Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Patrimônio engessado

BIODIVERSIDADE

Carlos Vogt (*)

I

Se se dissesse há alguns anos atrás que o nome do país em que vivemos veio de um recurso genético biopirateado, ou biogrilado, pelos portugueses, no século 21, às populações indígenas que aqui viviam, poucas pessoas, talvez, se lembrariam, num teste de associação rápida, do pau-brasil e do corante que dele se pretendia extrair, "industrialmente", para concorrer com aquele outro que abastecia, de Sumatra, as tecelagens da Europa.

É que não havia ainda emergido nem a consciência, nem tampouco a nomenclatura que lhe é simultânea, de que, em se tratando de biodiversidade, o que importa, de fato, não são tanto os recursos materiais, em si, mas sobretudo as informações genéticas neles contidas.

O Brasil, como se sabe é um dos líderes mundiais em diversidade biológica. O que é muito bom. Tanto pela riqueza da variedade da vida, o que deslumbrou viajantes e estudiosos, desde os primórdios do processo de ocidentalização cultural de nosso território, como pelo interesse comercial que essa mesma variedade despertou desde o início, atraindo aventureiros, exploradores e predadores. O que não é tão bom assim.

II

De algum modo essa dicotomia de interesses permanece e, agora, já desde há alguns anos, acirrada pelas características próprias do processo de globalização da economia.

De fato, a sociedade contemporânea, através de suas formas de produção, tende a enfatizar o processo de mensuração do conhecimento, estabelecendo-lhe valores comerciais, antes difíceis de imaginar.

O desenvolvimento da informática e das tecnologias da informação, de um modo geral, não só imprimiu velocidade e simultaneidade a dados, distâncias e acontecimentos em imagens, permitindo uma circulação do capital financeiro internacional, antes também desconhecido, como também trouxe uma concretude e uma materialidade às abstrações simbólicas de nosso universo cultural tal que vai se tornando cada vez mais difícil, para os habitantes ? mutantes, talvez fosse mais apropriado dizer ? dessas transformações, distinguir o mundo de suas representações e nelas ver-se a si mesmos representados.

Certamente, esses movimentos rápidos e fronteiriços das relações do homem com o mundo e nestas, do homem consigo mesmo e com seus (des)semelhantes têm muito a ver com as dificuldades para o estabelecimento de padrões éticos de conduta e de comportamento nas sociedades contemporâneas.

Para o conhecimento, como tive oportunidade de escrever em outras ocasiões, alguns desafios se põem, desde logo, no quadro dessa axiomática mundializada: o de sua produção, o de sua circulação e difusão, o de sua transformação em valor econômico, o de sua divulgação, que permite ter medida de sua relevância social, e o de seu valor como fundamento de riqueza cultural, isto é, o de sua gestão com responsabilidade ética e social.

No caso da biodiversidade brasileira e do patrimônio genético que ela encerra, esses desafios se apresentam emblemáticos, quer pela complexidade do fenômeno enquanto objeto de estudo de diferentes disciplinas e áreas do conhecimento, numa ponta, quer pelo potencial econômico das informações que dele podem ser extraídas visando inovações tecnológicas de enorme valor agregado e, conseqüentemente, de produtos comerciais fortemente competitivos e lucrativos nos mercados nacionais e internacionais, na outra ponta.

III

O Brasil, há muito, vem se preparando de modo adequado para cumprir as tarefas necessárias à produção da pesquisa e do ensino nessa área do conhecimento e, assim, cumprir com os grandes desafios que lhe são inerentes.

Instituições foram criadas, projetos foram implantados e desenvolvidos, linhas de financiamento foram estabelecidas com sistemática regularidade, pesquisadores foram formados, multiplicando nossa competência de estudo e de conhecimento, e programas ambiciosos, pioneiros e consistentes, como o Biota, da Fapesp, acabaram resultando, de forma feliz, desse esforço cultural paradigmático na América Latina.

Mas se o país se preparou academicamente e produziu resultados de reconhecida qualidade científica, o mesmo não ocorreu com o ritmo de desenvolvimento de nossa capacidade de transformação desse conhecimento em riqueza.

Depois que o Brasil passou, em 1994, a ser signatário do TRIPs (Trade-Related Intellectual Property Rights), incluindo-se, assim, no concerto das nações comprometidas com o reconhecimento e o respeito das regras e normas internacionais que regem a propriedade intelectual e as patentes, esse desequilíbrio entre as ciências e as tecnologias da biodiversidade tornou-se ainda mais dramático. De um lado, pela falta de cultura e de estrutura próprias da pesquisa voltada para aplicação com fins industriais e comerciais e, de outro, pela necessidade, tornada, então, ainda mais urgente, de legislar com competência, eficiência e eficácia para proteger o rico patrimônio genético do país.

No primeiro caso, esforços têm sido feitos e avanços já podem ser reconhecidos, embora o país seja ainda muito pouco competitivo, por exemplo, na indústria de fármacos, para a qual a nossa rica biodiversidade poderia ser uma fonte de riqueza econômica e social ímpar no mundo.

Aquilo que não temos conseguido nós próprios fazermos é, contudo, objeto da avidez inovativa dos mercados e, como temos hoje legislação específica para a proteção desse patrimônio, o fenômeno da biopirataria, ou da biogrilagem, como prefere Nuno Pires de Carvalho, chefe da seção de Recursos Genéticos, Biotecnologia e Conhecimentos Tradicionais Associados, da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), em Genebra, corre solto.

Isto é, corre preso, às vezes, como no caso dos "turistas alemães" Tino Hummel e Dirk Reinecke detidos no aeroporto de Manaus quando tentavam levar para Bancoc, na Tailândia, matrizes de vários peixes ornamentais, de comercialização proibida, em caixas de isopor, cobertas com um papel alumínio especial, num total de 280 peixes de 18 espécies diferentes.

Esses são os que foram pegos, mas há centenas que escapam e, ao fazê-lo, movimentam cerca de US$ 1 bilhão no país, deixando a ver navios ou a ver aviões, o país e inclusive as comunidades indígenas e as populações tradicionais que pela legislação teriam direito de participação nas patentes derivadas dos estudos e pesquisas desse patrimônio, se elas existissem e se os seus registros fossem feitos respeitando esses direitos.

IV

Para coibir a biopirataria ou a biogrilagem, as autoridades governamentais responsáveis tomaram medidas provisórias que, no espírito da cultura política paradoxal do país, vão permanecendo: o Decreto 3945, de 28 de setembro de 2001 as consubstancia, e a Resolução 001, de 8 de julho de 2002 do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), as reafirma.

A intenção é proteger o patrimônio genético nacional, regular a exploração dos recursos biológicos, fiscalizar a bioprospecção e, desse modo, oferecer condições reais para a justa distribuição dos benefícios advindos desses processos.

Acontece, porém, aqui, aquilo que, pelo vértice do paradoxo, costuma acontecer com as boas intenções reguladoras de muitos atos governamentais e legislativos: para impedir o pior, mata-se também o bom, por via das dúvidas.

Em outras palavras, como no caso das Agências Reguladoras, e da própria CTNBio ? Comissão Técnica Nacional de Biossegurança ?, que o governo atual parece pretender extinguir, ou esvaziar, menos por seus defeitos e mais por suas virtudes, também no caso da nossa biodiversidade a força protetora da legislação é tão poderosa que, antes de impedir a sua exploração clandestina, sufoca a possibilidade de seu conhecimento pelos cientistas brasileiros.

Para impedir o saque, a medida engessou a pesquisa. Daí o dramático paradoxo que levou inclusive os pesquisadores do Programa Biota Fapesp, reunidos na Universidade Federal de São Carlos para o I Workshop de Síntese do Programa, a encaminhar no dia 26/10/2002 ao Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN) uma moção de apelo ao novo governo no sentido de reconhecer, modificando no texto da legislação a redação necessária, a acaciana, mas estratégica e metodologicamente fundamental, distinção entre ciência básica e as tecnologias de sua eventual transformação em inovação e produtos de valor comercial.

No momento em que as autoridades constituídas do país parecem mover-se por um explícito desejo de mudança e de aperfeiçoamento de nossas instituições democráticas, respondendo legal e legitimamente a aspirações profundas e justas da população, é preciso incluir, com ênfase, entre os pontos de pauta dessas mudanças necessárias e desejadas, o urgente desengessamento da ciência e da pesquisa no Brasil.

(*) Presidente do Conselho Superior da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), vice-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e coordenador do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor), da Unicamp; este artigo foi publicado originalmente na edição n? 42 da revista eletrônica de jornalismo científico ComCiência <www.comciencia.br>