Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Os cem olhos na TV Globo

CELEBRIDADE

Deonísio da Silva

A nova novela das oito estreou segunda-feira à noite. Trouxe ao proscênio a fama, os famosos, a celebridade. A abertura é um dos três momentos decisivos da narrativa. O desfecho será o terceiro, o que lhe dará o significado mais retumbante. E entre os dois, Gilberto Braga e os autores coadjuvantes tecerão, adotando a estratégia da aranha, as tramas que têm o fim de envolver e fixar diante da televisão o maior número de espectadores. Afinal, ao contrário de um romance, a função primordial da novela é vender. Ou como disse em frase inesquecível um marqueteiro famoso há alguns anos: preencher os claros entre um comercial e outro. Para isso, o ibope tem que ir às nuvens, pois os investimentos foram altos. É uma superprodução, assim definida pelo dicionário Aurélio: "produção, em geral de alto custo, que envolve inúmeros atores, cenários ricos ou grandiosos, efeitos especiais etc".

Tudo parece de acordo com o figurino. A celebridade remonta à quantidade. É célebre quem tem dimensão pública, identidade conhecida de todos, passos e gestos observados, comportados imitados pela multidão, que, vigilante, segue seus passos pela imprensa. Sabendo que o povo quer isso ou trabalhando com o conceito de que ouvintes, telespectadores e leitores querem saber dos famosos, a mídia abastece o mercado das frivolidades. Mas precisa de alguma celebridade real, que não seja efêmera, que não seja esquecida rapidamente, como todas as que a rodeiam.

Por isso, as imagens que abrem a novela registram famosos eternos, com destaque para escritores, entre os quais Vinicius de Morais e José Saramago. O Prêmio Nobel de Literatura dá a dimensão da fama real, amparado no livro, o centro da civilização, reconhecido até por frívolos que vêem no gesto de escrever sobre si mesmos o apogeu do percurso. E com esta marca: a obra será sobre si mesmos. E de preferência lavrada por algum escriba de aluguel, pois os famosos sabem que não sabem escrever. Com humildade, porém, reconhecem a importância do livro na Galáxia Gutenberg. Daí a livraria ser escolhida para o lançamento do que querem propor. Livraria? Melhor dizendo, espaço cultural, como define muito bem uma personagem.

A capa da revista Fama trará as personagens que despertarão na plebe o desejo de que os vulgos venham um dia a ocupar o lugar de quem é célebre ou a partilhar com eles um pedaço do paraíso que anunciam. O sonho, porém, é impossível, pois se o lugar for arrebatado por todos, ninguém mais será célebre.

As celebridades precisam dos procedimentos de exclusão como do oxigênio. Uma sociedade sem excluídos não teria celebridades ou elas estariam definidas por outros padrões. Em resumo, os célebres seriam medidos pelo padrão Zuenir Ventura, o jornalista que dá verossimilhança externa ao que foi proposto como fantasia. Até o nome lhe cai bem. Ventura é sinônimo de fama. E não é aventura, o que está por vir, ainda sujeito às vacilações do percurso. Não, o jornalista está com nome e prestígio consolidados.

Outros caminhos

A fama e os famosos foram os primeiros a chegar à língua portuguesa, entre os séculos 13 e 14. Nos séculos 16 e 17 chegaram os célebres e a celebridade. Somos uma língua neolatina, a última flor do Lácio. Sobre esta questão, aliás, há controvérsia, pois o português pode ter sido a segunda ou a terceira língua procedente do latim; de todo modo, a última, não. Menos para Olavo Bilac, que consolidou o erro. Um erro em bronze é um erro eterno, como disse Mário Quintana. E em verso, também!

A fama envolve tudo o que se diz de alguém, favorável ou desfavorável. No século 13, quando a palavra entrou para o português, tanto um santo como um bandido podiam ser igualmente famosos. Mas a partir do século 15, entra na língua o verbo difamar, passando a designar ações que têm o fim de contrapor as versões sobre a vida de algum personagem conhecido. Fama, divindade a quem gregos e romanos do período clássico ergueram templos, era para os latinos a mensageira de Júpiter. Tinha cem bocas, cem ouvidos e longas asas cobertas de olhos.

A novela deu outras referências para a celebridade. Nem faltou a menção a Lilian Ramos, a modelo que no carnaval de 1994 deixou em maus lençóis o então presidente Itamar Franco e Maurício Correia, seu ministro da Justiça e hoje presidente do STF. Mas ela não mostrou apenas os seios em busca da fama, como no capítulo de estréia tentou inutilmente uma das arrivistas. Lilian foi sem calcinha ao palanque presidencial!

Quando o namorado da empresária Maria Clara (Malu Mader) vem propor-lhe casamento em meio a declarações de amor eterno, ouve em resposta uma recusa que define padrão contrário ao que estipulou para a condição feminina. A namorada responde que ele não quer uma mulher normal, quer uma mulher pré-histórica, dependente, submissa. O requisito, deixar de trabalhar para casar com ele, é recusado sem vacilações. E no leito do hospital, quando ela se recupera do seqüestro anunciado e rapidamente evitado ? pois, a favor dos famosos o sistema de segurança funcionou ontem, na novela das oito ?, o namorado rende-se sem a exigência do recente requisito. Ele a quer como ela é, apanágio de toda amada, que assim preserva sua identidade, sem a qual será adereço, enfeite, ornamento do lar. E também escrava!

É disso que a mulher precisa ser libertada, segundo a sintaxe em vigor, que pôs marido e filhos em segundo lugar há algumas décadas. Em primeiro lugar, o trabalho! Esposa e mãe, sim, mas por outros caminhos. Os filhos, Xuxa e suas sucessoras os educam diante da televisão. Como não foi possível a socialização sonhada no período pré-64, as três últimas décadas consolidaram o novo modelo. E assistimos à xuxalização do Brasil.

A todo custo

Quem precisa de experiência para ficar famoso? A pergunta dirimiu qualquer dúvida. Os famosos estréiam e depois desaparecem, dando vez a outros, que serão igualmente substituídos na conhecida voragem. Mas, ainda que rapidamente, uma alma lembrou que a protagonista do escândalo com o presidente está bem casada e obteve o que queria.

Logo virá outra novela das oito. Você ainda se lembra quem matou Salomão Hayala? E Odete Roitman? Mas nesta já sabemos quem seqüestrou Maria Clara. E ignoramos todo o resto. Gilberto Braga e os autores coadjuvantes fizeram o de sempre: prenderam o telespectador diante da televisão. Para quem tem mínima experiência de narrar, sabe que é tarefa das mais complexas, por força das injunções do meio. Afinal, não se trata da Voz do Brasil. O telespectador, se mudar de canal, encontrará outra programação. E é isso que a novela precisa evitar a todo custo.