Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Paulo Sotero

COBERTURA DE GUERRA

"Imprensa pede explicações ao Pentágono", copyright O Estado de S. Paulo, 14/02/02

"Nos primeiros meses da guerra contra o terrorismo no Afeganistão, a grande imprensa dos EUA apoiou as ações militares americanas e contribuiu para consolidar o forte respaldo que a opinião pública deu e continua dando à estratégia escolhida pelo presidente George W. Bush para responder à agressão que o país sofreu no dia 11 de setembro. O ceticismo exagerado de algumas análises iniciais publicadas em revistas e jornais sobre as dificuldades que as forças americanas teriam para articular as diferentes facções da Aliança do Norte e remover o Taleban acabou desacreditando os raros críticos, depois que o fulminante sucesso das operações militares e a instalação de um governo provisório em Cabul comprovaram que eles estavam errados.

Mas, com a guerra entrando agora na sua fase mais difícil, na qual não há alvos óbvios e a caça aos terroristas torna-se uma busca de agulha em palheiro, os jornais voltaram a expor o que não vai bem na campanha americana e a fazer perguntas difíceis. Ontem, pela primeira vez desde os ataques de 11 de setembro, o Washington Post e o New York Times cobraram explicações da Casa Branca e do Pentágono sobre uma série de incidentes envolvendo alegações de maus-tratos de presos por soldados americanos e ações militares contra alvos errados que resultaram na morte de algumas dezenas de civis.

?Pode ser mesmo que todos esses perturbadores relatos sejam incorretos, em parte ou no todo, mas o que é mais perturbador no momento é a manifesta relutância do Pentágono de responder seriamente a elas?, afirmou o Post."

 

MONOPÓLIO BERLUSCONI

"Berlusconi pode controlar 90% das TVs", copyright Folha de S. Paulo, 17/02/02

"O governo italiano deveria nomear hoje o novo conselho administrativo da RAI (Rádio Televisão Italiana), formalidade que, normalmente, mereceria alguns minutos do noticiário televisivo. Neste ano, porém, a tarefa ganhou ares de novela, já que, quando os novos diretores da TV pública assumirem seus cargos, o primeiro-ministro Silvio Berlusconi passará a controlar 90% da televisão italiana.

A ?lottizzazione?, como os italianos chamam a partilha dos cargos, reacendeu os debates sobre o conflito de interesses do premiê/ magnata da mídia, provocando protestos dentro e fora da Itália, e gerou uma crise capaz até mesmo de determinar a dissolução da coalizão governante de centro-direita nas próximas eleições.

A nomeação, que tradicionalmente reflete a ordem política do país -três postos são ?sugeridos? aos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado (os responsáveis legais pela escolha dos nomes) por quem detém a maioria no Parlamento e os outros dois, pela oposição- acabou sendo adiada para terça-feira.

Em seu discurso de despedida, Roberto Zaccaria, cujo mandato como presidente da rede pública terminou ontem, tocou nos pontos centrais do problema.

?Nos últimos cinco anos, a RAI permaneceu independente do governo e dos grandes poderes econômicos do país?, disse. ?É utópico pensar em uma RAI equilibrada e imparcial em um país profundamente dividido. Quem quer imparcialidade quer algo correto, mas deve demonstrar primeiro ter dado espaço à diversidade.?

Ao mencionar a questão da imparcialidade, Zaccaria estava aludindo às críticas de Berlusconi, que costuma dizer que, das seis emissoras de TV nacionais, cinco (três da RAI) são ?hostis? a ele, a despeito de estudos mostrando que seu tempo no ar supera o de seu principal adversário político, Francesco Rutelli, líder da coalizão de centro-esquerda Oliveira.

A primeira alfinetada do ex-presidente da RAI, que diz respeito à independência da emissora, alude a uma questão ainda mais polêmica. De fato, a nomeação do conselho está sendo chamada por vários órgãos da imprensa italiana como a ?prova dos nove? para Berlusconi, que, desde que entrou para a política, no início dos anos 90, é obrigado a enfrentar acusações de conflito de interesses.

Ele é acionista majoritário da Mondadori, uma das maiores editoras italianas, e proprietário do mais importante grupo de televisão privada da Itália, o Mediaset, que tem três das seis principais emissoras do país: ao indicar quem deve dirigir a RAI, que tem as outras três, Berlusconi terá o controle, na prática, de cerca de 90% da televisão italiana.

A aproximação da data da nomeação do conselho administrativo da TV pública reacendeu o debate e gerou protestos na Itália -na última quinta-feira, centenas de professores universitários foram às ruas de Turim protestar contra o possível monopólio da mídia- e fora dela -a ONG Repórteres sem Fronteiras e a Federação Internacional dos Jornalistas divulgaram cartas-protesto, sendo que a última chegou a pedir a intervenção da União Européia.

Mas o problema não é novo. Foi, na verdade, um dos principais assuntos da campanha que levou Berlusconi ao poder, em maio do ano passado, apesar de não ter sido resolvido até hoje.

A centro-esquerda, que estava no poder até a ascensão do atual premiê, chegou a ser acusada de adiar a votação de uma lei sobre o assunto para poder usar a possibilidade de monopólio como arma na campanha contra Berlusconi.

Agora que detém a maioria parlamentar, a coalizão de centro-direita do premiê também não deve se apressar para resolver a questão. Berlusconi propôs a criação de um ?conselho de sábios? para monitorar os possíveis conflitos -uma solução que foi considerada insuficiente pela oposição.

?Foi decidido que a nomeação do conselho administrativo da RAI seria feita antes de o problema do conflito de interesses ser discutido no Parlamento?, disse à Folha Franco Pavoncello, professor de ciência política e diretor do campus em Roma da Universidade John Calbot. ?Mas o problema tem de ser resolvido de uma forma ou de outra: ou Berlusconi abre mão do controle de seus próprios meios de comunicação, o que é bastante improvável agora, ou há a privatização de pelo menos um dos três canais da RAI.?

Segundo Pavoncello, a pressão mais forte para a privatização da TV pública deverá vir da centro-esquerda, mas nem a oposição nem o governo parecem se preocupar muito com a questão agora, ocupados que estão com a distribuição dos cargos na RAI.

Rutelli afirmou anteontem que, caso os presidentes do Senado e da Câmara dos Deputados -responsáveis pela nomeação do conselho da RAI- não lhe dêem ?garantias? de que os cargos serão distribuídos de forma politicamente equilibrada e que o presidente será alguém ?suprapartidário?, a Oliveira ficará de fora e iniciará uma campanha de ?denúncia? contra a TV pública.

Os principais conflitos relativos à ?lottizzazione?, contudo, parecem estar ocorrendo dentro da própria coalizão no governo.

?Talvez, paradoxalmente, o impacto maior venha dos aliados de Berlusconi, e não da oposição. Eles já estão brigando?, afirmou Pavoncello. ?Os pós-fascistas da Aliança Nacional certamente querem ter um cargo na RAI: essa é a primeira vez na história em que eles têm a oportunidade de ter algum impacto na formulação cultural da televisão italiana, já que, no passado, até o desaparecimento da Democracia Cristã, a RAI era de centro-esquerda, porque o governo era de centro e a oposição era de esquerda.?

De fato, na última quinta-feira, quando uma suposta lista de nomes para o conselho administrativo da RAI começou a circular na imprensa italiana, o vice-primeiro-ministro da Itália e líder da Aliança Nacional, Gianfranco Fini, teve, segundo o jornal ?Corriere della Sera?, um ?ataque? ao telefone com Berlusconi ao saber que seu partido não ficaria com nenhuma cadeira no conselho.

?A Liga do Norte, obviamente, também quer uma cadeira para promover seu ?ideal? separatista?, afirma Pavoncello.

Umberto Bossi, líder da Liga, realmente ameaçou, na semana passada, se desligar da coalizão de Berlusconi, a Casa das Liberdades, caso seu partido não fosse contemplado na partilha, e conseguiu o que queria.

A tal lista de quinta-feira dava a presidência do conselho ao Força Itália, partido de Berlusconi -o nome mais cotado para o cargo era, aliás, o de Carlo Rossella, diretor da revista semanal ?Panorama?, da Mondadori- e os outros dois cargos reservados à oposição seriam da Liga do Norte e do CCD (Partido Democrata-cristão).

Mas a ira de Fini fez com que a lista fosse descartada e a nomeação, adiada para terça-feira. Se os presidentes da Câmara, Pier Ferdinando Casini, e do Senado, Marcello Pera, decidirem ceder à pressão e nomear alguém da Aliança Nacional para o conselho, é possível que um grupo que jamais esteve fora da RAI acabe sendo excluído. ?Parece que o CCD vai ficar de fora da RAI. Se isso ocorrer, será a primeira vez que os católicos não estarão representados direta e formalmente no conselho?, afirma Pavoncello."

"Ataques aumentam abismo entre artistas e o poder", copyright Folha de S. Paulo / Le Monde, 17/02/02

"Ataques repetidos à arte contemporânea, redução das verbas destinadas aos espetáculos ao vivo: após os conflitos em torno dos livros e do cinema, o abismo entre o governo de Silvio Berlusconi e o mundo da cultura se aprofunda.

O orçamento do Fundo Único de Espetáculos para 2002 foi reduzido em cerca de 3% em relação ao de 2001. O cineasta Franco Zefirelli, conselheiro do ministro da Cultura, defende a diminuição das subvenções ao teatro.

O subsecretário de Estado da Cultura e crítico de arte Vittorio Sgarbi, especialista na produção artística do século 16, manifesta desprezo pela contemporânea, qualificando-a como ?excrementícia?. Em janeiro, entrou em choque com o diretor do museu napolitano de Capodimonte, Nicola Spinosa, ao rejeitar seu projeto de expor obras contemporâneas.

?O governo parece pensar que o papel de um ministro da Cultura é atacar os artistas de seu país. Isso tudo me recorda os momentos mais tristes de nossa história?, afirma o pintor Pier Paolo Calzolari, cujos desenhos estão expostos na Galeria da França, em Paris. ?Sgarbi ficou conhecido por suas provocações, por posar para a publicidade e por apresentar um programa de bate-papo na televisão. Em seus primeiros meses no governo, ele continuou a vender telas: naturezas mortas, marinhas e paisagens?.

Esse estranho ministro integra um governo que tem sede de vingança contra o mundo da cultura, diz o diretor de cinema Romeo Castellucci, cuja companhia, a Societá Raffaello Sanzio, costuma ser convidada para os grandes festivais internacionais. ?Seu único projeto é conseguir o controle sobre a televisão, para poder controlar o imaginário das pessoas, especialmente as menos preparadas ou seja, as crianças e os idosos.? Para ele, o sistema Berlusconi produz ?um entorpecimento coletivo?, uma situação em que qualquer oposição ?se esborracha contra um muro de chiclete?.

Direita critica

Do lado oposto, o realizador Luca Barbereschi, diretor do Teatro Eliseo, em Roma, homem de direita e figura importante do teatro local, afirma que ?Franco Zefirelli deveria ficar calado?. Ele deplora o fato de a direita italiana tentar seguir o modelo americano: ?Querer que os bancos invistam em arte é estupidez pura?, afirma.

A coreógrafa contemporânea Monica Casadei, radicada em Parma, acaba de apresentar um trabalho intitulado ?Mayday?, termo que, quando usado no mar, designa o último sinal emitido por uma embarcação que está prestes a afundar. O espetáculo, ela explica, trata da ?raiva da impotência: na Itália, neste momento, ninguém faz nada diante da catástrofe?. Depois de passar algum tempo vivendo no exterior, ela retornou ao país em 1998.

?O novo governo de esquerda, na época, era muito europeu. Muitos estudantes retornaram do exterior. Eu sentia orgulho por ter voltado para tomar parte no renascimento. Mas então a esquerda se dividiu, e ninguém mais se preocupou com a cultura?, diz.

Nos meios artísticos, todos parecem concordar com o cineasta Nanni Moretti, que atribuiu a vitória de Berlusconi à falta de união da esquerda. E o mundo da cultura -98% de esquerda, segundo Monique Veaute, diretora artística do Festival Romaeuropa- não espera nada da direita.

?O caso do Capodimonte se enquadra na lógica das coisas?, diz o pintor Pizzi Canella. ?Como todos seus líderes saíram do mundo financeiro e da administração, a direita não sonha, não tem imaginação. Esperava-se que a esquerda fosse diferente. Ela mostrou que não. Os artistas estão sós.?

Amargurados, os artistas sentem que a crise é profunda. ?Não acredito que a Itália esteja se tornando fascista, mas estamos todos por conta própria. Antigamente, num contexto como este, os artistas teriam optado por emigrar. Hoje, eles permanecem no país e lançam debates?, observa Monica Veaute.

Os problemas da vida artística italiana são trazidos à luz: nas últimas décadas, apenas o patrimônio histórico e cultural e a ópera despertaram o interesse dos governos. Metade do orçamento de cultura é gasto com a ópera e seus 12 teatros especializados.

Os criadores de hoje vivem da exportação. Mesmo os artistas plásticos mais cotados praticamente não vendem na Itália, já que os museus públicos não compram obras contemporâneas. Na área da dança e do teatro, as companhias mais criativas sobrevivem graças às turnês e aos festivais internacionais. ?Trabalhamos mais no exterior do que na Itália?, explica Romeo Castellucci, ?porque muito poucas salas na Itália acolhem o teatro novo. Havia o Teatro Stabile, dirigido por Mario Martone, ou a Bienal de Veneza, graças ao diretor Giorgio Barbario Corsetti. Depois da saída deles, não houve mais espaço de difusão para essa criação.?

A falta de apoio à arte contemporânea prejudica sobretudo o público italiano, afirma Pizzi Canella. Os artistas vão continuar a se virar de alguma maneira, como ele faz. Mas o público não terá mais incentivo para frequentar os museus, ver as exposições e, menos ainda, para descobrir a arte de nossos tempos, já que a maior parte dessas obras estará no exterior. ?Quanto aos artistas, continuamos a ter nossa arte, nossa linguagem secreta, na qual nos compreendemos e nos comunicamos?, afirma. ?São o governo e os políticos que serão prejudicados. Vale lembrar que bastaram algumas palavrinhas de Nanni Moretti [que atacou a liderança da oposição durante um comício da esquerda há duas semanas? para que o debate público explodisse.?

Manifestando desconfiança em relação a todos os partidos políticos, tanto de esquerda quanto de direita, os artistas reivindicam sua criação como ato de resistência. ?A melhor maneira de nos opormos ao que está aí é trabalhar, criar espetáculos, montar exposições?, diz Romeo Castellucci. ?Produzir reflexão e criar espírito de comunidade são as armas mais eficazes contra esse governo, que nada trouxe para a população senão um entorpecimento generalizado e uma solidão enorme.? (Tradução de Clara Allain)"