Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Os perigos da intimidade com o poder

MÍDIA, BNDES E A CRISE

Luciano Martins Costa (*)

Maria Sílvia Bastos Marques, que se celebrizou como a "dama de ferro" ao presidir durante seis anos a Companhia Siderúrgica Nacional, tem diante de si um desafio de gente grande: a missão que ela assumiu, à frente da consultoria financeira MS&CR2, de desenhar para o BNDES um roteiro de salvação das empresas nacionais de mídia. Não se coloca em questão sua expertise ou a qualificação de seu time. O cliente é que não ajuda.

O lado televisão do setor que clama por socorro deu partida à sucessão de dificuldades ao agitar o noticiário policial, no episódio Gugu, quando o apresentador Augusto Liberato colocou no ar uma falsa entrevista com falsos bandidos que pertenceriam à organização auto-intitulada ? e assim reconhecida pela mídia ? como o Primeiro Comando da Capital.

Semanas depois do episódio, indivíduos identificados com a organização abrem guerra de guerrilha contra policiais militares nas ruas de São Paulo, promovendo assassinatos aleatoriamente. Para fechar o círculo de más referências, a Rede Bandeirantes de Televisão sai com editoriais contra o desarmamento da população, tisnando qualquer hipótese de isenção e equilíbrio nos debates públicos que virão em algumas semanas.

Argumentações matemáticas

No setor radiofônico, as empresas deixam uma impressão que nenhum relações públicas recomendaria, ao substituir o debate sobre as rádios comunitárias por um destaque editorializado ao fechamento de emissoras em favelas e outras comunidades menos favorecidas. Há muito tempo representantes de universidades e estudiosos da mídia tentam trazer à luz a questão da regulamentação de emissoras alternativas, sem sucesso. O apoio irrestrito à ação da polícia, sem abertura de espaço para o diálogo, não recomenda o setor como suporte de valores democráticos. A lei é clara na regulamentação das emissões, a na maioria dos casos a ação policial está respaldada na legislação, mas como bem lembra a repórter Cláudia Izique na edição setembro-outubro da revista Negócios da Comunicação, as emissoras de rádio são parte central no fenômeno de concentração da propriedade dos meios de comunicação em grandes grupos, quase sempre em mãos de políticos e sob interpretações ambíguas da lei, para dizer o mínimo.

Na mídia impressa, coube ao patriarca da Folha de S. Paulo, Octavio Frias de Oliveira, recitar o papel de antagonista na corrente pró-socorro governamental, ao denunciar um suposto interesse do governo em manietar a imprensa através de compromissos com o BNDES. Como já lembraram outros observadores, o sr. Frias se esqueceu, talvez pela idade avançada, de alguns detalhes, como o fato de a crise ter começado e vir se consolidando há mais de dez anos.

Outro esquecimento ? ao lado do problema de datas, bem citado por Mino Carta, no episódio do afastamento de Cláudio Abramo ? coloca em perspectiva mais ampla o conceito de independência que o empresário tanto louvou: aquela que deveria dar aos jornalistas uma pauta livre das ingerências de outros interesses de negócios dos donos de jornais. No caso, a maldita memória de alguns jornalistas insiste em gritar que, na Folha de tempos não tão distantes, era tema sensível a criação de galinhas e pecado mortal discutir urbanismo nas imediações da antiga Estação Rodoviária de São Paulo, um terminal privado de ônibus pertencente aos donos da Folha.

Não que o governo, via o seu banco de fomento, devesse cortar na raiz a pretensão das entidades representativas da mídia ou fechar os olhos às argumentações matemáticas que estão sendo digitadas pela equipe de Maria Sílvia. Tampouco se diria aqui que o país poderia prescindir de uma imprensa livre e forte, fundada em organizações sólidas econômica e financeiramente. Mas não basta a necessidade para desatar a caridade, e o governo já advertiu que, embora reconhecendo a necessidade de reerguer o setor, que tem sido à sua maneira e com todos seus equívocos uma garantia para a consolidação da democracia, é preciso muito mais.

Lentes embaçadas

Esse muito mais que se espera não virá necessariamente das redações, mas das salas da administração, dos chamados boards onde se desenha a estratégia das empresas de comunicação. A expectativa no BNDES é de um plano de recuperação consistente que responda a uma série de questões nas quais a imprensa tem cometido seus erros mais grotescos. A questão da governança é a primeira delas. Sem uma garantia de transparência, as conversas não chegarão nem à forma de aporte dos recursos que se pretende ver destinados ao programa de salvamento. Para muitos observadores, essa é a mãe de todas as causas da crise, mas nas organizações de mídia ainda não se chegou a esse ponto do debate, que para o BNDES deverá ser o quilômetro zero.

A outra questão, que se refere à configuração da propriedade das empresas de comunicação, vai esbarrar na resistência de alguns integrantes das famílias proprietárias de aceitar interferências de executivos dos quais não tenham garantida a vassalagem. Para alguns analistas ? entre os quais um ex-ministro que mantém íntimas relações com um dos grupos candidatos ao socorro do governo ? essa será uma das pedras mais incômodas no elegante sapato de Maria Sílvia Bastos. No Estado de S.Paulo, por exemplo, comenta-se que um dos acionistas afastados no atual processo de reestruturação já anuncia sua volta triunfal à direção editorial do jornal.

Calcula-se que a mídia brasileira irá precisar de uma injeção de 7 bilhões de reais em curto prazo, e quanto mais demorar a solução, mais desse dinheiro irá direto para o rombo do caixa e menos recurso haverá para reformas estruturais e medidas em favor de um modelo sustentável de negócio. Uma tendência perigosa ? que tanto ameaça a solução desejada pela mídia quanto o interesse público ? pode ser resumida numa, digamos, curiosidade manifestada por lustrosa figura da República, em conversa recente a respeito de nomes que poderiam vir a integrar as futuras composições jurídicas que resultariam da entrada do BNDES no negócio. Como a pessoa jurídica é uma ficção legal, ou seja, não existe corporeamente, mas apenas como representação de uma confluência de interesses econômicos, políticos ou ideológicos, essa curiosidade pode estar revelando certa propensão em parte do governo para colocar mais do que dinheiro nessa negociação.

Pode ser apenas reflexo da pouca familiaridade do núcleo do governo com o poder maior da nossa controversa República. Pode ser também que o observador esteja com as lentes embaçadas, mas o maior risco desse projeto é esse mesmo que tem sido por aqui aventado: o da criação de um vício de dependência na origem da operação de resgate. Resta saber se os quadros que têm faltado à mídia para estruturar processos mais saudáveis de gestão haverão de socorrê-la na tarefa de aceitar do príncipe o beijo transformador sem, no entanto, se comprometer com outras intimidades.

(*) Jornalista