Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Olavo de Carvalho

ROBERTO MARINHO (1904-2003)

"O último dos reacionários", copyright O Globo, 9/08/03

"Num ensaio publicado em 1961 na Partisan Review, Lionel Trilling observava que o traço essencial da cultura intelectual moderna era ?uma crença de que a função primária da arte e do pensamento consiste em libertar o indivíduo da tirania da sua cultura — no sentido ambiental do termo — e permitir-lhe erguer-se diante dela com autonomia de percepção e de julgamento?.

O tema da cultura intelectual versus cultura ambiental aparece já num estudo anterior do crítico norte-americano, The Opposing Self (?O Eu Oponente?), de 1955. A literatura romântica entre os séculos XVIII e XIX assinala o advento do ?escritor? como tipo humano marcado pela capacidade — ou necessidade — de sobrepor ao império do discurso coletivo a autoridade intrínseca de uma visão do mundo nascida da experiência pessoal. Numa época de derrocada geral das crenças e valores, quando tudo parecia naufragar na banalidade compressiva da sociedade de massas, o testemunho direto do artista adquiria uma força moral comparável à de Sócrates ante a assembléia de seus carrascos. A ?cultura intelectual? era o refúgio do espírito contra a ?cultura adversária? — a cultura dos slogans e da demagogia.

Mas a era do escritor moderno já estava em declínio em 1961. Desde algum tempo, assinalava Trilling, era cada vez maior, nos meios intelectuais, o número de pessoas que aderiam à ?cultura adversária?. Os jovens que ingressavam no mundo das letras já não queriam exercer a autêntica, a profunda liberdade de consciência, com toda a grave responsabilidade íntima que ela implicava. Em vez disso, queriam ?pensar por si mesmos?, fórmula pomposa que significava apenas: repetir servilmente as beatices progressistas em vez das conservadoras.

A situação tomara esse rumo no instante em que as universidades se tornaram o canal e molde predominante da carreira literária. Transformados em classe profissional acadêmica, os escritores da segunda metade do século XX cortaram os laços com a experiência pessoal para integrar-se na revolta padronizada do ?intelectual coletivo?. Sua rebelião já não era a do espírito contra o mundo: era a ?rebelião das massas?.

Dois outros fatores contribuíram para esse resultado. Primeiro, o ensino acadêmico tornou-se fornecedor de mão-de-obra para a ?índústria cultural?, substituindo a autenticidade individual pela ?novidade? produzida em série. Segundo: as novas fórmulações ideológicas do progressismo, herdadas sobretudo da Escola de Frankfurt, diluíam a marginalidade criadora do ?eu oponente?, absorvendo as possíveis individualidades intelectuais no ódio coletivo a toda cultura superior. ?Diversidade? e ?multiculturalismo? são fórmulas que hoje desviam os jovens letrados dos anseios espirituais mais profundos, substituídos pelas satisfações morais postiças do discurso ?politicamente correto?.

Essas considerações não me vêm à mente assim por nada, a esmo, mas a propósito de um personagem de quem se falou muito nos últimos dias: aquele homem extraordinário que foi Roberto Marinho. Ele foi o criador e senhor da maior organização de indústria cultural do continente. Teve a máquina nas suas mãos e não hesitou em usá-la para orientar o país na direção que lhe parecia a mais desejável. Mas, acima das suas crenças, acima do seu próprio poder de empresário e de líder, havia para ele um recinto sagrado, intocável: a liberdade da consciência. Ele combatia tenazmente por aquilo em que acreditava, mas com idêntico vigor lutava para que ninguém fosse privado da possibilidade de acreditar no contrário. Como intelectual e jornalista ele foi, nesse sentido, um típico filho das letras modernas, um homem para quem a liberdade interior, em si, valia mais do que este ou aquele conteúdo de consciência, do que esta ou aquela idéia, do que esta ou aquela certeza, por importante e querida que fosse. Dono da máquina, não apenas não se deixou engolir por ela, mas também impediu que ela esmagasse, com o seu peso, a liberdade de seus próximos — incluindo-se nesta categoria os seus mais rancorosos adversários e detratores, aqueles mesmos que fizeram dele o brasileiro mais difamado e caluniado do século XX, mais até do que Roberto Campos.

Roberto Marinho foi, assim, homem de outra época.

Para a quase totalidade dos intelectuais de hoje, a vitória da sua causa, do seu partido, da sua crença, está tão acima de qualquer outro valor ou ambição, que cada um a identifica com a vitória da liberdade mesma, da liberdade geral e universal, da grande e definitiva liberdade que há de imperar na bela ?sociedade mais justa? de amanhã. E em nome de tão elevado ideal é legítimo e válido, e até moralmente obrigatório, suprimir pelo caminho a liberdade pequena e provisória, a liberdade de consciência dos indivíduos. O problema é que esta é uma realidade concreta, da qual toda a literatura moderna dá testemunho, enquanto a outra é uma hipótese abstrata, um chavão para uso de agitadores e cabos eleitorais. Os antigos totalitarismos falavam em nome da ordem, da autoridade, da hierarquia. Ostentavam com orgulho o nome de ditaduras. O neototalitarismo contemporâneo sufoca a liberdade viva em nome de um estereótipo de liberdade, feito para a autolisonja fácil de ?movimentos sociais? criados em série por intelectuais ativistas, a prole inumerável, ruidosa e prepotente da universidade de massas e da indústria cultural.

Para a cultura intelectual moderna, a tolerância era, em essência, tolerância para com os adversários. Os novos tempos substituiram-na pela fórmula da ?tolerância libertadora? proposta por Herbert Marcuse: ?Toda a tolerância para com a esquerda, nenhuma para com a direita.?

Hoje, aqueles que mais professam abominar a autoridade, a ordem, a repressão, são os primeiros a convocá-las para sufocar as vozes discordantes. Por isso a defesa da liberdade de consciência, como advertia o próprio Trilling, tornou-se conservadora, ?reacionária?. Roberto Marinho foi, nesse sentido, o último dos grandes reacionários. E por isso é mais fácil elogiá-lo, depois de morto, do que seguir o exemplo."

 

"Interrompemos nossa programação", copyright Veja, 13/08/03

"O jornalista e empreendedor Roberto Marinho, morto na quarta-feira passada, aos 98 anos, vítima de embolia pulmonar, foi durante um longo período da história brasileira um dos homens mais poderosos do país. Em 1965, ao inaugurar a TV Globo, Marinho, que já amealhara considerável prestígio com sua paix&atildatilde;o, o jornal O Globo, tornou-se ainda mais influente. A emissora campeã de audiência no país encarna a síntese da capacidade empreendedora de Roberto Marinho e da equipe que ele montou, prestigiou e remunerou com generosidade reconhecida. Não é exagero dizer que a Rede Globo é uma espécie de Hollywood brasileira. Suas novelas e séries especiais tiveram papel fundamental na homogeneização da cultura de massas no Brasil, país em que 90% dos lares têm pelo menos um televisor. A criação de Roberto Marinho tirou da telenovela a pecha de programação de baixo nível, promovendo-a muitas vezes a dramaturgia de impacto e prestígio internacional, exportada para 130 países. A Globo é o coração do conglomerado de comunicação que reúne três jornais, rádios, gráfica, gravadoras e canais de TV paga, internet e uma editora de revistas e livros. A Rede Globo produz 4.420 horas de programação por ano, faturou 2,5 bilhões de reais em 2002 e é a quarta colocada no ranking mundial de TVs. No horário nobre, 74% dos televisores ligados no Brasil estão sintonizados na emissora. Sua central de produções, o Projac, no Rio de Janeiro, ocupa um terreno de 1,3 milhão de metros quadrados, fabrica cenários, figurinos, cidades inteiras.

Marinho conseguiu sua primeira concessão de TV em 1957, no governo de Juscelino Kubitschek. Na época, quem dava as cartas das comunicações no Brasil era o mitológico Assis Chateaubriand, o homem que criou os Diários Associados e colocou no ar a TV Tupi, inaugurando a era da televisão no país. Foi no processo de construção da Globo que o empresário se instalou nas altas esferas do poder do país. Logo no primeiro governo militar, foi ele o emissário do presidente Castello Branco para convidar Juracy Magalhães a ocupar o Ministério da Justiça. Poucos anos mais tarde, o mesmo Juracy Magalhães ouviria, calado, a resposta de Marinho a seu pedido para que demitisse os jornalistas militantes de esquerda. ?O senhor cuida dos seus comunistas. Dos meus, cuido eu?, reagiu. O pináculo de sua influência política ocorreu, sem dúvida, durante o governo Sarney. Candidatos ao Ministério das Comunicações e ao da Fazenda chegaram a ser sabatinados por Marinho, a pedido de Sarney, antes de ser efetivados no cargo. Em 1988, logo depois da demissão de Bresser Pereira do Ministério da Fazenda, Marinho foi convidado para um almoço com o presidente José Sarney. O presidente o consultou sobre a sucessão. Ele sugeriu um nome, que não vingou. Sarney solicitou ao empresário que recebesse Mailson da Nóbrega. Após o encontro, satisfeito com o que ouvira, Marinho telefonou ao presidente, que lhe pediu para anunciar o novo ministro na TV Globo. Mailson só foi comunicado da escolha depois.

Conservador na política, liberal na economia, Marinho fazia com que seus veículos de comunicação sempre tomassem posição política alinhada com seu pensamento e harmonizada com seus interesses. Não se deixou dominar pelo mito confortável da imparcialidade na imprensa. Preferiu o risco de tomar partido, o que fazia de modo transparente. Roberto Marinho se cercou de pessoas que pensavam como ele ou que, mesmo não tendo afinidades ideológicas com o chefe, agiam de modo a não contrariá-lo. Como toda organização de cultura fortemente nuclear, a Rede Globo reagia mais lentamente às mudanças. Ficou muitas vezes para trás quando os ventos sopraram mais forte na sociedade brasileira. Sua demora em começar a noticiar os megacomícios pelas eleições diretas nas capitais brasileiras em 1984 arranhou a imagem da emissora. A Globo noticiou o comício da Praça da Sé, o marco inaugural do movimento, como se fosse parte das comemorações do aniversário de São Paulo. Em compensação, derrotada a emenda pelas eleições diretas, dedicou-se à articulação da candidatura de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, contra Paulo Maluf. Em 1989, apoiou a candidatura de Fernando Collor de Mello contra Luiz Inácio Lula da Silva. Na ocasião, a Globo levou ao ar a polêmica edição do debate entre os candidatos, que é apontada como a pá de cal na primeira candidatura de Lula. Três anos depois, caudatária da indignação popular, rendeu-se com atraso ao crescimento da campanha pelo impeachment.

?Ele acreditava realmente que a imprensa é o quarto poder?, lembra o advogado carioca Jorge Serpa, seu amigo por mais de quarenta anos. Mais do que isso, porém, gostava de exercer o poder. Sua única crítica a Castello Branco, que considerava o maior presidente que o Brasil já teve, era exatamente por não compartilhar do mesmo gosto. ?Ele não gostava de usar o poder. E poder a gente tem de usar para que não se esqueçam que a gente o tem?, disse certa vez a um colaborador. A máxima era exercida cotidianamente. Tanto em seus contatos com os governos quanto dentro de suas empresas. Nas Organizações Globo, o ?doutor Roberto?, como era chamado por todos os funcionários, mesmo os mais graduados, exerceu o comando com mão-de-ferro.

Tamanha intimidade com os militares deu margem a uma simplificação recorrente, que atribui o crescimento exponencial do grupo empresarial de Roberto Marinho nos anos 60 e 70 exclusivamente à proximidade de seu comandante com os governos militares. Seria impossível levar a cabo tal façanha sem a visão estratégica que lhe permitiu lançar as bases da Rede Globo. Seus irmãos Rogério e Ricardo, sócios no jornal e na rádio, negaram-se a acompanhá-lo. Roberto Marinho partiu sozinho para a empreitada. Para viabilizar o investimento, fez um acordo com o grupo americano Time-Life, pelo qual conseguiu receber 4 milhões de dólares e, de quebra, lhe rendeu a instalação de uma comissão parlamentar de inquérito, resultado de uma campanha movida pelo já decadente Assis Chateaubriand.

A associação com os americanos pode ser encarada como capacidade de antecipar alguns comportamentos típicos da economia globalizada que se tornaria realidade décadas mais tarde. O ocaso de Chateaubriand e a ascensão de Roberto Marinho, aliás, retratam a transição de um Brasil recém-urbanizado e industrializado para um país moderno e crescentemente inserido no capitalismo mundial. A preocupação de Marinho era com a profissionalização. ?Eu achava que tudo quanto se fazia de televisão era meio amolecado. As pessoas não tinham convicção de que aquilo era possível?, dizia. Para fazer a TV Globo, contratou Walter Clark, então o mais importante executivo da nascente televisão brasileira. Dois anos depois, integrou ao comando da emissora José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, formando a dupla responsável por uma programação de qualidade reconhecida em todo o mundo. Roberto Marinho deixa com seus três filhos – Roberto Irineu, João Roberto e José Roberto .- o comando do império que construiu. Deixa também a tarefa de superar as dificuldades financeiras surgidas nos últimos anos que levaram a Globopar, holding do grupo, a reescalonar uma dívida de 1,5 bilhão de dólares em 2002.

É mais um desafio numa história iniciada pelo empresário que constou até o ano passado no ranking da revista americana Forbes como um dos seis homens mais ricos do Brasil. Não foi sempre assim. Roberto Marinho nasceu no Estácio, um bairro de classe média baixa na Zona Norte do Rio de Janeiro. Sua vida tem outros ingredientes de cinema, além da saga da ascensão social. Em 1925, quando seu pai, o jornalista Irineu Marinho, morreu apenas três semanas após fundar O Globo, Marinho considerou que não tinha ainda maturidade para assumir o comando da publicação. Foi trabalhar na redação. Só seis anos depois tomou a frente da empresa. A rotina de trabalho de mais de doze horas por dia não o impediu de aproveitar a efervescência do Rio de Janeiro das décadas de 20 e 30. Quando solteiro, mantinha no bairro da Urca, onde funcionava o famoso cassino de mesmo nome, uma cobertura que vivia repleta de amigos e vedetes. Só aos 40 anos se casou pela primeira vez, com Stella, mãe de seus filhos, de quem se separou quase trinta anos depois para se casar com Ruth Albuquerque. Aos 84 anos, retomou com Lily de Carvalho um encantamento interrompido cinqüenta anos antes, quando a então exuberante miss França se casou com um rival, Horácio de Carvalho Junior, dono do Diário Carioca. Roberto Marinho a reencontrou viúva em 1988. Quatro meses depois ele se separou de Ruth e propôs casamento a Lily.

A partir da década de 90, Marinho cuidou pessoalmente de sua sucessão tratando de dividir com seus filhos o comando das Organizações Globo. Mas não se retirou de cena, sempre preocupado em manter-se informado sobre tudo o que se passava em suas empresas. Teve um grande momento de consagração em 1993, ao ser eleito para a Academia Brasileira de Letras. Dono de excelente forma física, praticou pesca submarina até quase os 80 anos, e só largou a equitação um pouco depois, quando durante uma competição caiu do cavalo e fraturou onze costelas.

O empresário costumava dizer que vivia muito ocupado para pensar na morte. Talvez por isso não tenha levado à frente o projeto de escrever suas memórias, previamente batizadas por ele de ?Condenado ao êxito?. A exatidão do título pôde ser conferida na quinta-feira. Compareceram ao velório e ao enterro de Roberto Marinho mais de 3.000 pessoas, entre populares e mandatários. Estiveram presentes o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e José Sarney, cinco governadores, seis ministros de Estado, os presidentes do Senado e da Câmara, quase todos os empresários, políticos e artistas de alguma relevância no cenário nacional, além de adversários políticos históricos, como o ex-governador do Rio de Janeiro Leonel Brizola. Morreu como viveu. Cercado por poderosos."

 

"Jornalista e empreendedor", copyright Época, 11/08/03

"Imaginar a televisão brasileira – e toda a comunicação do país – sem a existência do jornalista Roberto Marinho é como pensar no Rio de Janeiro, sua cidade natal, sem o Pão de Açúcar ou o Corcovado. Sem ele, dificilmente haveria outro conglomerado brasileiro a reunir televisão, rádio, jornais, revistas, livros e portal de internet num único grupo.

Para Roberto Marinho, os desafios estavam acima de tudo. Nunca era tarde para abraçá-los. Não é à toa que, homem de jornal e rádio, resolveu investir em televisão aos 61 anos. Iniciava um negócio novo, repleto de adrenalina e turbulências, com energia de garoto em plena terceira idade. Tempos depois, aos 84 anos, mostrou novamente que não tinha medo do tempo – e investiu, desta vez, no amor. Passou então a namorar dona Lily, com quem se casou em 1989.

Sua morte, aos 98 anos, foi recebida com surpresa para muitos. Mas como se surpreender com o falecimento de alguém numa idade tão longeva? A resposta está na vitalidade, inteligência e inquietação que o acompanharam até o fim. Esse comportamento dava a impressão a muita gente de que o jornalista era imortal – impressão essa que criava anedotas e historietas em torno de sua longevidade, que reproduzimos na reportagem especial desta edição.

Doutor Roberto, como todos o chamavam, era um empreendedor nato. Mas preferia ser conhecido como jornalista, e não como empresário. Participou ativamente no processo que culminou na criação de ÉPOCA e fez questão de escrever seu primeiro editorial, que republicamos em nosso caderno.

Ao herdar o jornal O Globo, fundado por seu pai, Irineu Marinho, 21 dias antes de sua morte, teve a humildade de não aceitar de imediato o cargo de redator-chefe. Preferiu ser repórter, função na qual permaneceu por seis anos antes de assumir a chefia do matutino. Foi como repórter que conseguiu furos para o jornal. E como jornalista tocou seu império de comunicações. Por isso, seu corpo foi levado ao cemitério São João Batista a bordo de um carro de reportagem da TV Globo. Nada mais apropriado para quem dedicou quase um século ao jornalismo."