Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

É Otto ou oitenta

OTTO LARA RESENDE

Luís Edgar de Andrade (*)

Parece que foi ontem ou melhor agora de manhã. Naquele tempo, em Fortaleza,
ia-se à praia de calça comprida, calção
na mão. Eu tinha 16 anos, talvez 17. O ônibus Praia
do Meireles, já lotado, subia sem pressa a Avenida Santos
Dumont. Lembro-me de que, ao virar à esquerda na rua Carlos
Vasconcelos, parou na primeira esquina para pegar um passageiro
de terno branco. Era o poeta Filgueiras Lima, dono do Colégio
Lourenço Filho, que me agradeceu o lugar sentado e disse:
"Estive no Rio, há uma semana, com o escritor Otto Lara
Resende. Sabe, Edgar? Vocês se parecem um pouco. Deve ser
o nariz".

Onde anda aquele nariz? Pela primeira vez, em muitos anos, abro
desconfiado o velho album para descobrir que, aos 17 anos, tinha
nariz fino. Antes de operar o desvio de septo, ele fazia no meu
rosto um suave ponto de interrogação. Para o adolescente
magrinho, autor secreto de dois ou três poemas, O. L. R. não
era uma abstraç&atildeatilde;o. Eu comprava, toda segunda-feira,
o semanário Comício, publicado no Rio, onde
ele gozava, com seriedade, a Constituinte. Otto Lara Resende, esse
nome ficou no meu inconsciente.

Pulo para o dia 28 de dezembro de 1992. Em pé na sala, ainda
de pijama, eu olhava a maçã no quadro: uma grande
maçã branca recortada na madeira. O telefone tocou.
Passaram-se três segundos para eu perceber que minha mulher
estava pálida, igual à maçã. Aquele
branco inundou a sala, a casa, minha rua, o Jardim Botânico
e o universo. Dez anos depois, o quadro de Miriam Attala continua
na parede. Ele me avisa, calado, que a morte existe.

Otto Lara Resende tinha feito 70 anos no dia 1? de maio de 1992.
Acreditava com firmeza que ia morrer velhinho, velhinho, perto dos
100, como o pai: "Nunca fui hospitalizado. É uma bênção,
não é? Confio no meu coração, mas tenho
medo de enfarte. Tenho medo de morrer de repente, no fundo desconfio,
tenho certeza de que não vão fazer isso comigo. Deus
companheiro, agüenta aí."

No dia em que Antônio de Lara Resende agonizava, 17 de novembro
de 1988, sentou-se à máquina e bateu uma carta desesperada
a Moacir Werneck de Castro que começava assim: "Estou
tentando escrever e meu pai está morrendo". Foram 50
laudas de uma tacada sobre o livro "Mário de Andrade
no Rio" que o amigo tinha publicado ? ao cabo das quais, Moacir
disse de si para si, desconsolado: "Ou escrevo um livro de
mil páginas ou jogo o meu no lixo".

Houve uma época em que a coleção de contos
Velórios, de Rodrigo M. F. de Andrade, pai do Joaquim
Pedro, era nosso livro de cabeceira. Em meados dos anos 70, final
do governo Médici, início do governo Geisel, quando
voltei de São Paulo para o Rio, deu-me algumas dicas: "No
regime militar, não há melhor programa, no Rio de
Janeiro, do que velório no São João Batista".
Tomei a brincadeira ao pé da letra. Na primeira semana, toda
noite, às dez horas, quando ele saía do Jornal
do Brasil
e eu ia jantar depois da reunião do Jornal
Nacional, marcávamos encontro numa capela da Real Grandeza,
qualquer uma, em Botafogo.

Dizia-se um apóstolo das pequenas causas. Leitor fiel da
página fúnebre, ficou indignado quando O Globo
acabou com o obituário: "Os convites-missa têm
mais gente conhecida do que a coluna social. Os colunáveis
estão nos avisos fúnebres." Sentiu muito quando
o jornal, na morte de Alves Pinheiro, deu três parágrafos
com título em uma coluna. Duvido que, hoje, no Globo,
alguém de 30 anos saiba quem foi Alves Pinheiro. O homem
passou mais de 30 enfurnado na redação, como secretário,
sem ver a luz do dia. Herdeiro do Otto nas pequenas causas, quando
Merval Pereira substituiu Evandro Carlos de Andrade, transferido
para a TV, escrevi de Zurique pedindo para O Globo restabelecer
o obituário.

Só divergíamos quanto à ortografia oficial
dos nomes próprios Tanto que tirei o d mudo do Edgar.
Por que Otto com t dobrado? "Quando você morrer, eu lhe
dizia, passará a ser Oto para sempre com um t só".
Ele se punha vermelho: "Nesse caso prefiro que me esqueçam,
não me citem". Pois bem. Como eu moro no alto da Lopes
Quintas, quase todo dia, indo para ao trabalho, sou obrigado a parar
o carro no sinal fechado de Pacheco Leão com Jardim Botânico.
Nos 80 anos dele, evito olhar à esquerda, mas a placa do
Largo Otto Lara me contempla, vitoriosa, com dois tt.

(*) Jornalista e escritor, autor do romance Bao chi, bao chi, no prelo.

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