Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Padre Marcelo e Tiazinha


Hélio Pimentel (*)

Este pequeno ensaio propõe que os personagens Padre Marcelo e Tiazinha são produtos que contribuem (não sozinhos, obviamente) para a crescente onda de violência patológica de nossa sociedade.

A violência patológica é aquela desproporcionalmente maior que seu motivo desencadeante e na qual o agente violento apresenta, durante a ação, um desvio de comportamento absolutamente caracterizado. São exemplos cotidianos de violência patológica as chacinas, os homicídios por motivo torpe, o comportamento destrutivo das torcidas uniformizadas e muitos outros fatos que considerável parcela da imprensa explora comercialmente e banaliza.

O que é mais preocupante na análise dos casos de violência patológica é que ela não se restringe às ações de indivíduos claramente desequilibrados, como o estudante de Medicina que disparou uma submetralhadora contra a platéia de um cinema do Morumbi Shopping porque "sempre" teve "na mente que deveria matar alguém" (NetEstado, 4/11/99) ou como o motoboy que estuprava e matava suas vítimas no Parque do Estado e que "embora não tivesse experimentado começava "a desejar comer carne humana" (NetEstado, 8/8/99). A violência patológica é, freqüentemente, praticada por indivíduos "normais" que, "de repente", mostram-se desequilibrados, como os policiais militares que invadiram a Casa de Detenção do Carandiru e promoveram, em menos 30 minutos, um massacre com 111 mortos e mais de 100 feridos, detentos "metralhados depois de se entregarem" e "que tiveram órgãos arrancados pelos cães" (NetEstado, 23/3/99).

De onde vem a violência patológica

De forma simplificada, podemos dizer que a violência patológica é resultado de dois fatores: um impulso doentio e um modelo de comportamento. O impulso doentio é o cerne e o esteio do ato violento. É o dever matar, o precisar estuprar, o ter que fazer, a satisfação de ter feito e, muitas vezes, a compulsão pelo refazer. O modelo de comportamento, que se complementa pela disponibilidade dos meios necessários para a prática da ação violenta, é a receita do matar, a receita do estuprar, a receita do fazer.

É evidente que a mídia fornece os modelos de comportamento violento quando programas como Cidade Alerta e jornais como Notícias Populares estimulam a morbidez da população na busca da audiência e de leitores. É evidente também que indivíduos neuróticos apresentam freqüentemente impulsos doentios. O que não é evidente é que os produtos Padre Marcelo e Tiazinha estimulam a formação da neurose porque incentivam um desequilíbrio no conflito fundamental da formação da personalidade humana, o Complexo de Édipo.

O produto Padre Marcelo

Uma armadilha que devemos evitar, sobretudo quando tratamos de assuntos polêmicos como os religiosos, são as discussões intermináveis sobre alguns conceitos que dependem muito mais de uma definição razoavelmente precisa do que de qualquer outra coisa. Sendo assim, podemos afirmar que Padre Marcelo é um produto simplesmente levando em consideração que "um produto é algo que pode ser oferecido a um mercado, para sua apreciação, aquisição, uso ou consumo" e que "os produtos consistem, no sentido amplo da palavra, em algo que pode ser comercializado, incluindo objetos físicos, serviços, pessoas, lugares, organizações e idéias" (Philip Kotler, Administração de Marketing, 2ª edição, pág. 506).

Este ponto de vista, que por si só já é incontestável, é corroborado pelo professor João Décio Passos, coordenador do Departamento de Teologia e Ciências da Religião da PUC de São Paulo, para quem Padre Marcelo é um "produto" que, "com seu visual, suas músicas e sua aeróbica, corresponde ao padrão da mídia, que explora sua capacidade de comunicação para construir um ídolo popular", e pelo padre Virgílio Leite Uchôa, assessor político da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que reconhece, nos eventos liderados pelo Padre Marcelo, um "forte apelo emocional" e uma "importância marcante da imagem e da mídia eletrônica" (Yahoo! Brasil Notícias, 7/11/99).

O que Padre Marcelo não é, certamente, é um sacerdote com discurso religioso profundo, atuação política destacada ou qualquer outra característica que o tornasse mais semelhante a Dom Paulo Evaristo Arns, por exemplo, e menos parecido com um "mauricinho" típico da televisão: branco, alto, "aeróbico", vazio, freqüentador de lugares badalados e ídolo das menininhas – semelhante, mas menos divertido, que o falecido vocalista Dinho, do grupo Mamonas Assassinas, que parece ter inspirado um dos maiores sucessos do padre, o Vira de Jesus.

O sucesso do padre

Deixando de lado a possibilidade de uma intervenção divina, é razoável que se procure uma explicação plausível para o sucesso de um padre que consegue reunir centenas de milhares de pessoas em sua missas, que vende centenas de milhares de CDs e que é disputado freneticamente pelas maiores redes de televisão, especialmente na acirrada briga pela audiência dominical.

Pelo que já foi exposto, o sucesso do "padre-cantor" (expressão utilizada pela revista Veja de 10/11/99) não se deve às suas qualidades de padre, que de forma alguma lhe sobressaem. O repertório dos CDs também não parece, pelo menos em princípio, ser responsável por tamanha popularidade – é tão pobre que inclui o Hino Nacional e a Ave Maria (nada contra o hino e a reza que, exatamente por serem solenes, não combinam com a aeróbica das outras músicas).

Mas se o padre-cantor não faz sucesso nem por ser padre nem por ser cantor, voltamos ao ponto inicial: de onde vem o sucesso de Padre Marcelo? A música Vira de Jesus, cuja parte mais marcante (o vira) foi copiada do grande sucesso Vira-vira, dos Mamonas Assassinas, fornece algumas pistas.

Vira de Jesus [Padre Marcelo]

E os homens, por que vieram? / Viemos louvar ao Senhor

Aleluia, aleluia / Glória e louvor ao Senhor

As mulheres, por que vieram? / Viemos louvar ao Senhor

Aleluia, aleluia / Glória e louvor ao Senhor

Os jovens, por que vieram? / Viemos louvar ao Senhor

Aleluia, aleluia / Glória e louvor ao Senhor

As crianças, por que vieram? / Viemos louvar ao Senhor

Aleluia, aleluia / Glória e louvor ao Senhor


Vira-vira [Mamonas Assassinas, última estrofe]

Oh, Maria essa suruba me excita

Arrebita, arrebita, arrebita

Então vá fazer amor com uma cabrita

Arrebita, arrebita, arrebita

Mas Maria isto é bom que te exercita

Bate o pé, arrebita, arrebita

Manoel tu, na cabeça, tem titica

Larga de putaria e vá cuidar da padaria

Estas duas músicas, numa vista superficial, nada têm em comum, mas se admitirmos, mesmo que pareça absurdo, que o tema seja o mesmo – uma suruba – poderemos encontrar uma explicação para o fato de que os velhos foram suprimidos no "vira" do padre: seguindo o censo comum, os idosos não se encaixam na idéia da suruba. Esta rejeição aos velhos não é tão evidente no disco de Padre Marcelo, mas é em algumas apresentações ao vivo em que ele canta "E os velhos, por que vieram?" e afirma, depois que parte do povo responde "vieram louvar ao Senhor", que não há velhos para Jesus, embora a Bíblia esteja repleta de anciãos.

Continuando na mesma linha de raciocínio, pode-se encontrar uma explicação para as perguntas "… por que vieram?": quando se vai a uma suruba, deve-se ter um outro destino para se declarar. Estas especulações não seriam dignas de crédito se não fossem ratificadas por dizeres de duplo sentido de outras músicas. No Iê, iê, iê de Jesus, por exemplo, sob o pretexto de rezar, ocorrem pulos e gritos, que são muito mais relacionados aos prazeres carnais do que à tradição católica daquele que busca elevar-se espiritualmente na direção da divindade.

Iê, iê, iê de Jesus

Iê, iê, iê, iê, iê, iê, iê… / Uou, uou, uou, uou, uou, uou, uou…

Reza, reza, reza, nós rezaremos!

Louva, louva, louva, nós louvaremos!

Iê, iê, iê, iê, iê, iê, iê… / Uou, uou, uou, uou, uou, uou, uou…

Corre, corre, corre, nós correremos!

Pula, pula, pula, nós pularemos!

Iê, iê, iê, iê, iê, iê, iê… / Uou, uou, uou, uou, uou, uou, uou…

Pula, pula, pula, nós pularemos!

Grita, grita, grita, nós gritaremos!

Mas a música que definitivamente carrega em si toda uma série de conotações sexuais é a que talvez seja o maior sucesso do padre: Erguei as Mãos.

Erguei as Mãos

Erguei as mãos e dai glória a Deus / Erguei as mãos e dai glória a Deus

Erguei as mãos e cantai como os filhos do Senhor

Os animaizinhos subiram de dois em dois / Os animaizinhos subiram de dois em dois

O elefante e os passarinhos, como os filhos do Senhor

Erguei as mãos e dai glória a Deus / Erguei as mãos e dai glória a Deus

Erguei as mãos e cantai como os filhos do Senhor

Os animaizinhos subiram de dois em dois / Os animaizinhos subiram de dois em dois

A minhoquinha e os pingüins, como os filhos do Senhor

Erguei as mãos e dai glória a Deus / Erguei as mãos e dai glória a Deus

Erguei as mãos e cantai como os filhos do Senhor

Os animaizinhos subiram de dois em dois / Os animaizinhos subiram de dois em dois

O canguru e os sapinhos, como os filhos do Senhor

Esta letra refere-se à arca de Noé, embarcação em que foram reunidos um macho e uma fêmea de cada espécie animal para que eles se reproduzissem (fizessem sexo) depois do dilúvio. A primeira "curiosidade" significativa sobre Erguei as Mãos é a escolha dos bichos. Enquanto as histórias tradicionais sobre o dilúvio apresentam um tipo muito característico de animal, os mamíferos, que fornecem alimento e vestimenta ao homem, como boi e vaca, carneiro e ovelha, Erguei as Mãos optou por símbolos fálicos como o elefante (representado, na coreografia do padre, pelo balançar da tromba), o passarinho (termo usado para se referir ao pênis), a minhoquinha (idem) e o pingüim (cuja coreografia ressalta o contraste de sua rigidez com a moleza da minhoca lembrando os estados de ereção e relaxamento do órgão sexual masculino).

No final da canção, o canguru lembra a figura materna, já que é associado freqüentemente à bolsa abdominal em que podem ser carregados os filhotes, e o sapo representa não apenas a sexualidade que pode ser associada à viscosidade de sua pele e à capacidade de inflar quando excitado, mas também um certo repúdio ao sexo, como nos inúmeros contos de fada em que, para desposar o príncipe a garota tem que suplantar o asco que sente pelo sapo (ver Bruno Bettelheim, A psicanálise dos contos de fadas).

Sendo assim, parece que existe um clima de sexo e de repressão na arca de Noé do padre. Mas existe outro "problema" nesta cena: num exercício trivial de lógica, temos que se "os animaizinhos subiram de dois em dois", algo que não tenha subido de dois em dois não é um animalzinho, ou seja, o elefante, a minhoquinha e o canguru não são animaizinhos. Sendo assim, enquanto os animaizinhos se preparam para procriar, estão sendo seguidos, observados. Novamente, sexo e repressão.

Continuando, temos ainda que os animais e os pseudo-animais, com exceção do canguru, são todos símbolos masculinos. Com a mãe-canguru menos importante, temos voyeurismo e homossexualismo.

O desequilíbrio no conflito do Complexo de Édipo

Segundo Alberto Reis, em Teorias da Personalidade em Freud, Reich e Jung (coordenação de Clara Regina Rappaport), pág. 37, "o complexo de Édipo refere-se a um drama vivido intensamente pela criança" quando ela "passa a dirigir sua libido para a mãe", mas encontra uma recusa, a proibição do incesto. No caso da criança do sexo masculino, ela "vislumbra o poder do falo nas excitações genitais (…) primordialmente, dirigidas à mãe" mas encontra uma barreira para suas "pretensões eróticas infantis", que é a "presença paterna". Para o menino, a solução do complexo é identificar-se com o pai e dirigir a libido para outras mulheres, que substituem a mãe. No caso da criança do sexo feminino, o interesse erótico da menina, no Complexo de Édipo, é desviado para o pai e "é identificando-se com a mãe que a menina passa a assumir a identidade feminina e buscar, nos homens, similares do pai".

O personagem Padre Marcelo, sendo pai (padre é pai, e é o que ensina, julga e perdoa), traz em si um modelo de solução do Complexo de Édipo diferente do saudável, baseado num pai que é voyeur e homossexual. Como os conflitos infantis permeiam a vida do indivíduo adulto, esta resolução imperfeita do Complexo de Édipo propicia um reavivamento do conflito estimulando uma solução neurótica que nutre e é nutrida pela tendência ao comportamento compulsivo que estimula e é estimulada pelas freqüentes e inflamadas aparições do padre na mídia.

Voltando ao nosso esquema inicial, temos então que Padre Marcelo fomenta a geração de indivíduos neuróticos que, com impulsos doentios, modelos de comportamento e os meios necessários, praticam a violência patológica.

Tiazinha, a mulher do padre

No conflito do Complexo de Édipo masculino, a mãe aparece como um objeto de desejo que é negado com a ameaça da castração. A personagem Tiazinha encarna a mãe (tia é quase mãe) do Complexo de Édipo, fazendo uma castração pela depilação. Esta depilação é uma castração porque o arrancar dos pêlos substitui o arrancar do pênis pela perversão sexual conhecida como fetichismo (no fetichismo, a atenção que deveria ser dirigida aos órgãos sexuais é dirigida a outras partes do corpo ou a objetos). O fetichismo da depilação promovida por Tiazinha é acompanhado ainda pela perversão do masoquismo, em que o prazer erótico é obtido pela submissão moral e pela dor física de um dos parceiros.

Assim, enquanto Padre Marcelo traz, para o Complexo de Édipo, uma solução baseada no homossexualismo e no voyeurismo, Tiazinha baseia sua solução no fetichismo e no sadomasoquismo.

A semelhança na essência e a dessemelhança na forma dos dois personagens poderia parecer estranha se não nos detivéssemos no fato de que educamos os meninos e as meninas de forma completamente antagônica. Para os meninos, é certo que tenham o desejo sexual. Só não podem dirigir este desejo para a mamãe… por isso Tiazinha é explícita em termos de sexualidade e nega sua identidade (inclusive com a máscara que faz parte de seu visual típico). Para as meninas, é certo que tenham ligações fortes com o papai (estas ligações, com menor intensidade, são permitidas aos meninos também). Só não podem ter o desejo sexual… por isso Padre Marcelo não precisa negar sua identidade (padre é pai), mas precisa esconder ao máximo sua sexualidade.

O controle social dos meios de comunicação

Com tudo o que foi exposto, torna-se mais uma vez evidente que é necessário um controle social dos meios de comunicação, principalmente das concessões públicas de TV. Não se questiona aqui o sagrado direito democrático de se expressar uma opinião. Mas se até esta opinião precisa respeitar certos limites (não pode ser racista, não pode insuflar atos criminosos), a desinformação de apelo violento ou sexual deve ser limitada.

Apenas para citar um exemplo óbvio demais de abuso, deve-se reconhecer que a família brasileira tem o direito de educar seus filhos e suas filhas sem que a quase totalidade das coreografias exibidas nas apresentações musicais da TV seja marcada pelo movimento de puxar os braços para trás e projetar os quadris para a frente, representando o coito e dizendo algo idiota como "Vem neném, neném, vem neném, neném vem, neném, neném vem!".

É preciso dar um basta nisso tudo antes que Tiazinha, "nossa" heroína infantil, resolva aparecer num programa vespertino fazendo a felação que insinuou chupando o dedo médio na capa da revista Playboy.

(*) Consultor de Tecnologia em RH, analista de sistemas, projetista
de banco de dados e webdesigner <hpm@hpm.net>,

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