Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Pernas curtas (*)


L.N.

Coluna publicada em 5 de outubro:

 

“O compromisso fundamental do jornalista é com a verdade dos fatos, e seu trabalho se pauta pela precisa apuração dos acontecimentos e sua correta divulgação “

Código de Ética do Jornalista, artigo 7?

Domingo, 27 de setembro. Manchete do O Povo afirmava: “Políticos dominam 45% das rádios do Interior”. O jornal trazia uma lista de 36 emissoras que estariam nas mãos de políticos ou de parentes de políticos. Naquele mesmo dia, o Ombudsman começou a receber uma avalanche de reclamações. A reportagem estava cheia de buracos: nomes trocados, graus de parentesco indicados de modo incorreto, citação de pessoas supostamente envolvidas sem a devida comprovação.

A primeira reclamação partiu da jornalista Ângela Borges, uma das sócias da RCN, emissora que havia sido citada pelo O Povo como sendo oficialmente de propriedade do senador Sérgio Machado. Logo a partir dessa primeira reclamação, a editora de Política do O Povo , Débora Cronemberger, ligou para o repórter Lauriberto Braga, autor da matéria.

O repórter tranqüilizou a editora, dizendo ter em mãos toda a documentação para comprovar que a emissora, na verdade, pertencia ao senador. Mais tarde, orientado a trazer tais documentos à Redação, o repórter disse que havia “cometido um equívoco”. Não havia documento nenhum.

Na segunda-feira, quando o volume de reclamações contra a matéria crescera, o repórter Lauriberto Braga não apareceu na Redação do O Povo, contrariando assim determinação expressa da subeditora de Política, Aletéia Patrícia. Telefonemas e recados deixados na casa dele também não tiveram retorno. À noite, o repórter deixou um bilhete na portaria do jornal, endereçado à editora. Dizia que viria no dia seguinte para explicar-se à Redação. Mas, no bilhete, pedia para ser demitido.

Na terça-feira, Lauriberto novamente não procurou a Redação para oferecer suas explicações. Enquanto isso, o caso só se complicava. Naquele dia, o jornal publicou matéria em que o coordenador de produção da RCN, Paulo Roberto, negava ter dado qualquer entrevista sobre o assunto. A reportagem de domingo havia citado o radialista como uma das fontes, inclusive reproduzindo declarações dele, entre aspas. Paulo Roberto sustentou que nunca teria falado com Lauriberto.

É comum que fontes dêem declarações a jornalistas, arrependam-se e, logo depois, voltem atrás no que disseram. No entanto, havia precedentes contra o repórter. Há cerca de dois meses, fui procurado pelo coordenador de Educação do Município, Pedro Albuquerque, que reclamara de uma matéria que atribuía declarações a ele, também entre aspas.

Albuquerque afirmou não ter sido entrevistado pelo O Povo sobre o assunto. A matéria também havia sido escrita por Lauriberto Braga.

Repórter falou ao ombudsman

Depois de várias tentativas, consegui falar com o repórter na noite de terça-feira. Pelo telefone, de casa, ele reafirmou que havia entrevistado o radialista Paulo Roberto, da RCN, em maio, quando iniciou a apuração da reportagem. Lembrei-lhe do caso anterior, com Pedro Albuquerque. O repórter alegou que, naquela época, “talvez alguém do gabinete tivesse se passado por Albuquerque, já que a entrevista foi pelo telefone”. Nenhuma das duas entrevistas foi gravada pelo repórter.

Paulo Roberto e Pedro Albuquerque continuam afirmando que não foram ouvidos pelo O Povo. Na conversa com o Ombudsman, o repórter reconheceu que não tomou o cuidado de checar as informações antes de entregar a matéria à editora, embora houvesse dado garantias a ela nesse sentido. Também reconheceu que não possuía mais qualquer documento para comprovar os dados contidos na reportagem, apesar de ter afirmado o contrário à editora. Alertei o repórter para a gravidade da situação. Procurei convencer-lhe de que a melhor coisa a fazer era apresentar-se à Chefia de Redação, para explicar-se sobre o caso. Em resposta, Lauriberto afirmou que iria ao jornal na quarta-feira.

Novamente, não apareceu. O jornal deu início ao processo de demissão do repórter e encaminhou ao Sindicato dos Jornalistas do Ceará um pedido de abertura de processo disciplinar na Comissão de Ética do Sindicato. Na quinta-feira, O Povo pediu desculpas publicamente aos leitores e republicou a lista das emissoras. Desde terça-feira, o jornal havia colocado dois repórteres para checar novamente as informações. Das 36 rádios relacionadas, apenas 18 tiveram o nome de seus proprietários citados corretamente na matéria original.

Mais do que simples negligência

O jornal é responsável por tudo aquilo que publica. Há uma responsabilidade sucessiva em relação ao que é veiculado na imprensa: para sair das mãos do repórter e chegar à manchete do jornal, uma matéria passa antes pelo crivo do editor e, em seguida, da Chefia de Redação. É o editor e, em última análise, o próprio jornal quem responde pelas conseqüências do que é publicado. A editora de Política do O Povo , Débora Cronemberger, reconheceu à Chefia de Redação e ao Ombudsman que errou ao confiar integralmente no repórter ? que por sua vez havia garantido, até o último momento, estar de posse de toda a documentação para referendar a matéria. Mesmo quando os erros começaram a aparecer, o repórter continuou sustentando que possuía tais documentos, que simplesmente não existiam. Infelizmente, isso não é tudo: na terça-feira, quando ainda estava sendo procurado pela Redação para dar suas explicações sobre o caso, Lauriberto teria ido ao jornal no início da manhã e, sem falar com ninguém, falsificado a assinatura da editora. Forjou uma autorização e saiu no carro de reportagem para fazer um trabalho de interesse particular.

Na quinta-feira, pelo telefone, Lauriberto confessou que havia falsificado a assinatura de Débora Cronemberger, embora horas antes houvesse desmentido ao Ombudsman tal acusação. A Comissão de Ética do Sindicato dos Jornalistas terá nas mãos um caso muito mais grave do que o de uma simples negligência profissional  ou de uma imprecisão jornalística.

Procedimentos mais rigorosos

As incorreções contidas na matéria publicada pelo O Povo no domingo devem nos servir como advertência. O caso, é claro, reforça os cuidados que nós jornalistas devemos tomar durante a apuração de matérias: checar minuciosamente as informações, guardar anotações, anotar horários das ligações telefônicas realizadas, gravar e conservar as gravações de toda e qualquer entrevista que dê margens para discussões e polêmicas posteriores.

Mas, principalmente, o caso revelou a necessidade de a Chefia de Redação do O Povo exigir de si mesma critérios e procedimentos mais amplos ? e bem mais rigorosos ? para a checagem prévia das informações que o jornal publica diariamente. Afinal, através de uma manchete recheada de incorreções e impropriedades, abrimos o flanco e nos expusemos perigosamente.

O pedido público de desculpas, feito pelo O Povo na edição de quinta-feira, deve ser portanto apenas a ponta de um processo, que envolveria a revisão do próprio fluxo de trabalho e do acompanhamento sistemático das pautas na Redação. Mais do que nunca, os leitores precisam estar absolutamente seguros de que a imprensa possui filtros e mecanismos internos capazes de distinguir, previamente, o bom do mau jornalismo.

(*) Copyright O Povo, 5/10/98.