Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Ofensa global

O CLONE
(*)

Lúcio Flávio Pinto (**)

O Pará está revoltado com o tratamento que recebeu na principal novela da Globo, O Clone. Um dos personagens diz que o Estado é o fim do mundo. Uma casa focalizada em Belém sequer possui luz elétrica. Nem mesmo aparelho telefônico, que já existe em remotas aldeias indígenas. É retratada com uma choça no meio do mato. A música referida é nordestina, com triângulo e zabumba, instrumentos que nada têm a ver com a cultura paraense.

Parece até que o Brasil não conhece a Amazônia. E não conhece mesmo. Parece que a ignora. E, de fato, dela não quer saber. Parece que a despreza. E realmente a despreza. Mas para reclamar com conseqüência, os paraenses precisariam reconhecer que o enredo da novela revela, sem retoque, embora com distorção e caricaturismo, a imagem que do distante Norte tem o Sul Maravilha. Atacar apenas a novela é tomar a imagem refletida pelo que lhe dá causa.

Quando punido, militar era mandado do Brasil para a Amazônia. Podia ser castigo mesmo, como o que sofreu o então coronel (depois general) Gustavo Moraes Rego quando, no final da década de 60, foi mandado para Tabatinga, na longínqua fronteira do Brasil com a Colômbia. Era o acerto de contas do vitorioso grupo do marechal Costa e Silva, a linha dura do movimento militar vitorioso em 1964, com o destronado séquito castelista. Mas não foi por verdadeira promoção que o próprio marechal Castelo Branco foi mandado para o Comando Militar da Amazônia e a 8? Região Militar, então reunidos em Belém (o CMA foi transferido posteriormente para Manaus), uma década antes.

Mesmo a maior cidade da região, que hoje está com 1,2 milhão de habitantes, era um inferno a partir da ótica de um oficial superior acantonado às margens do litoral centro-sul do país, onde, desde a época quinhentista, a civilização arranha a praia como caranguejo. A capital foi transferida compulsoriamente das praias cariocas para a vastidão solitária do Planalto Central, mas o imaginário coletivo nacional continuou se bronzeando em Copacabana.

Conferencistas da região reclamam de auditórios que, em suas palestras, querem que a exposição se circunscreva ao exotismo da jungle, à iconografia da selva selvaggia aspra e forte. Espectadores atentos costumam desligar quando um intelectual nativo começa a tratar da maior fábrica de alumínio do continente, dos intrincados novelos dos financiamentos internacionais concedidos a empreendimentos de vanguarda instalados em pontos remotos da mata, ao jogo de bastidores de grandes cartéis nela estabelecidos, como os da bauxita, do caulim e do cobre, que negociam em Londres com um olho no número crescente de minas que entram em operação na Amazônia.

Um auditório em Livorno, numa daquelas frias noites do litoral mediterrâneo da Itália, ficou tão sensibilizado com o relato que lhe fiz das estações da paixão amazônica que queria formar imediatamente seu Exército Brancaleone para libertar a região, como personagens redivivos de Torquato Tasso. Deixei passar um pouco o clima e sugeri-lhes que, antes, dessem uma passada pelo mezzoggiorno para liberar os Schilacci da vida do marginalizado sul do país. A libertação que eles alcançassem, eu gostaria de partilhar, tão longe dali, beneficiado por uma solidariedade internacional, aí, sim, saudável.

E a nossa: existe? Falei no jogador italiano porque ele estava no auge da fama (quem lembra?), driblando como um Garrincha em formato menor, desengonçado em tamanho idêntico, pássaro balado desde o nascedouro, condenado a esse tipo de inferioridade discriminatória que a novela global reservou aos paraenses.

Se a ofensa foi onerosa ou gratuita, paga como merchandising equivocado pelo governo do Estado ou um tardio acerto de contas da novelista com a região de origem, não interessa, embora fosse de interessar às instâncias encarregadas de apurar a justeza e conveniência dos gastos públicos. Ela é multissecular. Só dói mais porque aparece na moldura eletrônica da campeã (ou ex?) de audiência. Mas é rotineira, diária.

Semanas atrás um jornal sulista anunciou que o Conselho Monetário Nacional aprovara na véspera a realização do leilão de venda do "Banco do Estado da Amazônia". Tal instituição inexiste. Existe o BEA (Banco do Estado do Amazonas), que efetivamente será licitado no dia 18 de janeiro, e o Basa, o Banco da Amazônia, originário do Banco da Borracha, criado a quatro mãos pelo Brasil e os Estados Unidos, na década de 40, para dar apoio financeiro à produção de látex para o esforço dos aliados durante a Segunda Guerra Mundial. O BEA é estadual. O Basa é federal. O primeiro tem sede em Manaus. O segundo, em Belém. Entre as duas cidades há uma distância maior do que entre São Paulo e Brasília.

É surpreendentemente grande o número de pessoas incapazes de distinções ? até mesmo geográficas ? no vasto espaço que a Amazônia ocupa no mapa nacional. O Estado do Amazonas, o maior da federação, com 1,5 milhão de quilômetros quadrados (quase 20% do espaço brasileiro), é confundido com toda a região, a Amazônia. Aliás, ela não é uma, mas, no mínimo, duas.

Há a Amazônia Clássica, ou Norte, delimitada pelos pontos extremos, ao norte e ao sul, da enorme bacia amazônica, que drena o maior volume de águas internas do planeta (20% da água todos os rios da Terra somados). Sua característica mais marcante é sua floresta, densa e diversificada como nenhuma outra, a hiléia, conforme o sábio alemão Alexandre Humboldt a batizou. Engloba apenas seis Estados (Pará, Amazonas, Rondônia, Roraima, Acre e Amapá), que já constituíam o Grão-Pará sob a administração colonial portuguesa, que o repassou, como um país à parte, constrangidamente, ao império brasileiro.

Nas bordas desse núcleo foram coladas duas regiões limítrofes: o Meio-Norte, emprestado do Nordeste, sem o Piauí, e a parte setentrional do Centro-Oeste, para que frentes econômicas delas oriundas recebessem colaboração financeira do governo federal (através dos polêmicos incentivos fiscais). Com esse dinheiro extra, sacado dos cofres públicos, poderiam se expandir aceleradamente no rumo da Amazônia propriamente dita, continuando uma "corrida" secular rumo à integração e à soberania nacionais, contra supostas ameaças internacionais (ainda que à custa da descaracterização ou destruição da região de destino). Garantindo o Brasil Grande de todos os sonhos.

Neste momento começa a chover intensamente em parte da Amazônia, onde está chegando o "inverno". Em outra parte da região a chuva mais pesada já se foi, autorizando seus habitantes a tratar a estação como verão. Mais ou menos chuva, aliás, é o principal traço de diferença entre as duas únicas estações climáticas locais. Quem chega bem informado a Belém já sabe que um guarda-chuva pode ser um valioso acessório quando a água cai pesada do céu (o cenário inspirou um sugestivo romance amazonense, "Chuva Branca", de Paulo Jacob). Já quem vai para Boa Vista, a capital de Roraima, deve se preparar para a canícula que irá encontrar.

O Brasil costuma encarar a Amazônia como seu melhor passaporte para o futuro, o almoxarifado de riquezas no qual irá suprir quando as áreas de mais antiga ocupação do país esgotarem o seu potencial. A incorporação dessa reserva vem sendo feita com velocidade cada vez maior, à medida que um novo "grande projeto" (o nome de batismo local para os velhos enclaves coloniais) agrega mais um produto made by Amazon no mercado internacional, suprindo a reserva monetária de dólar (o Pará tem o segundo superávit do comércio exterior brasileiro).

Foi isso o que o então todo-poderoso ministro Delfim Neto disse ao seu colega japonês Saburo Okita, no início da década de 70, quando os dois "milagres econômicos" buscavam suas complementaridades. A elevada poupança nacional japonesa, porém, contrastava com a baixa tendência brasileira à poupança, deixando nosso boom sob o risco do artificialismo. "A Amazônia vai completar essa diferença", garantia Delfim.

Talvez isso tenha funcionado para o Brasil. Mas não para a Amazônia, que tem pagado um preço extremamente alto para continuar a receber fluxos migratórios tão intensos quanto imensos têm sido os índices de destruição da natureza. Se o Brasil quer dar um fim mais nobre e duradouro à região que contém dois terços do seu território, já é hora de conhecê-la melhor. Acabaria pelo menos com exemplos de ignorância e descaso como os exibidos na novela global, uma fonte de desinformação para milhões de brasileiros se desviarem de uma relação mais fértil com sua monumental Amazônia, mantendo um desgastastante desencontro com o futuro e a utopia.

(*) Distribuído pela Agência Estado, 17/12/01

(**) Jornalista