Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Outra imprensa, outras leituras

HOBSBAWM, SARAMAGO & FREI BETTO

Deonísio da Silva (*)

Em artigo publicado no London Review of Books, Eric Hobsbawm diz que as guerras do século 20 mataram 187 milhões de pessoas e que esta cifra é mais do que 10% da população mundial no ano anterior à deflagração da Primeira Guerra Mundial.


"The 20th century was the most murderous in recorded history. The total numbers of deaths caused or associated with its wars has been estimated at 187 million, the equivalent of more than 10 per cent of the world?s population in 1913".


O artigo reflete sua intervenção nas comemorações dos 100 Anos do Prêmio Nobel, ocorridas em dezembro de 2001, em Oslo, capital da Noruega, país que é o primeiro colocado no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).

Eric Hobsbawm semelha um apóstolo que fala dos pobres aos ricos, levando-os
a refletir sobre a miséria e outros males seculares do mundo.
Fala de guerra e violência a quem vive em paz. Desta vez seu
palco foi a Noruega, que tem uma renda per capita de 33.470 dólares.
Para se ter uma idéia de outras linhas que nos separam, além
de ficarmos em outro hemisfério, a nossa renda é de
3.430 dólares. A Noruega exporta, aproximadamente, 10% menos
do que o Brasil, mas importa apenas 70% do que importamos. Mas os
noruegueses são 4,5 milhões. E os brasileiros, 170
milhões.

Talvez Fernando Henrique Cardoso gostasse de governar a Noruega. Lá não existe nem um MST ocupando terras de sua Majestade. E os nórdicos não fazem artifício algum para equiparar sua moeda ao dólar, como fizeram Brasil e Argentina. O que adianta dar outro nome às nossas moedas? São necessários dois ou três, reais ou pesos, para comprar um dólar. E quase dez coroas norueguesas para comprar o mesmo dólar. Contudo, o leitor tem alguma dúvida entre real, peso ou coroa? O que importa, naturalmente, embora os jargões econômicos nos embasbaquem em vez de esclarecer, é a qualidade de vida que pode ser alcançada com cada uma das moedas. Vale dizer, o que cada moeda pode comprar.

Livros devolvidos

Hobsbawm fala também da internacionalização na aplicação das leis, citando o caso do general Pinochet, cidadão chileno, preso na Inglaterra por ordem de tribunal da Espanha. É um artigo que se ainda não foi traduzido, seria bom que o fosse, para ser publicado no Brasil. Afinal, o homem tem o que dizer, o tema é pertinente, sem contar que suas conclusões devastam o mofo de conceitos fincados em equívocos, que às vezes não poupam nem inteligências claras como a de José Saramago, o primeiro e único Prêmio Nobel das literaturas de língua portuguesa.

Como se viu, Saramago foi ao Oriente Médio, escandalizou-se com a violência entre árabes e judeus, mas não teve nem a elegância de seu estilo literário, nem a a correção que costuma ter quando opina sobre temas candentes. Pois comparou a matança de parte a parte ao Holocausto imposto pelos alemães em Auschwitz. Ora, os judeus foram dizimados em campos de concentração, para onde foram levados presos, não por nenhuma briga de fronteiras, mas por ódio racial em seu estado bruto, sequer comparável ao de feras selvagens, que jamais praticam ações desse tipo. O que está havendo no Oriente Médio é lamentável e deve ser condenado por qualquer ser humano. O intelectual deve condenar tanto guerras no atacado quanto jagunços que matam à socapa. Um frasista, não sei se Oto Lara Resende, disse que a tocaia é para não assustar a quem se quer matar. Evidentemente, dado o peso que tem a palavra de um escritor como Saramago, é preciso discernir quando ele se engana. E discordar dele, mesmo porque não tem o dom da infalibilidade, nem lhe foi concedida como dogma.

Aqui no Brasil coube a um escritor e frade, formado nos anos duros pós-64, a palavra mais corajosa e clara sobre um ato de violência, também exercido de parte a parte quando da ocupação da Fazenda Buritis. À pergunta da Folha de S. Paulo (Tendências&Debates, 30/3/02), "o MST cometeu um erro de estratégia ao invadir a fazenda dos filhos de FHC?", o senador Eduardo Matarazzo Suplicy respondeu "sim", ainda que tenha reconhecido que "é muito difícil dizer a qualquer movimento social como ele deve proceder". Mas Frei Betto, talvez por não ser candidato a nada e não precisar medir as palavras por certas réguas partidárias e ideológicas, respondeu assim: "Pedir elegância e fino trato a quem passa fome e quer apenas um pedaço de terra para sobreviver é tripudiar sobre a evidência de que os sem-terra são vítimas de uma reforma agrária que nunca sai do papel e dos discursos".

E mais adiante: "Jean Ziegler, goste o não o governo, tem razão ao afirmar, em seu relatório para a ONU, que o Brasil vive uma guerra social".

São muitas as guerras no mundo e nem todas estão na imprensa. Eric Hobsbawmconclui assim o seu artigo:


"War in the 21st century is not likely to be as murderous as it was in the 20th. But armed violence, creating disproportionate suffering and loss, will remain omnipresent and endemic ? occasionally epidemic ? in a large part of the world. The prospect of a century for peace is remote". (As guerras no século 21 não serão mortíferas como foram no século 20. Mas a violência armada, gerando sofrimentos e perdas desproporcionais, permanecerá onipresente e endêmica ? eventualmente epidêmica ? numa grande parte do mundo. A expectativa de um século de paz é remota.)


Em Israel, multidões de leitores devolveram os livros de Saramago às livrarias. Aqui, a coisa é mais complicada. Para discordar de um intelectual, seus desafetos teriam que primeiramente ir às livrarias. Pois é moda dizerem não ter lido nada do que ele escreveu. Ou não lerem mais o que escreve.

(*) Escritor e professor da UFSCar, doutor em Letras pela USP. Seu livro mais recente é o romance Os Guerreiros do Campo.