Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O que os jornais precisam fazer para aumentar a qualidade editorial

Há cerca de 15 anos, entrevistei um editor da Pravda. Fiz todas as perguntas possíveis e imagináveis sobre a linha do jornal e a vida na Rússia. Falei da má qualidade dos produtos industriais, da burocracia complexa, da baixa representatividade dos sindicatos, do mar de cabeças brancas e de calvas que aparecia nas fotos dos “congressos da juventude”. Diante dessas questões, o colega, do alto de seus oito milhões de exemplares diários, sacudia a cabeça, subindo e descendo o queixo, e repetia invariavelmente que os jornalistas soviéticos e o Partido Comunista estavam atentos para corrigir esses inconvenientes.

Essa entrevista me vem à cabeça, agora, quando me proponho criticar a edição dos jornais brasileiros. A razão é que, em todas as ocasiões em que uma ideologia se impõe totalmente à sociedade, são as versões dessa ideologia e não os fatos o que a imprensa veicula. A função da imprensa brasileira, hoje, é confirmar as teses do neo-liberalismo, como a da imprensa soviética era confirmar as teses do marxismo prático ou real.

Essa missão educativa – e educar significa dobrar, conformar – marca a distância crescente entre o que os repórteres apuram e o que as pessoas em geral sentem, na sua experiência diária. Determina também a assustadora credulidade dos jornalistas diante de políticos e tecnocratas para os quais mentir sempre foi recurso tolerável, como diz Hanna Arendt, no livro Entre passado e futuro, editado, no Brasil, pela Perspectiva, de São Paulo. Exemplifico:

O ministro Stephanes, aquele que conseguiu se aposentar com vencimentos integrais aos 42 anos e se tornou notório especialista em previdência social, disse, em repetidas entrevistas, que a expectativa média de vida dos brasileiros era de 68, 72 e até 78 anos – e os jornais repetiram. Na verdade, a expectativa de vida dos brasileiros, com boa vontade, anda pelos 64 anos, o que era muito constrangedor porque o governo queria que as pessoas se aposentassem aos 65. Assim, o sábio ministro dizia que, para quem tem 50 anos, a expectativa de vida era de 68; para quem tem 55, de 72; e para quem tem 65, de 78. Abolia a mortalidade infantil, toda a mortalidade do Nordeste (onde a vida média não chega a 50 anos), os acidentes do trabalho e pós-parto, quase todas as mortes no trânsito etc. É claro que os jornais não repararam na falta absoluta de sentido de tais estimativas.

Tomemos agora o Orçamento da República. Os economistas estimam incremento anual de dez por cento nas verbas destinadas ao funcionalismo público. Fazem isso há três anos, desde que a moeda se estabilizou. A razão (ou desculpa) é que existe ou existia o anuênio de um por cento a que os servidores têm ou tinham direito e mais as promoções de carreira: tenentes que passam a capitães, ministros a embaixadores, professores auxiliares a assistentes etc. Pois bem: indiferentes a isso, os jornais inventam, todos os anos, que os funcionários vão ter aumento de dez por cento no exercício seguinte.

Na cobertura do debate recente da Reforma Administrativa, toda ênfase foi posta no teto salarial de doze mil e poucos reais, que o deputado Inocêncio de Oliveira, que não se perca pelo nome, considerou “um bom salário”. Também acho. Só que não se ganha isso no serviço público – e, se alguém ganhar, ou é um político ou será uma exceção digna do livro Guiness de recordes. O pacote recente condenou os funcionários àquilo a que já estavam condenados: ao congelamento salarial. Também nesse ponto o pacote é uma farsa, embora os jornais tenham docilmente atribuído o sacrifício dos servidores à crise internacional.

Crédito para picaretas

Os números que servem de base aos planejamentos no Brasil são a própria expressão da mentira. Em Santa Catarina, existem oficialmente 45 mil crianças deficientes. No entanto, as associações de pais e amigos dos excepcionais, que operam com eficiência em todos os municípios do Estado, contam 15 mil; ainda que restem alguns desassistidos, em grotões remotos, o número não passará de 20 mil. Uma senadora por Mato Grosso, recentemente, listou os menores carentes por categorias e regiões; quando ela chegou aos 38 milhões de crianças desvalidas, o militar que me contou essa história parou de somar. Existem no Rio de Janeiro quase tantos menores de rua – efetivamente, os sem família ou abandonados pela família – quantos indivíduos bondosos ocupados em arrecadar dinheiro de estrangeiros incautos para assistir os menores de rua no Rio de Janeiro: os dados são de uma pesquisa da Prefeitura.

Ninguém contou o número de micos leões nas poucas florestas atlânticas que restam, nem a Aids é a principal causa de morte no país, nem dez por cento dos brasileiros são homossexuais, nem dez por cento são deficientes auditivos, nem vinte por cento são cardíacos, nem são 2.700 mil as crianças que trabalham no Brasil, nem temos dois bilhões 518 milhões de dentes cariados: todos esses números são extrapolações, chutes ou invenções, eventualmente de boa fé, mas frequentemente de má fé. Qualquer sujeito – público ou privado – que queira obter financiamento de uma fundação européia ou americana fabrica sua própria realidade para um Brasil que é sempre misterioso e desconhecido. Os jornais dão credibilidade a esses picaretas.

Quando a popularidade do governo cai, os homens de marketing de Brasília costumam apelar para o lançamento de planos espetaculares prevendo grandes despesas em áreas sociais. Para isso, juntam projetos em curso de todos os ministérios e órgãos públicos. A mesma despesa – digamos, a compra de um tomógrafo computarizado para o hospital universitário de uma região agrícola – pode figurar, assim, em sucessivos pacotes nas áreas de saúde, educação ou reforma agrária. A questão é: como reagiria a imprensa americana se o presidente Clinton fizesse a mesma coisa, como reagiria a imprensa de qualquer país da Europa num caso desses? Abriria manchetes generosas para bilhões de dólares que não existem ou que já existiam antes?

Historieta de indigência

Volto à questão da distância entre o que o jornal publica e o que a gente sente. Vou contar uma pequena história. Os cursos de pós-graduação são sérios, em geral, nas universidades públicas e em algumas confessionais. Isto significa que os alunos dedicam-se ao estudo em tempo integral, vivem na maioria com bolsas de 700 reais, lêem, em média, de seis a dez livros técnicos e científicos por semestre, quase sempre em inglês.

Há duas semanas, participei de uma reunião interessante em uma universidade federal. Tratava-se de proposta de uma escola particular – dessas que agora também se chamam legalmente de universidades, embora não o sejam legitimamente. Ela propunha um curso de mestrado em convênio. O curso terá que ser dado em módulos de três horas, nas noites de sexta-feira e aos sábados, pela manhã e à tarde – nove horas por semana, 45 horas em cinco semanas, seis créditos em 30 semanas.

Os alunos continuarão, é claro, trabalhando em tempo integral. E ganharão, é claro, o título, salvo se não conseguirem escrever qualquer coisa aceitável como dissertação, ou não tiverem quem escreva para eles. Em condições normais, a proposta nem seria considerada. Nas atuais circunstâncias, com os salários como estão e o clima de desânimo reinante, não só foi discutida como teve envergonhados defensores.

É isso que se observa por toda parte: a perda de qualidade nos hospitais, nos centros de saúde, nas escolas, em tudo que não é meramente comercial, isto é, onde as pessoas não podem ser consideradas apenas consumidores. Não há vantagem para o capitalismo nessa distorção.

Quando se fala em custo Brasil, fico me perguntando que louco irá investir num país em que se paga em dobro por educação, saúde, transporte e segurança – aos particulares que exploram esses serviços e ao Governo, que continua a cobrar impostos e os destina a financiar a rede bancária nacional e internacional, com juros de três por cento ao mês. Comparo essas circunstâncias com as de nossos concorrentes: a maravilhosa rede universitária da Coréia; os serviços públicos do Sul da Europa; a assistência médica, a política de abastecimento e de educação da China…

Banalização da denúncia

Dirão os colegas que os jornais estão cheios de denúncias. Também a Pravda estava. Um dos efeitos das denúncias repetidas é banalizar o que é denunciado, maneira pela qual se desmoralizaram, no Brasil, as escolas públicas do ensino básico e a rede oficial de saúde, com o apoio dos poderosos mecanismos de relações públicas montados pelos sindicatos de escolas particulares e empresas de seguro-saúde.

O que se precisa, no caso, é fazer com que a realidade aflore com precisão e seja levada a sério nas páginas de noticiários. Os veículos de comunicação não podem ser cartórios onde os interessados inscrevem suas fantasias e moldam os fatos à sua conveniência; é preciso que exista, nas redações, vida inteligente. Mostrar as contradições do discurso do poder é obrigação dos jornais, sejam governistas ou oposicionistas, quando têm compromisso com a realidade. Porque esconder a realidade é também exercício constante na imprensa brasileira.

Menciono algumas pérolas do gênero. Por exemplo, a edição eletrônica de O Globo, quando bolsa fechou em menos 8,4 por cento depois de ter estado em menos 10,2 por cento: “Bolsa reage”, anunciava a manchete. Ou a chamada do Jornal Nacional, da Rede Globo, no dia em que o ministro da Fazenda declarou ao Congresso que a crise era séria e duradoura: “Deputados e senadores foram trabalhar no sábado”.

Dizem os economistas e os jornais que o país está sem dinheiro. Será mesmo? Participo da comissão que planeja o provão para os estudantes de Jornalismo. Já imaginaram quanto custa planejar, promover, preparar, aplicar, corrigir e depois relatar em tabelas belissimamente impressas o resultado de provas para todas as habilitações de todos os cursos superiores e médios de todos os municípios do país? E destinar aos estudantes milhões de revistas em papel couchê 100 ou 120 quilos com ilustrações a quatro cores, para promover o evento? Tudo isso para obter um ranking de faculdades e escolas que tenha efeito de mercado, estimulando as piores a melhorar? Não é, em absoluto, coisa de país pobre.

A indústria de veículos impressos prospera no Brasil, principalmente por causa da crescente interiorização da imprensa, que se beneficia do caráter nacional das redes de televisão e rádio para ser o espaço da informação regional e local. São, em geral, jornais bonitos e alguns deles bem escritos, refletindo os resultados de três décadas de expansão do ensino universitário de Jornalismo no Brasil. Nos grandes centros, como nos prova o exemplo de O Dia, do Rio de Janeiro, há mercado quase virgem para a imprensa popular, desde que se tenha visão adequada do que o povo pensa e do que o povo precisa.

Ainda assim, a regionalização e a segmentação da imprensa diária, algo que devemos saudar com o maior carinho, precisa ser completada com a diversificação dos sistemas de informação. É claro que é muito oneroso para um veículo não central, mesmo os de capitais e cidades mais ricas, manter sucursais completas em Brasília e São Paulo. Mas eu os aconselharia a promover a cobertura paralela própria dos assuntos de interesse da região ou área temática; a se organizar para montar agências de informação associadas, como aconteceu nos Estados Unidos; a estudar meios de efetuar coberturas jornalísticas via Internet – em suma, a diversificar as fontes de matérias.

Trata-se de promover a pluralidade de linhas informativas, a descentralização do sistema que vejo como esperança de se voltar a ter uma imprensa ágil e atenta ao que o país é, de fato. Até porque os veículos interioranos não participam dos grupos que vão herdar empresas de telecomunicações nem disputam concessões de telefonia celular – e não têm, portanto, motivos para solidariedade tão íntima com interesses de Brasília ou das Ilhas Caimã.

O negócio dos jornais é tal que, quando param de dizer a verdade, perdem a função social e deixam de ter quem os defenda. É isto que se traduz no apoio que a proposta de uma lei de imprensa rigorosa vem encontrando em círculos altamente responsáveis.


(*) Palestra no seminário O papel do jornal 97 – Curitiba, 27/11/97.