Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Os mitos que o jornalismo cria

TV DIGITAL

James Görgen (*)

Não é só a ciência que pode se apresentar hermética, dissimuladora e elitista. Sendo um ramo de conhecimento que tem o prazo de fechamento como adversário da precisão, o jornalismo nem sempre cumpre a tarefa de bem informar. Recortando realidades, o repórter pode tornar-se cúmplice do esquartejamento da informação. Seja pelo interesse do patrão ou pelo desconhecimento de quem a produz, uma notícia amputada de seu contexto pode ser peça-chave na cristalização de mitos. Pegue-se o exemplo da TV digital. Há pelo menos dois anos, a imprensa brasileira dedica-se a noticiar com regularidade o processo que vai culminar na migração da tecnologia analógica usada na captação, transmissão e recepção dos sinais de radiodifusão de sons e imagens para o processo digital de se fazer a mesma coisa. Na maioria das matérias que o site AcessoCom recolheu em junho, a transição do ambiente analógico para o digital é focada sobre três pontos-de-vista ? a qualidade de imagem e de som, um difuso conceito de interatividade e a briga de grupos estrangeiros em torno da plataforma tecnológica que imperará no país.

Os dois primeiros pontos são cercados de mitos que ainda não foram esmiuçados de forma esclarecedora (leia quadro). Talvez por isso os olhos da mídia estão dirigidos quase obsessivamente para o terceiro ponto: a disputa entre os grupos que detêm as tecnologias e seus movimentos para vencer o processo em solo local.

Desenvolvida desde 1964, a TV Digital terrestre opera comercialmente em menos de uma dezena de países há menos de três anos. O Brasil virou foco da atenção mundial por ser o único lugar do planeta em que radiodifusores e fabricantes bancaram um abrangente e exaustivo conjunto de testes de laboratório e campo para comparar os três padrões existentes ? o americano ATSC, o europeu DVB e o japonês ISDB. A decisão final do governo brasileiro deverá influenciar escolhas em outras nações. Foi o que aconteceu na Argentina, que tinha optado pelo ATSC ainda em 1998. Quando os testes brasileiros indicaram que a opção dos Estados Unidos era a que mais deixava a desejar, a Casa Rosada estancou o processo para esperar a decisão brasileira. Depois disso, os defensores dos três padrões montaram estruturas permanentes de "lobby" no país.


Desinformação a granel

Fora da geoeconomia, existe a preocupação doméstica de se criar demanda para um mercado inexistente mesmo nos poucos países que já adotaram a nova tecnologia. O Brasil tem cerca de 53 milhões de receptores de TV analógicos espalhados por mais de 40 milhões de lares. No período de transição, que deve durar uma década, todos estes aparelhos terão de ser trocados por um receptor digital ou, pelo menos, acoplados a um decodificador. Esgotado o prazo, não haverá mais transmissão analógica. A pressa dos entusiastas que estão ditando o ritmo da transição desconsidera um detalhe: tanto o aparelho adaptado quanto o conversor mais baratos estão fora do alcance do orçamento do brasileiro médio. Um cálculo rasteiro indica que se os brasileiros comprassem pelos menos um set-top box para cada televisor analógico a transição custaria mais de US$ 10 bilhões. [
Nos Estados Unidos, um receptor digital custa por volta de US$ 2 mil, e uma unidade receptora-decodificadora (URD) ? o set-top box ? não sai por menos de US$ 200. Por este motivo, algumas empresas do Reino Unido e dos EUA estão distribuindo o segundo aparelho de graça em troca da assinatura de serviços pagos, o que desvirtua o caráter da radiodifusão gratuita. Incluindo na conta os gastos das 985 emissoras e retransmissoras com a troca dos equipamentos, é fácil acrescentar pelo menos mais US$ 2 bilhões a esta estimativa.]

Para destravar este ponto, a chamada imprensa livre torna-se instrumento de propaganda. Afinal, é preciso convencer uma população com 50 milhões de miseráveis que a TV Digital é fundamental para suas vidas. Em junho, dos 58 jornais, revistas e sites especializados monitorados diária e semanalmente por AcessoCom, apenas 21 deles publicaram alguma linha sobre esta revolução. Somando-se matérias, artigos, colunas e notas chega-se a 98 textos sobre o assunto. [
A estatística total sobe para 138 textos em um mês (a média diária sobe para 4,6 textos) quando se inclui notícias referentes à chamada TV Digital Interativa, serviço que vem sendo testado no país pelas operadoras de TV paga
].

Uma média diária de 3,2 matérias ou 4,6 matérias por veículo em um mês. Só na Gazeta Mercantil foram 17 textos em 30 dias. Na Folha de S. Paulo, foram apenas nove referências. O número cai a quase zero nos veículos ligados a grupos que detêm concessões de rádio e TV. No levantamento mencionado, eles foram os mais tímidos na abordagem do debate, apesar de junho ter sido o mês mais quente em termos de definições. [
Neste mês encerrava-se o prazo para apresentação dos comentários da consulta pública sobre as três plataformas tecnológicas que poderão ser adotadas pelo país. Ao mesmo tempo, foram repercutidos os acontecimentos polêmicos de uma das raras audiências públicas promovida pela Anatel para debater telecomunicações ou radiodifusão.
] O Globo, por exemplo, tocou no assunto apenas três vezes em 30 dias. O mesmo número de Zero Hora.

Descontando o boicote voluntário de alguns empresários, para quem a manutenção da ignorância sempre foi uma commodity, é possível afirmar que quase nenhum assunto específico ? com exceção do governo Fernando Henrique como um todo ? vem recebendo uma cobertura tão sistemática dos meios impressos e da internet quanto a TV digital. Entretanto, não há interesse em massificar a discussão do tema na TV ou no rádio, por exemplo. Apesar de viver com a mídia eletrônica diariamente em sua sala de estar, o povo brasileiro tem nos meios de comunicação um ilustre e sedutor, mesmo que distante, desconhecido. E parece querer mantê-lo assim. Ignorar o fato de que a TV digital está para alterar de vez esta relação não perturba a sociedade, que caminha para delegar a decisão ao governo e às empresas do setor. Se assim for, o país terá que se contentar em conviver com o mito e começar a pagar a conta ao longo do novo século.

(*) Jornalista, editor-adjunto do Acesso.com <www.acessocom.com.br>,
pesquisador do Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação
(Epcom).

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