Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Para não falar de suicídio

TRABALHO & IDENTIDADE

Luciano Martins Costa (*)

Toma corpo no meio jornalístico, tendendo a ser considerada como fato consumado, a prática de transformar as redações em verdadeiros exércitos mercenários, com um número crescente de jornalistas sem vínculo empregatício. A angústia pela falta de novas ofertas de trabalho formal, produzida pelo encolhimento da mídia nacional nos últimos três anos, aliada à crise que tem causado o corte de empregos, conduz muitos jornalistas a considerar esse um fato definitivo, um "determinismo" do mercado. E as dificuldades inerentes ao negócio convencem muitos gestores, convenientemente, a tomar essa tendência como boa prática administrativa, ou, no mínimo, como contingência dos novos tempos, da globalização e outras circunstâncias que tudo explicam.

Essa visão "iluminista", que contamina o pensamento contemporâneo de gestão e tem posto a perder as melhores intenções em políticas públicas, é a mesma que, a partir de interpretações apressadas sobre o fenômeno da globalização, tem conduzido corporações tradicionais ao fim da linha. Trata-se de uma repetição do mal-entendido que levou muitas empresas a investimentos desastrados em tecnologia da informação, e se alinha no mesmo comboio de equívocos que convenceu empresas transnacionais a "desnacionalizar" suas administrações. Hoje se sabe que os consumidores globalizados estão se tornando mais interessantes por suas diferenças do que por suas similaridades, ressaltadas ou forçadas por estratégias homogêneas de comunicação. E se constata também que os regional managers ungidos para tutelar os dirigentes nacionais de empresas vivem de pouso em pouso, mal conseguindo distinguir os aeroportos que freqüentam, o que os transforma em completos ignorantes sobre a maioria dos mercados em que atuam, fazendo com que se comportem como focos de restrição e autores de perigosos equívocos estratégicos.

"Vestir a camisa"

Como costuma dizer o estrategista Oscar Motomura, as melhores práticas em gestão não vêm da gestão, mas da observação do mundo. Assim, a diversidade que a biologia nos ensina deve estar contemplada na empresa, bem como a convivência respeitosa entre os variados interesses que a compõem. Fundar uma empresa no pressuposto de que apenas o capital deve ter seus interesses reconhecidos e preservados é uma negação de leis naturais e o caminho mais curto para o fim do empreendimento, ensina Motomura.

Depois de bilhões de dólares lançados no lixo e muitas oportunidades de negócio perdidas, as transnacionais começam a rever seus conceitos de escala baseada na homogeneização de mercados. A diversidade humana impõe sua natureza e muitos gurus da gestão começam a desmentir algumas das premissas que fundamentaram seus best-sellers. Uma delas: empresas de sucesso padronizam seus procedimentos, o que induziu muitas delas a passar por cima de legislações trabalhistas e tradições até mesmo culturais de relacionamento entre fornecedores e clientes, exagerando na terceirização e impondo contratos de leão a antigos parceiros.

O resultado mais visível: as dificuldades econômicas dos três últimos anos revelaram uma diminuição na tolerância de fornecedores com relação a clientes em dificuldades, e muitas empresas de grande porte foram levadas a cartório por credores minúsculos, porém importantes na cadeia de suprimentos. Outra conseqüência: a quebra de confiança entre gestores e funcionários diminuiu a disposição para mudanças no ambiente corporativo, justamente quando as empresas mais precisavam de esforços de inovação.

Por trás do aparente benefício com a diminuição de custo, a tentação de alterar a relação entre empresa e funcionário para driblar as exigências da legislação trabalhista esconde um risco que precisa ser bem dimensionado: o perigo de se perder o vínculo de fidelidade que faz o funcionário se identificar com os valores da empresa. É aquilo que os gestores incensam como o commitment, o engajamento da força de trabalho, sem o qual nenhum projeto tem chance de dar certo.

Aquilo que chamamos de "vestir a camisa", no ambiente jornalístico, tem a ver com a existência de um projeto editorial claro, de um compromisso explícito com um modo de fazer jornalismo, que leva em consideração o conhecimento profundo do público-alvo e costuma ser encarado tão a sério pelos profissionais que chega a produzir cacoetes. Um repórter do Estado de S.Paulo, por exemplo, sempre foi claramente distinto de um colega da Folha ? no procedimento, nos modos e até mesmo no vocabulário ?, e isso sempre foi parte da identidade de cada um, refletindo e se refletindo no estilo do jornal.

O patrimônio maior

A equação que induz à formação de uma força de trabalho arregimentada à base de notas fiscais não fecha com essa característica mandatária do fazer jornalismo. São poucos os profissionais que, à força de um estilo muito peculiar e após muitos anos de experiência, se encaixam melhor no modelo de profissional liberal que a gestão por controle de custo quer impor. Um Juca Kfouri, um Paulo Kajuru, são grifes que cabem bem nesse modelo, mas a maioria dos jornalistas, aqueles que sustentam o noticiário de todo dia, precisa formar no complexo relacionamento que dá às redações a característica de verdadeiros times. Como numa orquestra ou numa banda de rock, não podemos todos ser solistas. E não há solista que sobreviva sem o apoio de uma boa "cozinha".

Se pega a moda de transformar todo mundo em "prestador de serviço", será inútil qualquer esforço por mais qualidade no produto jornalístico. A tendência à pasteurização só irá se agravar, reforçando no leitor a impressão de que todos os jornais são iguais e que a imprensa anda preguiçosa demais.

Nenhuma empresa vai sair da crise sem o concurso de todos seus participantes ? os chamados stakeholders. Ignorar essa evidência é repetir a arrogância que conduziu à situação atual. Talvez a formação de equipes "terceirizadas" caiba numa pequena publicação, segmentada, na qual os colaboradores trabalhem com informações técnicas ou muito específicas, mas basear a redação de um grande diário, ou uma revista semanal, numa relação que não inspira fidelidade, significa abdicar de desenvolver uma personalidade para a publicação. Se isso não soa a suicídio, estamos todos muito distantes da realidade.

O que já se vê, nas empresas que se valem intensamente de mão-de-obra sem vínculo, é a redução do senso crítico e o agravamento de uma tendência ao tecnicismo no trato com a notícia. Também é bastante claro que os jornalistas contratados passam a tratar seus colegas "pessoas jurídicas" como profissionais de segunda categoria, utilizando-os como meros preenchedores de conteúdo: o contratado vai a um almoço com uma fonte, conversa, reforça seu relacionamento, sem gastar o tempo tomando notas, e depois encomenda novo contato por meio do free-lancer para preencher dados. No final, "consolida", como se diz no jargão, e assina a reportagem. Eventualmente, "fulano de tal" é citado como colaborador.

Para jornalistas em começo de carreira, que ainda contam com apoio dos pais, a situação pode ser tolerável. Os mais maduros, porém, aqueles que já têm filhos e arcam com custos mais elevados, vêem cair no seu colo as despesas que tradicionalmente faziam parte do pacote mínimo de benefícios que a empresa concede. Observe-se que o pior cenário atinge exatamente aquele profissional em ascensão, que já tem experiência para assumir os temas mais complexos. Quando espera o reconhecimento por sua dedicação e tempo de serviço, recebe a notícia de que deverá arcar com os custos de seguro-saúde, aposentadoria e outros benefícios essenciais ao bem-estar e segurança de sua família.

Para determinado profissional, a interrupção do vínculo empregatício também pode significar a exclusão de uma "tribo" à qual se habituou, e que representa não apenas seu modo de ver a profissão, como tudo que disso resulta ? até mesmo suas expectativas de futuro. Para alguns, o afastamento desse ninho emocional pode representar a quebra de significados importantes, o fim do sentido que ele dá à existência.

E, para que os gestores não imaginem que a tendência é ponto pacífico, convém lembrar que os jornalistas vêm há muitos anos pagando pela incúria e incompetência de administradores e proprietários da mídia, que fazem da atual crise um buraco sem fim. Nem todos se conformam, nem todos desistem. Nesse cenário, não será difícil prever que os jornalistas comecem a se aproximar do governo petista ? que lhes deve, e muito ?, para deixar claro que, na hipótese de se concretizar a projetada ajuda do BNDES às empresas de comunicação, seja garantida a contrapartida que merecem os profissionais, em condições dignas de trabalho e em respeito aos seus direitos legais.

Não é para se ignorar as advertências feitas pelo governo de que a crise da mídia precisa ser analisada com muito critério. Para observadores do Planalto, a crise é fruto de má gestão ? e empresas empenhadas em produzir conteúdo de fonte nacional terão preferência sobre aquelas que importam enlatados e não geram emprego nem reflexões sobre a nacionalidade.

Alguém há de defender que também deverá haver distinção entre aquelas que respeitam seu maior patrimônio ? os jornalistas ? e aquelas que usam a crise para propor escandalosamente a supressão de direitos e a redução de vencimentos.

(*) Jornalista