Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Pagar por campanhas públicas na mídia é pecado, sim

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Luiz Martins (*)

De onde será que o presidente Fernando Henrique Cardoso tirou essa de que não é pecado pagar pela veiculação de campanhas de interesse público na mídia? E por acaso os canais de rádio e TV não são concessões públicas, o que deveria implicar contrapartidas mínimas para com o Estado e a Sociedade?

É pecado, sim. Pecado capital, pois privilegia um certo capitalismo, cuja tradição é receber de mãos beijadas canais de rádio e TV, cujas concessões valem por 10 e 15 anos, respectivamente, com renovação praticamente automática, sem que se faça uma única pergunta em torno do que tenha sido feito em matéria de responsabilidade social e de cidadania empresarial, ou, para ficar no que estabelece a Constituição, cumprido com as "finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas" dos meios de comunicação social (Art. 221, inciso I). Evidentemente, que há um retorno do qual não se fala, que é o apoio político. Ora, obter apoio político em troca de favores do Estado chama-se precisamente, no jargão sociológico, patrimonialismo.

O Estado brasileiro é patrimonialista desde os seus primórdios na matriz portuguesa, quando o rei, para governar, se via obrigado a repartir o poder, sob a forma de concessões. Já era assim ao tempo das capitanias hereditárias, continua assim com o chamado "coronelismo eletrônico" em que rádios e televisões são moeda política e não patrimônio social. Agora, vem o presidente FHC com mais esta de que são plantonistas "do contra" que não entendem o quanto é benéfico para o bem público gastar 500 milhões por ano em publicidade (em realidade R$ 300,7 milhões, em 2001, sem contar os gastos das estatais).

Ora, sr. presidente, o que está em jogo não é gastar em produção de campanhas públicas que, de fato, cumpram com finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas, e sim, o Estado pagar pela veiculação das mesmas campanhas em canais que são de concessão pública. Acaso a Presidência da República tem que pagar alguma coisa quando o presidente ou os seus ministros, justificadamente, convocam uma cadeia de rádio para falar à Nação? Acaso o Estado tem de pagar diariamente pela veiculação da Voz do Brasil? E por que tem de pagar quando o conteúdo das mensagens se constitue em apelos às famílias para que vacinem os seus filhos contra a pólio e o sarampo ou para que os pais compareçam à escola onde os filhos estudam? Por que o Estado brasileiro é distinguido internacionalmente por uma boa política de combate ao HIV, que inclui a distribuição gratuita do "coquetel", mas tem de pagar para que as emissoras de rádio e TV divulguem filmes de publicidade institucional?

A verdade é que no Brasil o Estado é confundido com o Governo, a partir do mal exemplo do próprio, que se utiliza da máquina do Estado em favor de sua sobrevivência política e do bem estar de suas alianças político-partidárias. Foi assim com Sarney, quando canais de rádio e TV entraram na negociação da prorrogação do mandato presidencial; foi assim com Collor, que logo no início de seu governo foi denunciado por contratar publicidade sem licitação, favorecendo agências que haviam trabalhado para a sua campanha eleitoral; mas se esperava que fosse diferente com Fernando Henrique Cardoso, um sociólogo tão esclarecido em matéria da importância da publicidade [transparência da vida pública] para a democracia, quanto Max Weber, Hanah Arendt, Norberto Bobbio, Habermas e seu amigo Alain Touraine. Lamentavelmente, no entanto, o que se vê é o Governo Federal, lado a lado com as corporações do álcool e do tabaco, no ranking dos maiores anunciantes, tal o volume de recursos despendidos em campanhas educativas e sanitárias. Lamentavelmente, o que se vê é o próprio presidente qualificando de opositores os que fazem crítica à relação incestuosa entre Governo e agências de propaganda e alinhando-os num só chavão, aquele com que se refere às pessoas "apegadas ao passado ou avessas à inovação".

O passado diz outra coisa, que os presidentes exigiam da mídia o cumprimento de um Acordo de Cavalheiros que remonta ao final do governo Costa e Silva, quando ficou acertado que as emissoras de rádio e televisão destinariam dez minutos diários de sua programação à publicidade institucional agendada pela Presidência da República. Tal acordo entrou em decadência já no governo Sarney, foi desprezado por Collor e utilizado apenas parcialmente por FHC, que obteve mídia gratuita para algumas campanhas dos ministérios da Saúde e da Educação. Os ministérios militares também nunca tiveram de pagar pelas suas convocações.

Havia no passado uma dualidade em matéria de "publicidade governamental", uma divisão entre "mídia gratuita" e "mídia paga". Chega-se agora ao primado do tudo pago, porém com descontos variados, de acordo com as categorias "publicidade de utilidade pública"; "publicidade legal"; "publicidade institucional"; e "publicidade mercadológica". O questionamento permanece. Com exceção da quarta, referente a estatais que atuam no mercado, qual a justificativa para que o Estado pague por veicular apelos, que em nada podem se confundir com propaganda ou promoção pessoal dos governantes? É paradoxal que o cidadão pague, via impostos, para ser informado, através de espaços que, apesar de concedidos pelo Estado, não são públicos. E esta é mais uma questão.

A Constituição Federal preconiza (Art. 223, caput) que compete ao Poder Executivo observar, no que se refere à radiodifusão (rádio e TV) a complementaridade entre os sistemas privado, público e estatal. Mais uma vez, o público ficou em desvantagem, ou melhor, não saiu do papel. O estatal, por sua vez, não deslancha, porque ele não tem merecido do Estado o mesmo carinho com que trata o segmento privado (concessionário). Quanto à mídia comunitária (estima-se, cerca de 10 mil rádios) esta, então, é criminalizada, tratada como clandestina ou pirata pelo Poder Público, embora não poucas repartições públicas se valham, gratuitamente, dessa rede para veiculação de spots e jingles sanitários. O Brasil precisa, em síntese, de uma Política Pública de Comunicação Social. Mas, logo se vê, esta é uma pauta para o próximo presidente, desde que ele não chegue ao poder tão amarrado pelos seus compromissos de campanha aos marqueteiros e aos magnatas da mídia que só enxergam o Estado como um rico anunciante.

(*) Jornalista e professor da Universidade de Brasília, é autor da pesquisa "Estado, Publicidade e Sociedade" e doutor em Sociologia (UnB/Universidade Nova de Lisboa).