Elefante, coloca sobre ela o símbolo do Tao, o Ying-Yang, e abaixo as palavras "contraria sunt complementa", ou "os opostos são complementares". A partir disso, o simbolo do Tao ganha o Ocidente. Hoje adorna os carros de alunos e professores e é motivo de tatuagens. Trocando em miúdos, a idéia de Niels Bohr reza o seguinte: desde que, em 1927, o físico alemão Wener Heisenberg publicou o seu Principio da Incerteza, ficou claro que vivemos num mundo caótico. Já que a Física Quântica provou que os elétrons podem se manifestar ora como onda, ora como partícula, nossa Natureza é em essência incerta . As coisas podem ser ao mesmo tempo elas e seu contrário, reza essa ideologia cientifica. Michael Billignton, estudioso de ideologia nas ciências, postula que esse pensamento, com base no Tao, busca as palavras taoístas que significam a "não-ação", ou wu wei. Trocando em miúdos, mais uma vez: já que a Natureza seria, em seu substrato, basicamente caótica, nos resta unicamente a meditação, a não-ação, já que esses pólos antagônicos se complementam por si sós. Billington aponta que esse pensamento científico-filosófico, aqui trocado em miúdos, gerou toda uma trama comportamental, que passa pela música e pelas artes, postulantes hoje da não-ação. Por detrás do pensamento irracional e vindicante do caos e do "ser moderno", um convite à não-ação e portanto ao laissez-faire do mercado neoliberal…

Por essas e por tantas interpretações, se as crermos sinceras, vejo que o professor de comunicação, mais do que ninguém, deve estar atento aos chavões de comportamento, da cultura, que se reciclam, mas que a todo o momento nos fornecem pistas de como devem ser eviscerados. Eviscerar o ideário funcionalista, decifrar o ideário teórico que redunda no irracionalismo: eis a tarefa mais difícil do professor de comunicações. Justamente numa época em que ser "caótico" virou sinônimo de uma falsa razão. Em que o antigo "engajamento político" foi substituído por "ter atitude" ? ou como gosta de dizer o Mike Tyson, "Be real, man!". Ter atitude virou tudo e "ser real" é a petição de princípios de qualquer um que envergue posturas, mesmo irracionalistas. Cabe à imprensa oxigenar esse processo.

(*) Repórter especial da Rádio Jovem Pan, professor das Fiam (SP) e da ECA-USP, autor de A Sociedade dos Chavões (Escrituras, 2001); co-autor de O Mundo Pós-Moderno (Scipione, 1997) e O Século do Crime (Boitempo, 1997)