Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

ONG PELA JUSTIÇA Lobos maus, carrapatus e bandidos

Por uma espécie de memória social, como que herdada, o brasileiro, sobretudo na infância, quando mais instintivo e menos intelectualizado pela educação européia, se sente estranhamente próximo da floresta viva, cheia de animais e monstros, que conhece pelos nomes indígenas e, em grande parte, através das experiências e superstições dos índios. É um interesse quase instintivo, o do menino brasileiro de hoje pelos bichos temíveis. Semelhante ao que ainda experimenta a criança européia pelas histórias de lobo e de urso; porém muito mais vivo e forte; muito mais poderoso e avassalador na sua mistura de medo e fascinação; embora na essência mais vago. O menino brasileiro do que tem medo não é tanto de nenhum bicho em particular, como do bicho em geral, um bicho que não se sabe bem qual seja, espécie de síntese da ignorância do brasileiro tanto da fauna como da flora do país. Um bicho místico, horroroso, indefinível; talvez o carrapatu.” (Gilberto Freyre, Casa-Grande e Senzala.)

Se por um ato de ousadia tentarmos lançar para o Brasil atual, urbanizado, o olhar de Gilberto Freyre, perceberemos que nossos medos já não vêm mais da proximidade da floresta. A vida urbana brasileira é relativamente recente. Nossas metrópoles formaram-se apenas nas últimas décadas.

O agravamento da insegurança em nossas cidades está sedimentando no inconsciente dos brasileiro o mito do bandido. Não se teme um homem, teme-se o terrível bandido. Suas características são apavorantes: sádico, traiçoeiro, cruel, irracional, um repositório de maldades. Exatamente como o lobo mau de nossas histórias infantis.

O lobo mau encarnou o papel de malfeitor por vários séculos por ser ele quem armava as emboscadas nas florestas que os viajantes percorriam (na época em que existiam florestas). Hoje sabemos que o "lobo mau" é apenas um pobre mamífero em extinção que só age agressivamente, por instinto, em determinadas circunstâncias.

O "bandido" é o lobo mau moderno. Crianças e adultos apavoram-se diante da possibilidade de ser atacados. E o que é o "bandido" no nosso imaginário coletivo? Criamos uma figura quase mítica em nossas cabeças. Bandido não é apenas um criminoso qualquer (o criminoso de histórias infantis e gibis é uma figura quase simpática: os irmãos Metralha, os arquiinimigos de Batman).

O bandido é outra história. É mau e deve ser eliminado impiedosamente. De preferência com um estaca no coração. Não há outro remédio: ele está programado, como um robô, para ser mau. Por isso, o linchamento é um exercício coletivo de exorcismo.

Não faz muito tempo um político insistiu em sua campanha eleitoral no tema: "Bandido é na cadeia, gente boa é na rua". Estava feito o contraponto: bandido x gente boa. Que simplicidade! Mas o que é "gente boa" e o que é "bandido"? Os donos do Bateau Mouche são bandidos ou são gente boa? Os deputados do escândalo do orçamento são bandidos? Os fraudadores do INSS são bandidos? Os sonegadores e corruptos são bandidos? Os policiais da Favela Naval são bandidos? Os estudantes que mataram o índio em Brasília são bandidos? Ou só são bandidos os criminosos menos sofisticados?

Estamos talvez criando o novo carrapatu a que se referiu Gilberto Freyre; a versão urbana do "bicho-papão" do século XXI.

É preciso repudiar os conceitos irracionais que se fixam em nossa cultura e encarar a realidade de forma menos simplista. O que existe, na verdade, é um índice de criminalidade realmente alarmante, mas com causas e feitos perfeitamente explicáveis e compreensíveis.

Não existem "bandidos" na concepção ingênua e maniqueísta. O criminoso verdadeiramente "mau" é apenas aquele que por razões psicopatológicas não possui freios morais e sensibilidade.

Não estamos negando a existência lamentável de pessoas capazes de gestos gratuitos de violência. Pessoas sem escola, sem família, sem trabalho, sem assistência. Temos leis, e eles devem ser julgados por seus atos. A sociedade deve refletir sobre as causas da banalização da violência urbana e combatê-las.

E nós precisamos ficar alertas para não substituir, no imaginário de nossas crianças, o carrapatu pelo bandido, criando uma nova “espécie de síntese da ignorância do brasileiro“, não mais da fauna e da flora, mas ignorância da nossa própria sociedade.

(*) Promotor de Justiça, Conselheiro do Instituto de Estudos Direito e Cidadania

 



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