Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

Palavras, palavras, palavras

O PRESIDENTE E A IMPRENSA

Muniz Sodré (*)

A um certo público brasileiro, não foi a proficiência em língua estrangeira nem a boa recepção do público local que mais provocaram admiração para com os discursos pronunciados em Paris e na ONU pelo presidente da República. Afinal, não custa muito mandar traduzir o texto escrito por assessores e depois lê-lo com a ênfase possível a quem entende o que está lendo (coisa não tão comum quanto possa parecer), especialmente quando se teve vida intelectual ou se morou fora do país por um tempo razoável, como é o caso de FHC.

A admiração, melhor, o espanto deveu-se mais à deslavada diferença entre o que o faz e o que diz o presidente da República. Expressões como "globalização solidária", "assimetria econômica terrorista" etc., nada têm a ver com a realidade neoliberal do governo praticado pelo antigo sociólogo e sua equipe, comprometidos com o que de pior oferece a globalização em curso e solidários apenas às diretivas que partem de organismos do império do Centro.

Basta mencionar o espanto, uma vez mais, que causou em círculos internacionais uma semana atrás, segundo a imprensa, a indignação do ministro Pedro Malan ante as sugestões (supostamente argentinas) de postergação das obrigações da dívida externa. No edifício neoliberal, a miséria do "andar de baixo" não indigna o de cima, solidário sem restrições a patamares mais elevados, globais.

Apesar disso, entretanto, produz-se, como na realidade midiática, uma espécie de cenário ético-político, onde palavras e imagens ganham um curso retórico livre, ao sabor do imaginário social, sem nenhum compromisso simbólico com a realidade histórica do país. Como nos pronunciamentos de candidatura política ou nas ficções televisas, pode-se dizer qualquer coisa, desde que não se fira a decência pública, e ninguém averiguará a realidade do dito. Os efeitos do discurso são puramente emocionais ou estéticos, sua finalidade esgota-se no aplauso.

Na verdade, isso sempre ocorreu com a retórica, técnica discursiva tão velha quanto a civilização ocidental. Mas com a mídia ou com o regime da comunicação generalizada, ampliou-se o fosso entre a palavra e realidade vivida. Dá-se na prática uma epifania banal, que advém do poder midiático de iluminar sedutoramente as coisas, de nomear, segundo os cânones da modernidade tecnológica e comercial.

Nomear, como bem se sabe, implica apropriar-se de algum modo daquilo que se nomeia, mas pode também implicar a própria criação daquilo de que fala, do mesmo modo que a observação de um fenômeno é capaz de modificar tanto o observado quanto o observador.

Paraíso glossológico

A iluminação midiática implica uma retórica que observa, dá nome e cria um ethos particular, compatível com a razão tecnomercadológica. Vale rever o aspecto retórico do conceito de ethos (imagem moral do orador), uma vez que a mídia funciona exatamente como o realizador do que Aristóteles (Arte Retórica, II, 1) designava como prova ética, isto é, a produção de um discurso eficaz (por espetáculo, persuasão, verossimilhança etc.) junto ao público. A prova patética (igualmente constante da retórica aristotélica e cujo principal efeito era a mobilização sensorial) é, na mídia, uma das dimensões estéticas dessa eficácia.

A prova ética que se generaliza entre a classe política e tecnoburocrática de hoje define-se cada vez mais pela prova patética praticada cotidianamente pela mídia, em que a imagem fascinante é o principal instrumento. Toda e qualquer imagem é sempre desconcertante, por situar-se a meio-caminho entre o concreto e o abstrato. É um princípio gerador de real ? mas o real do "quase": quase-presença, quase-mundo, quase-verdade.

Investida dos poderes de ubiqüidade correspondente ao efeito tecnológico de simultaneidade, instantaneidade e globalidade, a imagem se torna homóloga à atmosfera emocional mítico-religiosa e permite a interiorização psicológica de todo um mundo com valores prontos e estabelecidos. No caso da imagem midiática da contemporaneidade, trata-se do "mundo" do capital, um regime de poder orientado pela busca da riqueza abstrata, de riqueza em geral, expressa por dinheiro e valor de troca.

Mas o nome certo para certas coisas às vezes assusta. Por isso, é preciso "ex-nominar" as coisas, dando-lhes outros nomes, mais amenos, mais consoladores, como "globalização solidária" e quejandos. As imagens bem construídas de um cenário ético-político-humanista ajudam, e muito. Não terão nenhuma conseqüência real, não dizem respeito a realidade alguma, mas arrancam aplausos, como numa telenovela, ainda mais quando articuladas em francês ou em inglês. A Aliança Francesa e o IBEU são paraísos glossológicos da classe "mídia".