Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O Terceiro Mundo da Souza Cruz e da mídia

Paulo Lotufo, de Boston

 

A

pós o frenesi dos medicamentos, dois textos tentaram caracterizar o perfil epidemiológico brasileiro. Um, “crítico”, na Folha de S. Paulo (24/5/98, “Causas predominantes de morte refletem as desigualdades no país”, e 27/5/98, “Brasil já sofre doenças da riqueza antes de ter erradicado a miséria”), outro “otimista”, em Veja (“Melhorou e, muito” publicado em 27/5/98). As duas reportagens tinham algo em comum: primeiro, a fixação em piorar o país e, segundo, desconsiderar como determinantes da mortalidade o cigarro, a bebida alcoólica e o ganho de peso.

As reportagens da Folha abordaram a “transição epidemiológica”, conceito mal interpretado pelos próprios epidemiologistas. Voltou no tempo, com a idéia de dois Brasis, um pobre e outro rico. Como a médica e professora da Fiocruz Dora Chor enfatizou:

“Já há estudos epidemiológicos no país em quantidade e qualidade suficientes para confirmarmos o que Cristina Possas escreveu em seu livro Epidemiologia e Sociedade: heterogeneidade estrutural e saúde no Brasil, Ed. Hucitec, 1989: ‘No Brasil não há substituição das doenças infecciosas pelas crônicas não transmissíveis, mas grandes parcelas da população submetidas ao maior risco de todas essas enfermidades em função de sua situação social e econômica. Assim, não existe um Brasil atrasado e outro Brasil moderno, cada um com seu perfil de doença e morte, mas grande parcela da população padecendo de todos os males’.”

As doenças cardíacas e cânceres (como os do estômago, freqüentes no Brasil) em todos os estudos epidemiológicos estão cada vez mais associadas às más condições de vida e, não à afluência, como se pensava no início do século. Verdadeiro frenesi vive hoje a epidemiologia, com a comprovação em estudos repetidos com populações e locais diferentes da hipótese de David Barker. Pesquisador britânico que mostrou que crianças com baixo peso apresentavam mais hipertensão e doenças cardíacas quando adultos.

Por outro lado, as doenças infecciosas e parasitárias hoje necessitam de estudo criterioso, para se compreender a sua dinâmica. Nada é simples como sugere a idéia de forte conteúdo militarista de extinção das doenças infecciosas. Como os biólogos estão cansados de ensinar aos médicos: os outros seres vivos que nos “causam” doenças também querem viver, e encontrarão uma forma de sobreviver, quer o Homo sapiens goste ou não.

No texto da Folha abusou-se da retórica da pobreza, chegando-se a uma lapidar redundância, como na frase “de países subdesenvolvidos (do Terceiro Mundo)…”. Esta mesma retórica induziu Veja a um erro de informação equivalente a afirmar que a maioria dos brasileiros vivem no campo, e não nas cidades.

Apresentando um relatório da Organização Mundial de Saúde (ver abaixo URL do site) sobre o aumento da longevidade, o autor não teve dúvida em considerar o Brasil dentro do developing world e forneceu a seguinte informação: “em países atrasados, como o Brasil, ainda predominam as doenças parasitárias“. Os dados do Ministério da Saúde (ver abaixo) mostram uma informação bastante diferente, retratada no quadro abaixo. Em 1995, as doenças cardíacas representaram um terço das mortes, enquanto as doenças infectoparasitárias eram a sexta causa, com 5% dos óbitos.

Tudo isto poderia ser considerado como exageros de acadêmico, exigindo da imprensa diária e semanal o rigor e a qualidade que mesmo a ciência não consegue, com muito mais tempo. (Entretanto, foram produzidos, nos últimos anos, dois textos excelentes caracterizando o perfil epidemiológico brasileiro [*]).

Porém, no dia 28 de maio, o Ministro da Saúde, põe em prática a proposta de controle do tabagismo, oriunda dos técnicos do Instituto Nacional do Câncer, do Rio de Janeiro, sintonizada com o que há de mais avançado no controle da epidemia tabágica no mundo. Obviamente trata-se do controle da propaganda do cigarro e o aumento da sua taxação.

A reação a esta proposta foi imediata, segundo O Globo (29/5/98): “O diretor de Comunicação Empresarial da Souza Cruz, Nelson Homem de Mello, reagiu com ironia: ‘Acho legítimo que ele defenda a saúde da população mas posso discordar das prioridades. O Brasil tem problemas estruturais na saúde, como a tuberculose e a dengue’.”

Nada a concluir, a não ser sentir saudades de Mário Henrique Simonsen, e Darcy Ribeiro, que em campos ideológicos distintos, enobreciam o pensamento brasileiro, vítimas, ambos – como talvez nos convençam nas próximas semanas, a imprensa brasileira e os seus anunciantes – não de câncer de pulmão, mas de dengue e tuberculose!

Causas de mortalidade no Brasil no ano de 1995, segundo dados do Ministério da Saúde (causas indefinidas foram excluídas)

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