Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Os novos cães de guarda

Entrevista com Serge Halimi

Por Norma Couri

 

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ão adianta perguntar a idade, xeretar sua vida privada, insistir na fotografia ou propor que ele vire estrela de televisão sob pretexto de divulgar suas denúncias. Elas tratam, exatamente, do abuso indevido do poder da imprensa, da conivência interesseira entre a media e o poder, da submissão dos jornalistas às regras do mercado, da amizade, da troca de favores, da política. Esse é o quadro que o jornalista Serge Halimi traçou da sua própria profissão num livro de capa vermelha do tamanho da palma da mão que vendeu 200 000 exemplares na França e acaba de ser lançado no Brasil pela coleção Zero à Esquerda da Editora Vozes, dirigida por Paulo Arantes.

Os Novos Cães de Guarda não mereceram resenha no jornal onde Halimi trabalha, Le Monde Diplomatique, nem notícia na imprensa francesa. Ele se orgulha de ter emplacado um gol de mercado num produto que não trata da intimidade de nenhum presidente nem foi bolado por algum marqueteiro genial. Foi divulgado de boca em boca, passado de mão em mão e teve como resposta cartas de jornalistas ou de pessoas que não têm voz nem espaço na mídia.

Serge Halimi veio ao Brasil para uma série de debates entre Rio e São Paulo, com jornalistas ou não, e seu único objetivo de deflagrar o desvio do papel da imprensa na França – que pode ser aplicado a qualquer país. Doutor em Ciência Política pela Universidade de Berkeley, professor da Universidade de Paris VII, ele escreve que já vai longe aquele jornalismo que nasceu para “confortar os que vivem na aflição e afligir os que vivem no conforto”

Os novos cães de guarda são os jornalistas, ele diz, fazendo alusão a um ensaio do 1932 do escritor francês Paul Nizan, “Os Cães de Guarda”, sobre os filósofos. Halimi tornou-se um arquivista metódico de sua matéria-prima: notícias sobre a imprensa. Do jornalista que usa seu pequeno poder para favorecer gente que vai favorecê-lo em seguida, aos polvos em que se transformaram os grandes grupos de comunicação do mundo aumentando o controle sobre a informação e a influência sobre as pessoas.

“Ao tornar a Guerra do Golfo popular, a mídia teve responsabilidade na matança de milhares de pessoas”, disse, juntando sua voz à crítica feita hoje em cinemascope em filmes como Mera Coincidência (Wag The Dog) ou Mad City (O Quarto Poder), o primeiro com Dustin Hoffman e John Travolta, o segundo com Robert de Niro e, também, Hoffman.

“Meu livro vendeu 200 mil exemplares no embalo dessas vozes que começam a se levantar, uma crítica tão rara no passado que deixou as pessoas ávidas de informação”.

Imprensa começando a revelar os podres da imprensa, jornalistas usando a investigação sobre colegas que abusam do poder, benefícios por debaixo do pano para donos de espaços da mídia que se abrem justamente para denunciar favores recebidos em outros setores da sociedade. O livro de Halimi nasceu sem mercado e acabou best seller. O sucesso editorial do ano. “Sempre que subestimamos o poder de uma sociedade, ela nos surpreende, a adesão surda das pessoas comuns e em massa é sempre uma surpresa – e a história é feita desses momentos”, afirma.

OBSERVATÓRIO – Os Novos Cães de Guarda fez você perder amigos na imprensa?

Serge Halimi -Pelo contrário. As pessoas de quem eu falo no livro não ficaram amigas mas também não eram antes. Em compensação recebi centenas de cartas de apoio de outros jornalistas.

OBSERVATÓRIO – Lavaram a alma. Significa que o sistema da sociedade se reproduz na hierarquia da imprensa, poucos felizes no topo, muitos infelizes na base?

Halimi – A imprensa é um sistema dual que reflete as tendências dominantes. Quem está por cima são os próprios beneficiários, quem está por baixo repercute o pensamento oficial porque tem medo de perder o emprego.

OBSERVATÓRIO – Você foi muito corajoso.

Halimi – Não fui. Minha situação é privilegiada e não arrisco nada. Eu e meus colegas jornalistas somos detentores de 20% das ações do Le Monde Diplomatique, onde trabalho, os leitores e assinantes do jornal detêm outros 20%. Juntos exercemos direito de veto. Somos independentes e, o que é mais formidável, ainda temos lucro (700 mil exemplares vendidos na Europa).

OBSERVATÓRIO – Se você trabalhasse noutro jornal não acharia mais trabalho no mercado. Qual a saída?

Halimi – Não há saída na corporação de uma sociedade que vai cada vez pior. Nós seremos todos salvos ou sofreremos todos juntos, e o bom disso é que nos tornamos solidários, os jornalistas e os outros. A maioria das pessoas que trabalham não são independentes, quando vamos a um supermercado elas não dizem para os mais simpáticos pagar menos e para os antipáticos, mais. É um trabalho submisso e dependente como o jornalismo está se tornando. Talvez juntos possam lutar contra a submissão e a dependência.

OBSERVATÓRIO – Denunciar é difícil.

Halimi – No meu livro conto o caso de um jornalista do Le Figaro que escreveu um livro detalhando o comportamento de seus patrões e acabou dispensado. Esse risco, eu não corro.

OBSERVATÓRIO – Se corresse não teria problema, você é bem jovem. Quantos anos?

Halimi – Todo mundo me pergunta isso aqui no Brasil.

OBSERVATÓRIO – Então?

Halimi – Não quero responder a essa pergunta.

OBSERVATÓRIO – Você considera uma invasão de privacidade?

Halimi – Acho que faz parte da curiosidade jornalística pessoal. Não digo minha idade porque não digo se sou casado, nem poso para fotos na França – aqui, acabei sendo fotografado. Muito menos participo de shows de televisão.

OBSERVATÓRIO – A imprensa eletrônica é mais corrompida?

Halimi – A palavra corrompida me faz pensar em suborno aberto, e uma imprensa que introjetou essa lógica não tem necessidade disso. Então não faço televisão porque ao passar pela grande mídia estou me beneficiando eu próprio do sistema que critico – fazendo uso dessa projeção, como alguns colegas. É uma questão de integridade. Meu livro não foi resenhado no Le Monde Diplomatique pela mesma razão.

OBSERVATÓRIO – O tratamento da vida privada é uma prática mais comum nos Estados Unidos e nos países latinos, como o Brasil, do que na Europa?

Halimi – Temo que daqui a pouco vai ser uma prática do mundo inteiro, uma conseqüência natural da despolitização. As pessoas passam a se interessar muito menos pelos programas políticos dos homens públicos e mais por suas amantes, seus tiques, seu charme ou casmurrice. Na Europa, onde a participação eleitoral recua, a imprensa pode trocar informação por diversão.

OBSERVATÓRIO – O caso Clinton-Lewinski não demonstra liberdade de imprensa?

Halimi – Vida privada é domínio essencial onde a transparência significa o contrário da liberdade e democracia. Nem sempre dizemos tudo sobre nossas vidas privadas. Temos a liberdade de dizer não. Se me interrogam sobre a situação política eu digo, sobre minha idade ou minha vida sexual, eu digo não. Os jornalistas não têm o direito de achar que sou obrigado a responder a qualquer pergunta. Um homem público tem direito a uma vida privada, sim.

OBSERVATÓRIO – Que países no mundo têm a imprensa menos contaminada?

Halimi – A França e alguns países europeus preservam mais sua vida privada – é só comparar com o caso Clinton o tratamento dado à filha ilegítima de Mitterand. Agora, só teremos uma imprensa livre da influência política ou financeira quando tivermos uma sociedade igualmente livre.

OBSERVATÓRIO – Enquanto isso aumenta a tradição de só se contratar repórteres muito jovens?

Halimi – Precisamente. Gente sem memória nem especialidade, que não se rebela. Eu sei que a informação pode ser afetada porque eu conheço o assunto, eu e outros jornalistas que sabem das coisas, há muitos anos. Eles não sabem.

OBSERVATÓRIO – Há menos interferência na área do jornalismo cultural?

Halimi – Há mais. Com as outras áreas é por força do mercado, nas páginas de cultura você fala do meu livro que eu falo do seu, eu critico seu espetáculo porque conheço você. A crítica literária, cinematográfica e das artes em geral está desacreditada e o leitor desconfia quando dizemos que o livro é bom.

OBSERVATÓRIO – O furo não é mais possível?

Halimi – É. Mas não é essencial para o jornalismo. Denunciar um suborno é furo. A análise sobre as condições precárias da sociedade, as populações da periferia, os relatórios das zonas desfavorecidas do globo feitos pela ONU – nada disso é furo, é apenas trabalho jornalístico, mas bom. No mundo inteiro a concorrência real entre dois jornais numa grande cidade vai sumindo. Na França, o que aparece como furo é a informação que interessava ao poder repassar. E a grande tradição do jornalismo investigativo começa a desaparecer nos Estados Unidos, como aquele exercido por I.F.Stone.

OBSERVATÓRIO – Os EUA não fizeram jornalismo investigativo no caso Watergate?

Halimi – Mas aí tratava-se de um caso público, da tentativa de roubo explícito de partido da oposição por um partido da situação. Era um entrave à vida democrática. Agora, o caso Monica Lewinski rola sobre a curiosidade da imprensa. A vida privada de Clinton diz respeito a sua mulher, sua filha, e a Monica Lewinski. É surpreendente que o planeta Terra inteiro se arbitre o direito indireto de interrogar, exercendo um macarthismo sexual, o presidente do Estados Unidos sobre seu comportamento privado.

OBSERVATÓRIO – Por que leitores não reagem ao abuso ou submissão da imprensa?

Halimi – Reagem sim: cada vez se lê menos jornal no mundo.

OBSERVATÓRIO – Não é a atração do show business do noticiário televisivo?

Halimi – Não, é uma revolta silenciosa contra a informação e o paroquialismo. A revista Time que circula nos EUA dedicou apenas uma de suas capas a um tema internacional no ano passado. Cada vez se confia menos nas informações, e cai a audiência dos noticiários de TV e a venda de jornais.

OBSERVATÓRIO – Que jornais você lê?

Halimi – Quase toda a imprensa francesa. Le Monde, Le Figaro, Libération, L’Humanité, Les Echos, La Tribune. O The Herald Tribune. Leio o The New York Times aos domingos, as revistas Time, Newsweek, o US News and World Report, Harper’s, o Financial Times. Leio muito.