Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Os jornalistas e as corporações

CASO ENRON

O respeitado Howard Kurtz, do The Washington Post, botou o dedo na ferida em artigo [30/1/02] que começa comentando o debate sobre a reforma da lei de financiamento de campanhas, no rastro da falência da Enron. Para ele, uma pergunta resume tudo: o que exatamente as empresas estão comprando quando doam milhões de dólares a políticos? Mas ele redireciona a pergunta imediatamente para a imprensa: o que as empresas estão comprando quando recheiam suas folhas de pagamento com gente importante da mídia? "Colunistas e comentaristas deveriam pegar dinheiro de companhias como a Enron?", pergunta.

A falência da Enron, diz ele, expôs as estreitas relações entre a classe "erudita" e o mundo corporativo, no qual 50 mil dólares mudam de mãos por qualquer servicinho. Os jornalistas envolvidos, em variados graus de candura, revelaram seus laços com a Enron enquanto escreviam sobre o colapso da sétima maior empresa dos Estados Unidos. Mas tiveram que enfrentar perguntas agressivas, normalmente reservadas a presidentes de comissões que prestam favores legislativos a doadores de dinheiro.

"Critico jornalistas coletores de dólares desde a metade dos anos 90, quando escrevi sobre as 30 mil libras que Sam Donaldson recebeu de uma seguradora em troca de uma palestra", diz Kurtz, que prossegue: "A trilha de ouro dos honorários corporativos foi percorrida por luminares como David Brinkley, Robert Novak, David Gergen, Cokie Roberts, Christopher Matthews, Larry King, Mark Shields, Fred Barnes, George Will e Michael Kinsley que, numa frase memorável, disse: ?Eu não fiz isso durante anos, mas ficou mais socialmente aceitável?. King compara a prática ao ?crime do colarinho branco?. Muitos se recusam a discutir o assunto fora de seu próprio veículo", conta Kurtz.

O problema começou a diminuir quando um número crescente de empresas midiáticas proibiu a prática, incluindo as redes ABC e a NBC. Kurtz destaca que o Washington Post proibiu há tempos que seus funcionários recebam honorários de empresas que fazem lobby no Congresso.

Mas agora, aqueles que receberam dinheiro da Enron não têm onde se esconder, pois o escândalo ocupou o espaço da guerra no Afeganistão. E os jornalistas envolvidos (com uma exceção) criticaram duramente Kenneth Lay (chairman da Enron) & Cia.

O colunista do New York Times Paul Krugman, que recebeu 50 mil dólares por uma consultoria à Enron, dada antes de entrar para o Times, acusou seus críticos de conservadores, que se esforçam para empurrar a sujeira da Enron para a esquerda. Infelizmente para este argumento, a maioria dos "Enron-jornalistas" é de direita.

Peggy Noonan, colunista do Wall Street Journal que recebeu de 25 mil dólares a 50 mil dólares por redação de discursos, disse a Kurtz: "Não lamento ter feito o trabalho ? foi um trabalho honesto, árduo, que constou da minha declaração de renda, nada a esconder… Mas sinto o seguinte: tenho que falar da minha experiência com a Enron para poder falar sobre a Enron, e tenho que falar sobre a Enron porque sei bem o que eles fizeram".

Lawrence Kudlow, da CNBC e da National Review, disse que deveria ter revelado antes que recebeu 50 mil dólares por consultoria e pesquisa, mas disse também que está sendo rígido com a Enron porque se sentiu traído. O editor da Weekly Standard, Bill Kristol, que recebeu 100 mil dólares, nada viu de errado no trabalho. Seu papel foi revelado por outro beneficiário da Enron, o editor da Standard Irwin Stelzer, que elogiou Lay e a Enron como "líderes na luta contra a concorrência". À exceção de Stelzer, que falhou no esclarecimento desses arranjos em artigos para a imprensa britânica, outros se gabam de que suas críticas à Enron demonstram que não se deixam influenciar por meros dólares. "Claro", ironiza Kurtz, "se a Enron não tivesse derretido tão espetacularmente talvez nem viéssemos a saber da maioria desses laços financeiros ? e continuamos sem saber de outros bicos."

Os "eruditos" da Enron se colocaram numa estranha situação, avalia Kurtz. Se nada escrevem sobre o escândalo, como propõem alguns críticos, então a empresa realmente teria comprado seu silêncio. Escrevendo, aparentam estar cuspindo no prato em que comeram, só para mostrar coragem jornalística.

Talvez o mais revoltante seja a noção de que a Enron estava tentando fazer o que fez com George W. Bush, John Ashcroft, Joe Lieberman, Lawrence Lindsey, Ralph Reed e cerca de metade da Washington oficial ? um investimento que poderia dar retorno mais tarde. O que, afinal, os comentaristas fizeram pela Enron? "Participei de uma mesa-redonda de consultoria, sem nenhum objetivo maior", disse Krugman a seu jornal. Exatamente.

Atualmente, é difícil evitar totalmente os conflitos de interesse para jornalistas que trabalham para grandes companhias, escrevem livros e aparecem na televisão. Mas muitos se enchem de indignação quando políticos de todos os matizes aparentam cumprir ordens dos que encheram seus cofres de campanha. Para o pessoal da mídia, participar desse jogo é encrenca certa.