Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O rato e seu clone leão

Carlos Vogt

“Pela ruela vêm vindo
Estranhos unicórnios
De que campos
De que bosques mitológicos?
Mais de perto
Diríamos que são astrônomos.”
Garcia Lorca

 

N

ão só o besteirol toma conta da televisão. O bestialógico e o bestiário também. Ratos e leões, além de outros roedores, reis e rainhas da floresta, povoam a atenção do telespectador nas matinées noturnas de desencanto e baixaria.

O fenômeno na mídia não é nacional, até porque foi copiado de outros países, como os Estados Unidos; é preciso, no entanto, buscar-lhe o entendimento patrício e a razão de tanto sucesso e tanta pontuação nos institutos de pesquisa de opinião.

Isso vem sendo feito por diferentes meios, sem esquecer, contudo, que a imprensa, muitas vezes motivada pela guerra santa contra a Rede Globo, pelos pontinhos do Ibope, exalta e exagera o acontecimento e minimiza a sua importância cultural, no sentido antropológico, e não estético, da expressão.

No caso de Ratinho, que já foi capa das principais revistas semanais de informação, o fenômeno é tão inusitado que o bicho pariu um leão e ninguém ficou muito admirado nem estupefato com a maravilha, sendo esta, sem dúvida, a maior aberração e extravagância entre todas as que o seu programa, livre e usualmente, exibe.

Pois não é fato que, deixando a TV Record pelo SBT, o Ratinho não tivesse também deixado, no ninho de seu nascimento, um clone de seu programa e um herdeiro rugidor de sua roeção? Os bichos migram, mas a grande família telemídia mantém-se unida no ilusionismo dos disfarces em que ora o leão é rato, ora o rato é leão. E a bicharada deita e rola nos resíduos do que não é aproveitado pelo estilo papai-sabe-tudo da Globo.

Ambos, Ratinho e Leão, incorporaram o missionarismo catequético e aliciador das moralidades edificantes que os bispos da Igreja Universal desfilam longamente na TV Record. E talvez não por acaso, já que, travestidos, no nome, em animais, povoam, mais ou menos perversamente, o mundo das fábulas que, desde Esopo, passando por Fedro e, mais tarde, por La Fontaine, preenchem o nosso imaginário simbólico com histórias de sabedoria e espertezas, com regras e normas de bom comportamento e com atos de justiça que funcionam como sucedâneos daqueles que não se praticam no mundo real dos homens falantes.

No caso, o rato da história é um pouco mais truculento que o rei dos animais, o leão, até porque é, como se disse, a sua matriz. O cassetete com que o apresentador Carlos Massa espanca as injustiças e os descaminhos da humanidade nas pancadas com marcação precisa de seus autos de fé mostra a fúria primitiva própria de um Velho Testamento levado à cena como farsa. Iracundo o Ratinho, as cacetadas, em som e violência, chacoalham o cenário, amedrontam a platéia, divertem o espectador e exorcizam os pecados do mundo.

A seqüência, sempre em farsa, já se conta no espírito de redenção do homem, pelo sacrifício do Senhor. É a redenção, o perdão, a solução para os problemas, as mazelas, as aberrações e as misérias da vida expostas crua e furiosamente no segmento anterior. O clima é de Novo Testamento e o rato raivoso, bem como, no seu território, o leão faminto, transformam-se, ambos, em ovelhas de sacrifício e salvação. Ninguém sai sem reconforto espiritual e solução material dos laboratórios de lázaros que são os programas desses simpáticos e violentos animaizinhos. Nesse sentido, é bom prestar atenção nas pantomimas que fazem as vinhetas dos programas, em especial aquelas desempenhadas pelo boneco-rato-com-cassetete-na-mão, cuja função é infantilizar a truculência e assim, torná-la mais consumível, inclusive para o público infantil. Haja venda e consumo do Mickey de cassetete!

Na cova do Leão é tudo igual, por clonagem. Não há ainda um boneco-ícone. Logo poderá haver. Quem sabe um leãozinho com uma rosa nos braços!?

Na edição da semana de 11 a 17 de outubro, o OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA NA TV fez um excelente programa dedicado ao fenômeno “zôo” na televisão, com depoimentos, reflexões, entrevistas e análises pertinentes. Reproduziu as denúncias relativas à armação sobre a reportagem da gangue do cemitério do Caju, no Rio de Janeiro, do programa do Leão Livre, e mirou, com pontaria, a questão da violência na mídia.

No domingo, 18 de outubro de 1998, a Folha de S. Paulo marcou um tento e tanto, um gol de placa, ao trazer no Caderno TV Folha uma reportagem de capa com o título A farsa do Ratinho, na qual revela “esquema usado por programas populares que transforma as pessoas comuns em protagonistas de falsos dramas exibidos na TV”.

Na matéria aparecem cidadãos que, em dificuldades financeiras, segundo seus depoimentos, foram aliciados para viver, no programa do Ratinho, a farsa da vida como ela é, ou como ela não é, o que dá no mesmo, pois não se sabe bem onde eles estariam pior, na situação que enfrentam na vida real ou na realidade das simulações de vida que são levados a representar para o sucesso de audiência do programa.

Tento para a Folha, em primeiro lugar porque trouxe no seu caderno de TV uma matéria densa e consistentemente cidadã; ponto para a cidadania, que, em conseqüência da reportagem, assiste ao Ministério Público mover uma ação contra os responsáveis pela mistificação.

Mas não nos iludamos, o Ratinho e o Leão são predadores culturais cujas tensões e disputas reproduzem arquétipos vigorosos, entre eles, já que estamos no universo bíblico -, o dos irmãos Caim e Abel, em cuja história o primeiro mata o segundo mas é, de certa forma, perdoado pelo mesmo Deus que o condena, pois encarna, no mito, o fundador de cidades e a necessidade do processo civilizatório.

O unicórnio do poema de Garcia Lorca, em epígrafe – para mantermos a atmosfera do bestiário que nos cerca -, além de representar o antípoda do bode expiatório (um entra na floresta carregado das culpas do mundo; outro, dela sai com a aura de toda a sua pureza) aparece aqui como ícone da televisão e de sua anteninha, no falo-chifre de sua esquisita docilidade. Não se sabe bem o que o unicórnio representa, que enigma e que interpretação pode decifrá-lo.

Os ratos e os leões da televisão vão passar. E até poderão desaparecer mais rapidamente pelas denúncias e pelas ações públicas de cidadania. O unicórnio, ainda assim ficará, espécie de esfinge com sinais invertidos. O enigma, nesse caso, não consiste na dificuldade de dar as respostas prontas para as perguntas-chave; está, na verdade, em formular a pergunta certa para as respostas que todos sabemos.

Os limites entre o público e o privado, o fato e a sua versão, entre a notícia e o espetáculo, entre o acontecimento e a história são cada vez mais difíceis de discernir e há mesmo quem diga – como na publicidade de uma marca de televisão que é usada por um grupo pretensamente primitivo para capturar um antílope – que as imagens são melhores do que o seu real.

Portanto, mesmo que um flautista de Hamelin leve todos os ratos da terra, junto com seus clones leões, resta-nos sempre a necessidade da pergunta-chave com que abriremos à luz a saudável utopia da realidade. Se não, como o antílope, a bicharada ficará sempre presa no próprio simulacro e sempre pronta para o próximo desembarque.

 


Victor Gentilli

 

U

ma matéria no caderno de TV da Folha de S. Paulo mostrando que os casos apresentados pelo apresentador Ratinho são farsas constituiu-se no tiro de largada para uma grande movimentação de combate ao programa.

O programa é de baixo nível, é preconceituoso, apela para o sensacional e o degradante.

Mas muitos viam ali a única alternativa para combater o monopólio da Rede Globo. Bastou a Folha colocar um repórter na rua para fazer jornalismo para que se soubesse que o “jornalismo” do Ratinho não era jornalismo, era farsa.

A partir da matéria da Folha e da reação do próprio Ratinho, toda a grande imprensa passou a acompanhar o caso.

Agora, depois do serviço prestado pelo jornalismo, até a Abert se movimenta.

 


Isak Bejzman (*)

 

E

u me pergunto: por que o personagem da TV, o Ratinho, assumiu este nome? Sei que só ele pode me dar a resposta certa, mas afinal das contas, por que Ratinho? É claro que veio à minha lembrança o porão de navio no qual minha mãe e eu imigramos para o Brasil, no qual os ratos eram meus amigos.

Um conto escrito por mim tem como personagem um pequeno camundongo chamado Marrom. Marrom, até ser morto, era um cara que sabia o que era rejeição. E o velho Dionélio? Me refiro ao saudoso mestre, médico psiquiatra gaúcho Dionélio Machado, com sua novela Os Ratos. Por que será que Dionélio deu esse título à sua novela?

É preciso pôr uma pedra sobre o ralo. Feito isso, jamais o rato adentrará nossa casa. Os ratos devem ficar nos esgotos, para não serem vistos. Para nunca serem vistos. E muito menos ouvidos.

Rato é coisa de cortiço. Na primeira metade do século, cortiços existiam só em São Paulo e Buenos Aires. Hoje o Brasil está infestado de cortiços. Os habitantes dos cortiços eram e ainda são os ratos humanos como o Rato do Dionélio, que não tinha como arranjar o dinheiro para poder comprar o leite de que o filho necessitava.

É muito feio olhar a baixeza e a imundície que grassam num cortiço. Quem se preocupa com essa gente? Quem quer vê-los? Aliás, nem sequer se sabe da existência deles, pois vivem um universo subterrâneo. Não aparecem no cinema, nos jornais ou em revistas; nem no governo. E o que dizer da promiscuidade sexual? Sons que ressoam na noite vindos das pocilgas; pocilgas onde o incesto prevalece.

Quem quer saber dessa gente que até parece falar uma língua estranha? E que não tem valores éticos? Decididamente, o cortiço não fala nossa língua.

Em termos de vida, quais são os limites desses seres humanos, a não ser viverem como ratos? Como é que eles vêem o mundo? Afinal das contas, enxergam o quê?

Não estou vendendo um programa de TV. Nem fazendo juízo de valor. É só uma tentativa de entender o porquê de milhares de pessoas se fixarem num programa que consegue acumular tanta baixeza, violência, degradação e realidade da miséria. O rato nos causa nojo, assim como os ratos humanos nos causam asco. É preciso vê-los e ouvi-los, tomar conhecimento deles, sim, e refletir sobre o porquê de eles existirem.

Como médico psiquiatra, pergunto: não será o programa a psicoterapia dos pobres e miseráveis? Enfim, uma catarse? Como jornalista, não julgo, e penso até que esses seres humanos precisam ser vistos e ouvidos, sim; eles, os ratos humanos.

(*) Médico psiquiatra e jornalista

 


Mauro Malin

 

N

ão chega a ser novidade, mas é bom, por via das dúvidas, celebrar: existe vida inteligente na Folha de S. Paulo (às vezes, derrapagem, é censurada…). Os professores Vogt e Gentilli, que me antecedem nesta página, chamaram a atenção para o feito do jornal ao recuar do entusiasmo inicial com Ratinho. Se Ratinho é o que é, então vamos à faxina. Ainda que a Globo possa disso tirar uma casquinha. E olha que a briga entre os grupos Folha e Globo é feroz.

A Folha de S. Paulo, que, vamos insistir, deu uma tremenda mancada ao censurar artigo de Alberto Dines, nesse caso merece as loas. Usou o raticida mais simples e eficaz: fatos, produzidos por reportagens de Daniel Castro (e Bruno Garcez; ver abaixo).

No terceiro texto que antecede este, o Dr. Bejzman pede que pensemos no público do Ratinho. Belíssima e comovente sugestão de pauta. Talvez sociologicamente equivocada, porque os cortiços não abrigam apenas, nem principalmente, “ratos humanos”. Abrigam trabalhadores enquanto não arrumam lugar melhor para viver. Mas até isso é preciso apurar. Por ser tão boa para uma reportagem, dificilmente a indicação do Dr. Bejzman será aproveitada. É que não vivemos num período propriamente glorioso do jornalismo pátrio. Mas, enfim, sempre há esperança.

Há porém outro assunto em pauta, infinitamente mais grave do que a TV Zôo.

Machado de Assis, cujo espírito grandioso rir-se-ia de toda a nossa pobre lida, disse que, para o Diabo, as capas de algodão têm franjas de seda, como as de veludo tiveram antes franjas de algodão.

Num artigo preciso, também na Folha de S. Paulo, Nelson de Sá aproveita o transcurso de “Uma década de democracia virtual” (caderno TVFolha, 1/11/98) para denunciar a manipulação político-eleitoral praticada pela Rede Globo.

Ao lado, na seção de cartas do caderno, a leitora Soraya dos Santos Leal, do Rio de Janeiro, escreve: “A reportagem ‘A Farsa do Ratinho’ foi a confirmação do que muitos já desconfiavam. Pena que a Globo tenha se aproveitado da situação para atacar sua concorrente. Que tal ‘desmascarar’ essa emissora também? O Fantástico, por exemplo, está muito apelativo.”

E não só ele, Soraya dos Santos Leal. Muito mais pesada porque mais ampla, e mais “respeitável” é a apelação do Jornal Nacional, antes, durante e depois das eleições. Durante e depois da ditadura.

Mas, como disse o sábio Machado, o manto de veludo tem franja de algodão. A reflexão sobre a espetacularização sórdida pode nos levar à reflexão sobre a sordidez da espetacularização “sóbria” que é arma política.

Que tal puxar uns fios? Nos outros zoológicos há bichos estranhos. Mais estranhos do que unicórnios…

 

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Reportagens de Daniel Castro sobre a farsa de Ratinho