Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Os barões da Limeira

Luiz Egypto

 

A

Folha de S.Paulo não gostou do que publicou o Observatório da Imprensa. O jornalão impresso sentiu-se incomodado por um boletim eletrônico, de circulação quinzenal na Internet. Para apartar o incômodo, preferiu não conviver com a crítica e tomou uma atitude de fazer inveja aos mais empedernidos defensores do discurso único: promoveu a defenestração do crítico.

A Folha agastou-se com artigo “Mídia treinada pela inflação não sabe como combatê-la” [veja remissão abaixo] de Alberto Dines, publicado na edição número 62 deste Observatório, no ar em 5/3/99. O texto causou ranger de dentes no nono andar do vetusto edifício da Alameda Barão de Limeira, no bairro paulistano dos Campos Elíseos, em São Paulo, antiga paragem da aristocracia e dos chiques da vida paulistana.

Alberto Dines, editor e fundador deste Observatório, era também colunista da Folha, onde assinava um artigo aos sábados, na Ilustrada. Duas vezes apenas seus textos mereceram chamadas de capa no jornal: quando iniciou sua colaboração, em julho de 1997, e quando dos funerais da princesa Diana, dois meses depois.

Dines tivera outras passagens pelo jornal – passagens formais, digamos assim, quando integrou formalmente os quadros da casa. Chefiou a sucursal do Rio e foi colunista de opinião à época em que o diário da Barão de Limeira era comandado por Cláudio Abramo. Na segunda metade dos 70, Dines criou o Jornal dos Jornais – coluna publicada aos domingos, no primeiro caderno, o primeiro espaço regular de crítica de mídia na imprensa brasileira e uma espécie de patrulha avançada do que é hoje o Observatório da Imprensa. Antes, fora editor-chefe do Jornal do Brasil, numa da fases mais importantes do jornal. E foi em nome de sua antiga ligação com o JB que, no texto que motivou sua demissão, acertou a crítica mais suave dirigida à Folha. Apenas para recapitular a pegada mais leve, no trecho está dito o seguinte:

O JB está tão fragilizado empresarialmente que um executivo médio da Agência Folha pode decidir o sucesso de uma edição de fim-de-semana, fornecendo ou cortando algum dos colunistas do seu plantel.

É uma estocada, claro. A Folha, que adora viver em superexposição, deveria estar acostumada a críticas. Mas reagiu ao golpe com virulência, como se para reafirmar à tigrada que o discurso monocórdico assentou-se de fato na Barão de Limeira. O toque, no fundo, mostra mesmo é o estado crítico a que chegou o prestigiado Jornal do Brasil, uma escola de jornalismo hoje perdidaça em papagaios bancários que revoam há décadas.

Fábrica e fazenda

O Jornal do Brasil comprava da Agência Folha a coluna de Alberto Dines e, com as finanças em pandarecos, não fazia pagamentos regulares pelo serviço (uma ninharia, diriam os bem-pagos executivos de redação: algo como 150 reais por coluna, menos que um almoço em restaurante fino). Embora tenha ligação histórica com o JB, Dines nunca poupou críticas ao jornal fluminense. Mas, carioca bairrista, interveio para que o JB continuasse a ter sua coluna e abriu mão da parte que lhe caberia na divisão das 150 pratas. Nas primeiras vezes a iniciativa deu certo, e o JB pôde receber a coluna, que era publicada aos sábados, na página ao lado dos editoriais, com direito a chamada de capa. Nas semanas seguintes, porém, a conversa resvalou para a burocracia interna do Grupo Folha até que no sábado, 6 de março, a decisão de um funcionário da Agência Folha, que mexe com números, impediu que o JB recebesse a matéria.

Convém recordar que Dines comandou o JB na fase áurea do jornal, fazendo o melhor jornalismo sob a mais violenta repressão institucional. O enfrentamento aberto com a censura, nos anos terríveis em que esta era aplicada diretamente pelo Estado policial-militar, faz supor, ainda que por absurdo, o que os jornais “pós-neomodernos” fariam em situação de semelhante violência. Talvez aderissem, talvez conseguissem enganar pelo “diz-mas-não-diz-que-diz” ou pelo “diz-que-vai-mas-não-vai”. Mas não adianta comparar uma coisa com outra, já que àquela época os jornais não se pareciam ao que são hoje. A Folha muito menos: nem de longe era um jornal importante: era muito pior.

Desses anos para cá a Folha evoluiu muito, tornou-se o maior jornal do país e por isso não cabe a comparação com tempos idos. Nem o país nem a sociedade são os mesmos. O que é, sim, passível de comparações é a distância considerável que separa um jornalista com a história de Alberto Dines e alguns dos novos barões do jornalismo paulista (vá lá: a nobiliarquia tem ramificações pelo país todo), concebidos e gerados nesses tempos de jornalismo industrial, sem tesão e sem alma e em constante frenesi pelo espetáculo.

Dines foi demitido, como se diz nas ruas, numas. Não era empregado: era stringer, um frila fixo. Os barões da Limeira enxotaram o jornalista das páginas de seu jornal por causa de uma crítica forte, em torno de um assunto que, no entanto, “todo mundo sabia”. Para saber, bastava ter lido e anotado as inevitáveis notinhas e materinhas que “a casa” manda publicar em circunstâncias semelhantes. O que Dines fez em seu texto da edição on line deste Observatório foi juntar os cacos e dar-lhes nexo. Nossos melhores negócios jornalísticos, os que publicam os veículos mais prestigiosos e rentáveis, são menos donos dos seus próprios narizes do que fazem parecer a seus públicos.

A matéria do Observatório não contava segredos estratégicos. Apenas dava perspectiva e contextualizava informações dispersas. O outro trecho dedicado à Folha afirmava:

A Folha nunca esteve tão mansa: está pagando o preço da ilusão de pretender montar um império com apenas um veículo. Seria caso único no mundo. Já vendeu seu novo parque gráfico para os americanos e agora vai tentar fundir os dois títulos populares (Folha da Tarde e Notícias Populares) num terceiro. A diretoria não lê o que sai no próprio jornal: o mercado paulista está saturado e engavetado, como as marginais em dia de chuva de verão.

Os dois excertos citados são os que diretamente dizem respeito à Folha, e ocupam 11% da matéria. Os outros 89% são dedicados ao quadro geral de crise vivido por outras empresas jornalísticas. Não é novidade para ninguém, por exemplo, que a Editora Abril está muitíssimo endividada em dólar, algo como uma vez e meia o seu patrimônio líquido (a Folha de S.Paulo deu os números no domingo, 7/3/99). O Estado de S.Paulo virou uma fábrica velha, cheia de computadores, na qual tudo indica terem voltado à ativa os engenheiros de produção, que já deram as cartas na Redação antes de o departamento comercial tomar o poder. O Estado meteu-se em negócios estranhos à sua expertise; ganhou, em consórcio com a Bell South e o Banco Safra, uma fatia da telefonia celular de São Paulo; e, para não fazer feio diante dos sócios, tirou recursos do jornal – sua fonte primária de receitas – e aplicou em…como se diz?… em business! Sua redação (as do Estado e do Jornal da Tarde) está minguada e entupida de horas-extras acumuladas por um regime de trabalho insano. Se hoje se assemelha a uma fábrica caquética, o centenário Estadão já pareceu uma fazenda. Sua salvação perante a História é que também já foi um grande jornal.

A rasteira que os espanhóis da Telefónica e da Iberdrola passaram na RBS ficou exposta na mídia para quem quisesse ver e ler, durante e logo após a privatização das estatais de telefonia. O tirocínio esperto de Ary de Carvalho fez com que o sucesso de O Dia pudesse bancar uma “aliança estratégica” com o JB, na área industrial e na de distribuição. Do jeito que andam as finanças do velho Jornal do Brasil, vale qualquer negócio para aumentar a sobrevida, inclusive alianças com a concorrência. Em que pese suas tradições, daqui para frente o JB será tudo, menos o que deveria ser.

Sem grandeza

Na matéria do Observatório, Dines menciona a pretensão da Folha de ter querido “montar um império com apenas um veículo”. Mais adiante relembra a associação do Grupo Folha com empresa impressora americana Quad/Graphics. Em seguida, o jornalista crava a informação de que o Grupo pensa em fundir os outros dois diários da casa (Folha da Tarde e Notícias Populares) num único título “popular”. Foi o que bastou para desagradar a direção e os acionistas do jornalão.

Em nota no caderno Ilustrada (“Gianetti e Dines saem da Ilustrada”, 13/3/99, pág. 4-3), a Folha afirma que “o jornalista Alberto Dines foi afastado após assinar texto no site ‘Observatório da Imprensa’, que mantém na Internet, contento informações inverídicas sobre o Grupo Folha”. Inverídicas?? Como se o Grupo Folha não tivesse se associado à Quad/Graphics e, acossado pela concorrência do Diário Popular e do Jornal da Tarde no mercado paulistano, não pensasse seriamente na formatação de um novo projeto de jornal “popular”, unindo Folha da Tarde e Notícias Populares – duas operações que já deram o que tinham que dar. O novo veículo tem até nome, Agora São Paulo, e seu lançamento estava previsto para a penúltima semana de março.

Com cada vez maior freqüência e desenvoltura, empresas jornalísticas fazem negócios, qualquer negócio, muitas vezes apenas tangencialmente vinculados aos jornais, ao jornalismo e aos jornalistas. Quando a moda era “diversificar”, o baronato da Limeira animou-se em associar-se à Air Touch, ao Unibanco e à Odebrecht para disputar o então nascente mercado da telefonia celular. Os céus foram pródigos, contudo: os sócios, mais experientes em negócios de capital intensivo, sentiram o drama, viram que a briga era para cachorro grande e, embora não fossem cachorros, conquanto fossem grandes, tiraram o time de campo enquanto podiam fazê-lo sem prejuízos maiores. A Folha escapou dessa roubada. A mesma percepção não teve a RBS, que se deu bem na disputa pela telefonia regional mas depois foi abandonada pelos sócios, tão logo o filé mignon das teles foi a leilão.

A Folha já foi criticada em suas páginas pelo próprio Dines, e se manteve altaneira, como deve ser o comportamento de um jornal que se diz pluralista. Diz, mas não é. Na mesma nota da Ilustrada de 13/3/99, o diário afirma que “Dines vinha alimentando divergências com o jornal, que ele sistematicamente atacava no próprio espaço que lhe era assegurado”. Atacava? Sistematicamente?? Humm… não sei, não. Atacar é investir, assaltar, agredir, hostilizar, acusar. Quanta mania de perseguição! A Folha não suportou 79 palavras num texto de 676, capaz de fazer tremer as pastilhas do prédio da Barão de Limeira. E como não gostou, fez o que fazem os editores, ou os secretários, ou os barões sem grandeza, ou os capatazes de redação quando se indispõem com alguém, pessoal ou profissionalmente: mandam-no embora.

No caso de um demitido independente e sem vínculo empregatício como Dines, o jornal apenas sobreleva sua impossibilidade de conviver com a crítica e com o contraditório – ainda que diga o contrário, porque uma das regras do jogo é saber manter a pose e vender a imagem de “democrático, pluralista e apartidário”. Por essas e outras, paciente leitor, é que de onde menos se espera que não sai nada mesmo – como diria um outro barão, o de Itararé. Vivo fosse, o imortal Aparício Torelly teria novíssimas lições de democracia a aprender com os barões da Limeira.

 


Mauro Malin

“A liberdade consiste em saber
que a liberdade está em perigo.”
(Emmanuel Lévinas)

 

Sejamos livres, conscientes.

Existe o uso sintomático, apontado por várias pessoas, da palavra “divergências” na notinha da Folha (Ilustrada, 13/3/99) a respeito da demissão de Alberto Dines. Questão política, relacionada com o sistema de poder do país. Dines, a esse respeito, escreveu: “A mídia é o poder por outros meios”. Eu proporia: “A mídia é o poder pelos próprios meios”.

A questão, reiterou Dines, é que a alma da Folha é malufista. Com ou sem Maluf. O malufismo é uma doença fóssil que tem alergia à independência de espírito.

Existem duas questões especificamente jornalísticas.

Primeira (em circunstância, não em importância): a Folha, que é um jornal, não explicou por que as informações dadas por Dines seriam “inverídicas”. Lição elementar é que em jornal não pode haver nada implícito, tudo deve ser explícito. Quantas pessoas no país podem saber, sem ter lido no jornal, o que a Folha considera “inverídico”?

Segunda: o texto usado como pretexto tem boa qualidade jornalística. É panorâmico. Trata de dificuldades das principais empresas de comunicação. Foi “punido” pela qualidade.

A Folha ficou incomodada. Já aconteceu antes, vai acontecer novamente. Mas o resultado não é o mesmo. Antes, havia monopólio dos meios de distribuição da informação. A pena era paralisar a pena. Ostracismo. Hoje, o monopólio está (provisoriamente?) em xeque com a emergência de meios cuja multiplicação é regida pelos usuários. “Na Economia da Rede, a escassez é sobrepujada pelo encolhimento dos custos marginais. Onde a despesa para fazer brotar uma nova cópia se torna insignificante (e isto está acontecendo não apenas com software), o valor da rede explode” (Kevin Kelly, “Twelve dependable principles for thriving in a turbulent world, Wired, setembro de 1997).

A Folha reagiu como nos bons velhos tempos em que não havia Internet e o porrete funcionava.

Toda solidariedade ao pró-homem do Observatório, mas não convém dar muita bola para a Folha.

Há quase oito décadas, H.L. Mencken, que pontificou na imprensa americana, escreveu: “Se me pedirem para apontar cinco jornais (….) que sejam dirigidos de forma tão inteligente, justa, corajosa, decente e honesta como uma fábrica média de pregos, uma empresa de crédito imobiliário ou um negócio de importação de arenques, levarei dois ou três dias para fazer a lista. E, quando ela estiver pronta e for lida pelo meirinho no tribunal, haverá um rumor de risadinhas abafadas à menção de quase todos eles. Estas risadinhas virão de jornalistas que devem saber um ponto mais do que eu sobre o assunto”.

 

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