Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O sujeito inominado do direito e a novilíngua

SOFTWARE LIVRE

Pedro Antonio Dourado de Rezende (*)

A revista Exame traz reportagem de capa sobre pirataria, na sua edição de 29 de outubro. Na capa, uma bandeira de pirata em fundo vermelho e título "Por que a pirataria pode acabar com o seu negócio (e como se defender dos corsários corporativos)". A matéria põe no mesmo saco cópias falsificadas de produtos físicos e cópias de software livre.

Cópias de software livre são absolutamente legítimas. Porém, ao explicar o movimento do software livre "em resumo", os autores arriscam: "Em vez de tentar fazer valer os direitos de propriedade intelectual ? o que é cada vez mais difícil com a internet ? o movimento do software livre estimula as cópias". O movimento do software livre estimula as cópias não porque despreze direitos de propriedade intelectual.

Ao contrário, o movimento do software livre estimula-as justamente em respeito a esses direitos. Faltou, é claro, a óbvia constatação de que esse respeito, no caso do software livre, é aos direitos do autor do software, que assim o deseja, e não aos interesses por trás da matéria. A partir desse crasso erro na atribuição do sujeito do direito, na frase acima, a palavra "cópia" que nela ocorre foi traduzida, em novilíngua, como "pirataria", para uma manchete na página anterior. Capciosa e leviana: "O modelo de negócio do software livre estimula a pirataria". Para que a leviandade? Anuncia-se a salvação: mais rigor com a propriedade intelectual (a dos interessados na matéria)!

Capital e liberdade

Esta manobra editorial de natureza político-lingüística poderia ser apenas um lamentável erro de atenção ou de concentração do editor, mas há outras lamentáveis coincidências. Com a mesma data (29 de outubro), revistas eletrônicas dedicadas a TI anunciaram o ataque da empresa SCO à General Public License (GPL), o instrumento jurídico pelo qual autores de softwares livres, interessados em preservar a liberdade de usuários e programadores em relação à sua obra, os licenciam.

A SCO havia atraído, regada a recursos oriundos da Microsoft, empresas de software livre para alguma ação judicial, provocando usuários do sistema operacional livre GNU/Linux com extorsão e chantagem, e seus programadores com calúnias, por suposta violação de direitos de propriedade intelectual que alega serem seus, mas que se recusa a especificar quais sejam. Na ação que lhe move a empresa Red Hat ela agora contra-ataca. Quer que a Justiça declare nula a GPL. O que haveria de errado com a GPL? A GPL é uma cessão de direitos, pelo autor do software licenciado, ao portador de uma sua cópia.

Esses direitos correspondem às quatro liberdades fundamentais relativas ao dito software, com apenas uma restrição: a GPL impede restrições a uma dessas liberdades, em redistribuições (a redistribuição é uma das quatro liberdades). A GPL não tem nada a ver com contratos aditivos para suporte e serviços ao software (SLA), que podem ser vendidos com garantias. Igual ao software proprietário, só que a agregação de SLAs à distribuição é livre, para quem tenha competência. A GPL é um hacking perfeito do modelo de licença de uso proprietário. A questão que se coloca é: teria o autor o direito de escolher em que termos e condições disponibiliza o usufruto de sua obra intelectual? A SCO acha que não, e o drama da guerra entre o poder do capital e a liberdade humana aumenta.

Mais cuidado

Mas essa não é a única lamentável coincidência. A preferência pelo software livre é política pública do governo brasileiro. E o é por amplos motivos, sendo o menor deles econômico, e o maior, estratégico. A matéria da revista Exame não só passa ao largo de todos esses motivos, mas insinua conduta irresponsável ou até criminosa do governo pela sua política, enquanto confunde o leitor, induzindo-o a crer que software não pago (software pirata) é o mesmo que software não pagável (software livre).

E há mais uma lamentável coincidência. A Editora Abril está seguindo maus exemplos de outros veículos da mídia, no tocante ao desleixo com a lógica e com a linguagem capazes de induzir o leitor ao mesmo erro de percepção e de julgamento moral. Como o Correio Braziliense, em matéria de 12 de outubro, comentada no Observatório da Imprensa (ver em <http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/
artigos/eno211020031.htm
>.

A Editora Abril, e qualquer outra por sinal, deveria ser mais cuidadosa ao tratar questões sensíveis de Estado em destaque. É que já existem precedentes de governos esquerdistas, em exercício na América Latina, dedicando especial atenção à burocracia fiscal e aduaneira para empresas de mídia que se mostram tendenciosas e levianas no trato de assuntos sensíveis de Estado.

(*) ATC PhD em Matemática Aplicada pela Universidade de Berkeley, professor de Ciência da Computação da Universidade de Brasília (UnB), coordenador do programa de Extensão Universitária em Criptografia e Segurança Computacional da UnB, representante da sociedade civil no Comitê Gestor da Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira