Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Os eleitores ("ideais") do colunista

JANIO DE FREITAS

Pedro Eduardo Portilho de Nader (*)

Em sua coluna publicada no dia 3/10, Janio de Freitas escreveu na Folha de S.Paulo que "o noticiário e os comentários predominantes" naquela primeira semana após o segundo turno foram fortemente desfavoráveis ao governo eleito. "Pelo que se pode ler e ouvir, não houve eleição. Houve uma catástrofe", asseverava ele, então.

O colunista acertou nos aspectos específicos. Efetivamente, encontram-se na imprensa nesse período exemplos de observações desfavoráveis aos enunciados e atitudes do governo, tal como apontados pelo jornalista ? e também a outros aspectos que ele não apontou. Críticas à futura governabilidade, à campanha de combate à fome tal como anunciada, à (in)capacidade econômica e à fisiologia do governo eleito, à incapacidade da cúpula do PT em administrar as alas rebeldes internas, ao desgaste entre as pessoas da cúpula do PT etc..

Errou na generalização. Embora seja possível encontrar esses exemplos, eles não formam o caráter "predominante" da imprensa nesse período. Causa estranheza o texto, pois, ao contrário do que disse o colunista, o que se notou foi um comportamento cordato e até entusiasmado da imprensa. Alexandre Martins, em artigo publicado neste Observatório imediatamente depois do segundo turno, antecipou esse comportamento da imprensa [veja remissão abaixo]. Muitos outros comentaristas observaram, depois, o entusiasmo da imprensa em geral com relação ao novo governo nessas primeiras semanas após o segundo turno.

No sexto e último parágrafo da coluna, Janio de Freitas assinala que (na conta dele) mais de três quartos dos eleitores votaram contra a política econômica do governo Fernando Henrique Cardoso. "Logo", o colunista sentencia no desfecho, "os grandes eleitores de Lula da Silva foram o FMI, Fernando Henrique, Pedro Malan e, tanto ou mais do que os outros, a mídia e seus órfãos e viúvas. Deprimem-se e se irritam por uma obra que, em grande parte, é sua." Ou seja, a idéia do colunista é que, como a grande maioria dos eleitores teria votado contra a política econômica do atual governo, portanto, não se deve criticar o governo eleito.

Adepto, assim, do centralismo autoritário, o colunista da Folha é claro: quem critica qualquer enunciado ou atitude do governo eleito é partidário (deprimido e/ou irritado) do governo antecessor, cuja política econômica foi derrotada fragorosamente na recente eleição. O recado é cristalino: nenhuma crítica ao governo eleito seria, para o colunista, legítima. Quem sabe, a partir do ano que vem seja adequado calar toda e qualquer crítica ao novo governo.

Resta uma dúvida: saber se o senador Eduardo Suplicy ? que foi, afinal, quem fez a crítica mais contundente ao Plano de Combate à Fome ? é, no entender do colunista, órfão de Fernando Henrique Cardoso e viúva do FMI, ou órfão do FMI e viúva de Fernando Henrique Cardoso. O senador, pessoa imbuída de espírito democrático e preocupações sociais, defensor entusiasta do Projeto Renda Mínima, foi derrotado nas prévias petistas e, na seqüência, substituído por aliados como Orestes Quércia, Delfim Neto, os políticos do PL e aquele senador que um dia já foi chamado de "grileiro de terras".

Eleição sem plebiscito

Senador por senador, o colunista parece preferir aquele que, por muitos anos, tem sido seu colega de diário paulistano. Dizer que o sistema de cupons do Fome Zero, tal como anunciado pelo governo eleito, é passível de fraudes e que é previsível o desvio de recursos, se aplicado é, para o colunista, má-vontade dos órfãos do governo derrotado na recente eleição. O colunista deve elogiar os governadores eleitos e os políticos do PFL que já se mostraram entusiasmados com o sistema. Apontar que esse sistema pode favorecer o coronelismo político nas regiões mais pobres é, para o colunista, desdouro das viúvas do governo que sai.

Para o jornalista companheiro, então, quem critica o governo eleito é viúva ou órfão do governo Fernando Henrique Cardoso. Janio de Freitas, assim, quer chamar Lula de "papai" ? além de, talvez, pleitear, a partir do ano que vem, o título que cabe a Marisa da Silva. Afinal, é desta maneira que ele entende política ? e jornalismo.

E não é verdade que "três quartos do eleitorado, ou 76% dos eleitores", preferiram os candidatos de oposição à política econômica do governo Fernando Henrique Cardoso, como escreveu Janio de Freitas.

Primeiro, o simplismo. Parece que todo eleitor vota se perguntando: vou votar "a favor da política econômica do governo" ou contra ela? Portanto, no candidato do governo ou em algum, qualquer um, dos outros? Em qualquer candidato que se vote sem ser o do governo votar-se-ia igual, segundo o raciocínio do colunista. Ora, um eleitor pode votar num candidato de oposição e isso não significa necessariamente ser contra a política econômica do governo. Igualmente relevante, um eleitor pode votar no "candidato do governo" e não ser a favor da política econômica adotada pelo governo. Não há nenhuma incoerência nos eleitores que assim tenham votado.

Nenhuma incoerência, nenhuma "alienação". Mesmo porque os eleitores não votam apenas em função do âmbito econômico ? e a eleição não foi um plebiscito em relação à política econômica do governo. Os eleitores votam nos candidatos por "n" motivos diferentes.

Dolo despercebido

Mais importante: é verdade que, no primeiro turno, 24% dos eleitores votaram no chamado "candidato do governo". Mas ? mesmo admitindo o simplismo acima ? de jeito nenhum 76% dos eleitores votaram nos candidatos de oposição. Afinal, o jornalista suprimiu os eleitores que deram votos em branco e nulos: os eleitores que votaram assim certamente não preferiram um dos "candidatos de oposição" em detrimento do "candidato do governo"! Ou acharam cada candidato de oposição tão ruins quanto "o do governo" ou ? até mesmo! ? acharam todos igualmente bons: enfim, não tiveram preferência por nenhum candidato, tampouco de um da oposição em relação ao do governo. Tal qual a imprensa em geral, o jornalista desprezou os votos em branco e nulos (igualando-os).

Mas, atende a um objetivo específico. A matemática ruim do jornalista pode ser mais do que desconhecimento da aritmética: pode ser a vontade de distorcer os fatos. Pode-se até "inferir" o que quis a maioria dos eleitores que votaram no candidato do governo e o que quis a maioria dos que votaram em cada um dos outros candidatos ? mas daí a inferir que todos que não votaram no candidato do governo (os 76%) simplesmente votaram contra a política econômica do governo é licença do jornalista em relação à realidade. Senão bastassem os raciocínios acima, a realidade do segundo turno é suficiente para atestar: o candidato do governo teve, afinal e evidentemente, uma votação maior do que a do primeiro turno ? além disso, novamente, o segundo turno conteve vários aspectos (como o simbólico) que não caracterizam o segundo turno como um plebiscito sobre a política econômica.

Muitos eleitores que, no primeiro turno, votaram em candidatos de oposição votaram no candidato do governo no segundo turno ? portanto, estendendo o raciocínio do colunista, supostamente votaram no segundo turno a favor daquilo que reprovaram no primeiro.

De qualquer maneira, "76%" é resultado de simplismo e de matemática ruim. Sobretudo, desrespeito aos eleitores. E, além disso, desrespeito aos leitores que entendem alguma coisa de aritmética e que podem perceber a distorção dolosa do jornalista. Quem sabe, desrespeito maior até mesmo com o que o colunista talvez considere seus leitores "ideais" ou "padrão" (os leitores que ele pretenderia alcançar com seu texto): aqueles que não entenderiam e não perceberiam o dolo.

(*) Historiador e doutor em Filosofia pela FFLCH-USP

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