Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

"Olhos abertos e dizer a verdade"

REFLEXÕES SOBRE
A GUERRA

Sylvia Moretzsohn (*)


Guerra em directo, de Carlos
Fino, 296 pp., Editorial Verbo, Lisboa, 2003; <http://www.editorialverbo.pt/loja/produto.asp?produto=1410>;
17,49 euros

A guerra ao vivo, de Carlos Fino, 296 pp., Editora Verbo,
São Paulo, 2003; nas livrarias em 17/11; lançamentos
com a presença do autor de 9/12 a 16/2 (São Paulo,
Rio e Brasília). Preço: R$ 42


É um indiscutível sucesso editorial: lançado
no dia 3 de novembro em Lisboa, A guerra em directo, do jornalista
Carlos Fino, já está na terceira edição.
Em apenas uma semana, a tiragem alcançou 9.400 exemplares.
O lançamento no Brasil será em dezembro, mas a obra
deverá estar disponível nas livrarias ainda esta semana.
E como em português nos entendemos, mas não muito,
aqui o título será A guerra ao vivo, e o texto
também apresentará algumas adaptações.

Enviado especial da RTP ao Iraque, com vasta experiência
como correspondente internacional, Carlos Fino anunciou em primeira
mão o bombardeio americano a Bagdá, pelo videofone,
e foi esse prestígio que levou tantos brasileiros a acompanhar
suas reportagens a partir de então. O livro que acaba de
lançar em Portugal é um relato dos conflitos mais
importantes do pós-11 de setembro de 2001 (Afeganistão,
Oriente Médio e o Iraque em particular), entremeado por reflexões
sobre as condições de trabalho nessas guerras e sobre
o papel do jornalista diante das tecnologias do "tempo real".

Na noite de 3 de novembro, após o lançamento da obra,
Carlos Fino foi entrevistado pela apresentadora Alberta Fernandes,
do Jornal 2, da RTP2. Abaixo, a transcrição
da entrevista.

***

Nesse seu livro, uma parte importante é dedicada às
dúvidas que colocas devido ao imediatismo do nosso trabalho…

Carlos Fino ? São dúvidas que estão
no ar, nossa profissão é uma profissão débil,
nós não podemos nada, ao contrário da idéia
sobre o quarto poder… aquilo que os jornalistas de facto podem
fazer às vezes em situações excepcionais pode
ser muito, como foi no Watergate, em que chegaram a derrubar um
presidente americano, mas depois, no dia-a-dia, é essa situação,
e em particular em Portugal: os jornalistas são muito dependentes,
dependentes das estruturas, dependentes das empresas, dependentes
dos poderes, e ao longo dos anos vamos nos interrogando, e quando
chegamos a uma certa maturidade não podemos deixar de nos
colocar essas questões: afinal, quem somos, o que estamos
aqui a fazer, qual o sentido do nosso trabalho? São essas
questões que se levantam agora também, até
porque, com o 11 de setembro de 2001, e com a maneira frontal, brutal
com que a administração americana colocou a questão,
os que não estão conosco estão contra nós…
nessa situação qual é o papel do jornalista?
É fazer propaganda da política americana, ser funcionário
do Pentágono, ser funcionário da administração
americana e fazer propaganda da política global americana,
ou é manter, como lhe compete, os olhos abertos e dizer a
verdade?

E como é que consegues manter os olhos abertos e dizer a
verdade quando toda a informação está manipulada
ou trabalhada pelos norte-americanos…

C.F. ? …e pelos outros poderes, não é? Cada
um procura puxar a brasa para a sua sardinha, e o jornalista está
no meio, somos uma profissão de fronteira, entre a informação
e a propaganda, e corremos sempre o risco de estar mais do lado
da propaganda do que do lado da informação. Para que
isso não aconteça é preciso uma série
de coisas, é preciso que as universidades formem melhor os
jornalistas que por elas passam antes de eles chegarem ao mercado
de trabalho, é preciso que haja organismos da classe atentos,
provavelmente… eu neste momento inclino-me para a criação
de uma Ordem dos Jornalistas, para além do sindicato, eu
julgo que seria uma contribuição dos próprios
jornalistas para conferirem alguma orientação e exigência
ao seu próprio trabalho, e são esses mecanismos e
circunstâncias que podem contribuir para que mantenhamos os
olhos abertos e possamos dizer a verdade e sucumbamos menos à
tentação de alinhar com os poderes instituídos,
ou de ser manipulados, às vezes sem nos darmos conta.

Gostava que esclarecesse essa expressão "embedded",
as pessoas talvez não saibam do que se trata.

C.F. ? Os embedded foram os jornalistas levados pelas
tropas americanas, que tiveram que assinar um papel em que assumiam
uma série de limitações ao seu próprio
trabalho e que, por esse preço, ganhavam o prêmio de
ir à boléia das tropas americanas. São condicionalismos,
eu também no fundo estava embedded no regime iraquiano,
pois para podermos trabalhar em Bagdá tínhamos de
aceitar certas regras, aceitamos certas regras para ter o visto
para lá chegar, depois tínhamos que fazer um compromisso
e um jogo de cintura para poder continuar a trabalhar em Bagdá,
tivemos que subornar pessoas para poder continuar a ter o prolongamento
dos vistos, que caducavam de 10 em 10 dias e que precisávamos
renovar, portanto de alguma forma eu também estava embedded,
"incluído" no outro lado… foi muito contestada
essa situação de se ir na tropa americana, mas se
isso é o preço a pagar para poder estar mais perto
das situações eu acho que é legítimo,
embora seja discutível, mas eu acho que é legítimo
pagar esse preço, desde que os telespectadores saibam as
condições em que estamos a fazer as reportagens. Isso
tem de ser dito, tem de ser explicado, que é pra se saber
que essas reportagens têm aquelas condicionantes, para não
estarmos a dar gato por lebre, não é?

E tens tido esse cuidado de chamar a atenção para
essas limitações durante o teu trabalho?

C.F. ? Procuro, procuro… Mea-culpa, mea-culpa, mea-culpa,
eu não… não sou totalmente isento de algumas falhas.

Às vezes, por falta de tempo…

C.F. ? Por falta de tempo e pela própria pressão
das redações de hoje em dia, quer dizer, as possibilidades
que há, pelas novas tecnologias, de podermos entrar em directo
de qualquer parte em qualquer momento dá-nos a ilusão
de termos a informação e de estarmos a ver a história
em directo, dá-nos essa sensação de ubiqüidade,
de sermos quase deus, podemos estar em todo lado em qualquer tempo,
mas isso levanta questões em relação ao jornalismo,
quer dizer, como é que pode haver distanciamento, algum distanciamento
crítico, que é marca de qualquer bom jornalismo, se
estamos ali em directo? Por outro lado, às vezes não
se passa nada, mas há a pressão das redações,
é preciso alimentar o sistema, falar, o que importa é
mostrar que se está lá e que se está a dizer
qualquer coisa, seja o que for. Portanto, são essas questões
que essas novas tecnologias e que esta nova maneira de fazer informação,
digamos, não colocam questões inteiramente novas mas
eu diria que acentuam as velhas questões do que é
que nós somos, do que é que estamos aqui a fazer,
e como é que estamos a fazer.

Gostava que me recordasse o Iraque, os momentos mais complicados
da cobertura, enquanto jornalista e enquanto ser humano.

C.F. ? É difícil, eu tenho de fazer sempre
uma marcha atrás nessa questão, porque o Iraque não
foi o primeiro cenário de guerra onde eu estive. Quando se
desfez a União Soviética eu tive de cobrir vários
conflitos armados, Tchetchênia, Geórgia, Afeganistão,
Moldávia, em várias guerras civis e às vezes
em situações de maior perigo do que esta do Iraque…
esta guerra no Iraque ultrapassou tudo no grau de tensão
e daquilo que estava em jogo, porque os EUA partiram para a guerra
contra a opinião de seus mais próximos aliados, a
França e a Alemanha, e isso suscitou grande polêmica.
Portanto, o que estava ali em jogo era o próprio futuro do
direito internacional, porque a ação foi levada a
cabo à margem das Nações Unidas, e isso coloca
questões terríveis que ainda hoje os Estados Unidos
estão a sentir, pela forma como desencadearam o conflito.
A magnitude dessas questões tornou de facto o Iraque um conflito
central dos nossos dias, mas em termos de situações
reais de perigo eu já tinha passado por outras mais perigosas.

Embora o risco seja sempre grande, quer dizer, aquele canhão
que dispara contra o hotel [Palestina, onde estavam os jornalistas]
e acerta no 15? poderia ter acertado no 17?, que era onde eu estava
mais o Nuno Patrício, foi uma mera questão de sorte,
não é? Outra situação foi essa em que
nos vimos raptados por um grupo armado que era suposto ser uma milícia
e que se estava a transformar rapidamente num simples bando de ladrões
que nos queriam extorquir e extorquiram o que puderam. Essas foram
as situações de maior perigo, não é?
Mas havia sempre a possibilidade de vir um míssil na nossa
direção e que não fosse propriamente controlável,
quer dizer, quando se entra naquele terreno tudo é imprevisível.

(*) Jornalista e professora da UFF