Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Os brutos também lêem quadrinhos

TURMA DA MÔNICA

Spacca (*)

Cláudio Weber Abramo inicia sua nova investida ao universo dos
quadrinhos com uma tira de sua autoria, criada "incidentalmente",
em poucos minutos. Antes de comentar seu texto, apresento-lhe o meu troco,
também realizado em poucos minutos (precisamente 17, incluindo
o tempo de ir colher no site <www.uol.com.br/machadodeassis>, desenvolvido
por este articulista, o trecho usado para criar a tirinha).

Novamente o jornalista abdicou de analisar. Limita-se a dizer que alguns
autores não sabem desenhar, carecem de habilidade verbal e imaginação,
têm mau gosto, são grosseiros. O artigo é bruto, em
todos os sentidos. Precisa ser lapidado para chegar ao estágio
de merecer uma réplica.

Weber Abramo não cita nomes, não compara desenhos, apenas se refere a "algumas" tiras que saem publicadas. Quais? Sou obrigado a deduzir, a partir de algumas indicações suas: trata-se das que "notabilizam-se apenas pela feiúra, seja dos traços, seja das falas e situações", cujos autores "demonstram uma predileção toda especial pelo mau gosto, pelo grosseiro e pelo baixo".

Ou seja, não são as mais comportadas, de aceitação internacional, como Garfield, Hagar e Peanuts. As tiras produzidas pelos cartunistas brasileiros da Folha (excetuando-se Gonzales/Níquel Náusea, de padrão mais universal) são as que mais se enquadram nessa descrição, pois transpõem a linguagem tipicamente agressiva e desleixada da charge para o caderno cultural. Como os nomes sequer são citados, nem se faz uma análise mais séria de suas particularidades, não tenho como elaborar uma réplica nesse sentido.

A comparação das tiras com o episódio do microfone no filme (também tenho que supor) Carlota Joaquina, de Carla Camurati, ajuda a estabelecer alguma base racional para aceitar ou rejeitar seu ponto de vista. Segundo ele, a diretora defendeu-se do fato de ter aparecido um microfone em cena dizendo que teria sido intencional. Do mesmo modo, se perguntassem aos desenhistas porque desenham mal ou feio, diriam que é de propósito.

Novamente os Peanuts. A grande simplificação das tiras foi feita por Charles Shulz em 1950, que abriu mão de tudo que o quadrinho sabia fazer para imitar o cinema (enquadramentos imaginosos, luz e sombra, movimentos de zoom, modelação tridimensional), fixou a câmera e desenhou como quem escreve à mão:


Schulz reconfigured the comic strip landscape and dominated it for the last half of its history. By now, "Peanuts" is so thoroughly a part of the popular culture, that one loses sight of how different the strip was from anything else 40 and 50 years ago." (PEANUTS: A GREAT GIFT ? depoimento de Bill Waterson, criador de "Calvin & Hobbes", em sua homepage, em <http://www.alloftheabove.net/cahr/Watterson.htm>)


Na verdade, antes de Schulz, posso me recordar de outros quadrinhos de traço simplificado e bastante efetivos: Krazy Kat, de George Herriman, 1911; Popeye, de 1937, quando desenhado pelo criador Elsie Segar (o traço de Adão e de Angeli tem muito a ver com o Thimble Theater de Segar). Os quadrinhos feios, sujos e malvados são herança do universo underground, de Crumb, Shelton e companhia. A rebeldia que marca o humor gráfico nacional expressa-se ora politicamente como engajamento à esquerda, ora esteticamente
como o "bimbolôver" do Geraldão e outros recursos para escandalizar a classe média (dois casos de anacronismo, mas essa é a minha crítica, não a de Abramo).

Weber diz apenas que os autores de algumas tiras desenham mal e são grosseiros ou por opção, ou por limitação de recursos. Como um de seus argumentos para o sucesso de coisas grosseiras é a grosseria do próprio público, imagino que coisa de louco são a opinião pública e o tal leitor médio, se na mesma página de jornal convivem tiras feias e agressivas e as pílulas de auto-ajuda da astróloga de plantão. Teríamos aí mais um bom assunto envolvendo quadrinhos, assim que o jornalista se dignar a escrever elogiando, se não o tema, pelo menos o leitor.

(*) Ilustrador e cartunista, integra com outros quadrinhistas o projeto "Machado em Quadrinhos", coordenado pelo jornalista Marcelo de Andrade.