Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Oito anos de trabalho sujo

ENTREVISTA /ALEXANDRE MATIAS

Rodney Brocanelli (*)

Não é nenhuma novidade que hoje a informação de qualidade já não é mais privilégio dos jornais, rádios e TVs. Alguns sítios independentes (e individuais) vêm fazendo um ótimo trabalho, principalmente na área de cultura pop, comportamento e cybercultura. Um deles é o Trabalho Sujo (http://www.gardenal.org/trabalhosujo), pilotado pelo jornalista Alexandre Matias, um misto de e-zine e blog atualizado quase que diariamente. O mais interessante é que o Trabalho Sujo começou há oito anos (completados no último mês de novembro) como uma coluna semanal do jornal Diário do Povo, de Campinas, falando basicamente de música. Hoje, a pauta de assuntos está muito mais variada. “Fala de tudo o que me der na telha, apesar da ênfase ainda ser música”, afirma.

Todos os textos (que na verdade são verdadeiros ensaios) dessa fase atual do Trabalho Sujo são assinados pelo próprio Alexandre Matias. Na entrevista que se segue, realizada por e-mail, Matias conta, entre outras coisas, como foi essa transição do “on-paper” para o “on-line”. “Desenvolvi um vínculo com o leitor on-line que me isenta de qualquer responsabilidade textual. Num veículo impresso, a abordagem é outra”, diz. Ele fala também sobre os efeitos sofridos pelo jornalismo com o advento da internet: “Ela funcionou, e funciona, como melhor alternativa para quem quer se publicar sem ser mediado”, afirma. A seguir, sua entrevista.

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Conte um pouco da história do Trabalho Sujo.

Alexandre Matias ? Eu comecei a trabalhar em jornal em 94, no Diário do Povo, de Campinas, em um caderno para adolescentes chamado “Diário Pirata”, que era fruto da onda “teen” que baixou no Brasil com a vinda da MTV, o Rock in Rio II e os novos comerciais de iogurte, no começo dos anos 90. Como era considerado um item supérfluo pelo jornal, foi o primeiro a ser cortado quando a primeira crise baixou no Diário, em outubro do ano seguinte. Me deram opções de ir pro caderno de cidades ou ir pra rua e eu optei pela rua. Ao mesmo tempo, contatei o jornal concorrente, o Correio Popular, que estava começando sua seção para adolescentes na mesma época e ofereci uma coluna sobre música pop, que era o Trabalho Sujo. Nesse meio tempo, o editor-chefe do Diário soube do Sujo e me convidou pra escrever no próprio jornal, pois não queria perder o público do Pirata. Comecei a vender, com frila, a coluna pronta, escrita, ilustrada e diagramada toda por mim. Ou seja: ninguém mais poderia assumir a coluna quando eu tirava férias ou adoecia.

Em compensação, a coluna, que era semanal, saía todas as semanas, sem falta, de novembro de 1995 a março de 2000, que foi o período que eu fiquei no Diário. Durante esta época, o Sujo saiu da contracapa do caderno de cultura de segunda-feira para se tornar duas tripas de texto bissemanais ? às quartas e sábados ?, a contracapa do caderno de cultura de sábado e, finalmente, a página dupla do caderno de cultura de domingo. Eu tinha que negociar o Sujo com cada editor-chefe que entrava no jornal, pois todos eles achavam que a coluna, que falava de música internacional que não tocava no rádio, discos importados e artistas brasileiros desconhecidos, não tinha a ver com o estilo do jornal.

Quando foi comprado pelo Correio, em 1996, a empresa, que se chamava Grupo Correio e tornou-se depois a Rede Anhangüera de Comunicações, adotou uma política que o Diário seria o jornal popular do grupo. E quase todos os editores-chefe do jornal viam a coluna como “elitista”, pois falava dos assuntos que eu disse aí em cima. Eu retrucava que, num jornal popular, às vezes esse era o único canal que o leitor poderia ter com aquele tipo de música. E era batata: no auge do que eu chamo de “era de ouro” do Trabalho Sujo ? quando era uma página dupla de domingo, entre 1997 e 1999 ? a imensa maioria dos meus leitores comprava o Diário para ler o Sujo. No fim de 1997 ele começou a ser publicado on-line ? eu fiz a primeira versão do sítio do Diário do Povo e dei um jeito de incluir o Sujo entre as opções do jornal.

A partir de 98 o público começou a crescer para fora de Campinas e o retorno que eu tinha via internet me fez criar o sítio 1999 com o Abonico, que hoje toca o Bacana, no ano seguinte. No ano 2000 eu fui para o Correio e desmembrei o que eu empilhava em uma edição semanal do Sujo na linha editorial do caderno de cultura, que eu comecei a editar. Como o Sujo havia oficialmente terminado, o equivalente era uma coluna de discos semanal chamada Termômetro, em que eu resenhava, extensamente, um disco por semana. Mas como na internet o endereço era o http://www.geocities.com/trabalhosujo, o Termômetro era, bem ou mal, uma extensão do que era o Sujo. Quando fui pra Conrad, no ano seguinte, deixei o Sujo de lado e passei quase dois anos produzindo conteúdo pra Play e outras coisas na editora. Saí no ano passado e, como resolvi ficar só trabalhando com frilas, percebi que tinha de ter uma espécie de “central”, em que as pessoas pudessem me encontrar, caso me procurassem. O sítio no Geocities havia se transformado numa homepage de links para umas coisas minhas que eu tinha na rede e resolvi retomá-lo para fazer o papel de base on-line. Para diferenciar do trabalho anterior, mudei o nome para Trabajo Sulho, mas quando me chamaram para o Gardenal, resolvi colocar Trabalho Sujo mesmo, porque era como todo mundo se referia ao sítio.

Como você definiria o TS hoje? Ele é um blog, um e-zine ou algo que está no meio do caminho entre esses dois formatos?

A.M. ? O Sujo é um sítio. Uma página de internet, um formato bem anos 90 mesmo, com alguns recursos dessa nova década, como o arquivamento individual dos posts, comentários e facilidade de mexer em sua estrutura. Ele tem um blog dentro dele, que é o Talagadas, mas ele é, a princípio, uma central onde eu posso encontrar os meus textos e informações que possa precisar de vez em quando. Ele começou como uma espécie de HD virtual, e nesse sentido eu quero colocar tudo que produzi no sítio ? embora haja uma pequena distância entre querer e fazer.

Existe alguma diferença entre o Trabalho Sujo antigo da versão impressa e o Trabalho Sujo on-line dos dias atuais?

A.M. ? Sim. O Sujo antigo era uma coluna de música, de novidades dentro de uma área específica da produção musical no Brasil e no mundo, que comentava discos lançados e entrevistava quem estava lançando discos. Uma página de serviços, com acento crítico. Hoje o Sujo é um trabalho muito mais pessoal e menos formal e fala de tudo que me der na telha, apesar da ênfase ainda ser música.

Há algum espaço no jornalismo impresso para o TS ou o seu destino final é mesmo a internet?

A.M. ? Do jeito que ele é hoje, o Sujo é um veículo de internet. Quem chega ali já tem um nível de informação mais selecionado, não dá pra fugir disso. Num jornal, a responsabilidade é maior, porque o público é mais amplo e, portanto, mais exigente. Desenvolvi um vínculo com o leitor on-line que me isenta de qualquer responsabilidade textual. Num veículo impresso, a abordagem é outra.

Faça um balanço do que de melhor aconteceu no Trabalho Sujo nesses oito anos.

A.M. ? Acho que poder acompanhar a época que estamos vivendo é, sem dúvida, a melhor coisa do Trabalho Sujo, tanto para mim, como, creio, para os leitores. Acho que tudo que estamos assistindo hoje ? não só em termos de música ou cultura, mas de um forma geral ?, é decisivo para o nosso futuro. É a tão propalada “mudança de paradigma”, em que o formato industrial, hierárquico e autoritário, cede ao eletrônico, horizontal e cooperativo.

A cultura, a música, a arte em geral, funciona não só como o melhor reflexo dessas transformações como uma espécie de laboratório para as novidades. E não é por acaso que a música, em especial, é o carro-chefe dessas mudanças ? ela é tão fácil de ser consumida e consegue falar tão profundamente às pessoas que se torna o veículo perfeito para estas transformações. Então quando falamos em música on-line, pirataria, MP3, mercado independente, show business, grandes gravadoras, CD-R, estúdios caseiros, estética faça-você-mesmo, programas P2P e DVD, estamos falando de um mesmo movimento, que diminui os poderes dos poucos que dominavam o mercado para aumentar o daqueles que até outro dia eram apenas ouvintes. E isso é apenas um exemplo do que vai acontecer em diversas outras esferas, no planeta. Há uma tendência ao equilíbrio.

Trabalho Sujo pode vir a migrar para alguma outra mídia que não seja escrita (rádio, TV etc) ou isso seria um sonho distante?

A.M. ? Nunca pensei nisso, mas quando criei o Sujo nunca pensei que ele se tornaria uma página de internet. Já trabalhei com rádio, quando morava em Campinas. Produzia e apresentava dois programas, em duas épocas diferentes: o Ari Bazão, na rádio Muda, em 94/95, e o Beatbox, na rádio Cultura, em 2000. Não é um sonho distante, porque eu nunca sonhei isso.

Você acredita que o refúgio do jornalismo de qualidade na área cultural esteja na internet?

A.M. ? Não, isso é passado. Acho que estamos saindo de uma época péssima rumo a uma outra que pode ser decisiva em muitos aspectos ? desde no posicionamento do país no mercado global à recuperação da própria auto-estima do povo brasileiro. A internet funcionou, e funciona, como melhor alternativa para quem quer se publicar sem ser mediado, e por isso virou esse refúgio que você está falando nos últimos anos. Mas desde o começo de 2002, as coisas têm melhorado substancialmente. O problema é que isso não se percebe instantaneamente, e as pessoas levam algum tempo pra digerir algumas mudanças.

Além do Trabalho Sujo, o que você tem feito profissionalmente?

A.M. ? Tenho vivido de frilas, uma vida que não tenho do que me queixar. Atualmente, estou publicando na Folha de S. Paulo, tanto na Ilustrada quanto no caderno de Informática, na revista Volume 01 e no sítio da Som Livre. Também estou trabalhando com tradução e mediação de debates. Estou com vários outros projetos na manga, mas prefiro esperar eles acontecerem.

(*) Colaborador dos sítios Ruídos, Canal B, Esquizofrenia, 3am e Papo de Bola; blog pessoal: < <onzenet.blogspot.com>