Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Pierre Lévy e a sociedade ciberdemocrática

INTELIGÊNCIA COLETIVA

Raphael Perret (*)

O que vem à sua mente ao ler a expressão "inteligência coletiva"? Se a resposta foi algo parecido com um cérebro gigante, capaz de tomar decisões a partir do conhecimento adquirido e compartilhado por diversas pessoas, não está muito distante da teoria do pesquisador e escritor francês Pierre Lévy. Trata-se, sem dúvida, de uma interpretação peculiar. Mas, simbolicamente, é isso mesmo.

Lévy esteve na quinta-feira, 29 de agosto, em São Paulo, no Sesc da Vila Mariana, para uma conferência sobre as inteligências coletivas, sua principal área de estudo na Universidade de Ottawa, no Canadá. O autor de Cibercultura e O que é o virtual se sentiu em casa. "Tenho um passaporte francês, autorização para viver no Canadá e um coração brasileiro. Já aproveitei minhas estadias aqui para lançar temas que antes nunca havia discutido", confessou.

Inflado o ego da platéia, o franco-canadense-brasileiro foi mais direto ao assunto. Para ele, a inteligência coletiva (IC) é, basicamente, a partilha de funções cognitivas, como a memória, a percepção e o aprendizado. "Elas podem ser compartilhadas mais eficientemente quando aumentadas e transformadas por sistemas técnicos e externos ao organismo humano", explicou Lévy, referindo-se aos meios de comunicação e à internet.

O escritor deixou claro, porém, que a IC não é só isso: "Ela só progride quando há cooperação e competição ao mesmo tempo". Para exemplificar, Lévy citou a comunidade científica, capaz de trocar idéias (= cooperar) porque tem a liberdade de confrontar pensamentos opostos (= competir) e, assim, gerar conhecimento. "É do equilíbrio entre a cooperação e a competição que nasce a IC", afirmou, deixando claro que não são apenas os cientistas que utilizam esse novo conceito: "As empresas necessitam cada vez mais de empregados que precisam lançar idéias e resolver questões coletivamente. As tecnologias atuais permitem isso".

É assim que nasce a IC. Seria o objeto de estudo de Lévy um conceito novo, inexistente no período pré-internet? Segundo o pesquisador, não. A IC desenvolveu-se à medida que a linguagem evoluiu. A disseminação do conhecimento acompanhou a difusão das idéias nos discursos, na escrita ("posso, hoje, ler Platão, mesmo que ele tenha escrito uma obra há mais de dois mil anos") e na imprensa ("quanto mais os meios de comunicação se aperfeiçoam, mais ganha a IC"). Hoje, a era é diferente. E inédita. "O mundo das idéias é o ciberespaço, que permite a interconexão e, portanto, a ubiqüidade. Ainda não conhecíamos essa situação", resumiu.

O escritor jura que sua teoria não nasceu por acaso, e que ela não é fruto exclusivo de seus estudos. Ele apenas tenta adaptar a IC à atualidade social e tecnológica. De fato, a pesquisa de Lévy baseia-se em tríades inspiradas na conexão tripla entre o "signo, a coisa representada e a cognição produzida na mente", definida pelo semiólogo americano Charles Sanders Peirce.

Nova etapa da evolução cultural

Um exemplo? Para Lévy, a IC pode ser dividida em inteligência técnica, conceitual e emocional. A primeira corresponde à inteligência que lida com o mundo concreto e dos objetos, como a engenharia (coisa). A seguinte relaciona-se ao conhecimento abstrato e que não incide sobre a materialidade física, como as artes e a matemática (signo). A última, por sua vez, representa a relação entre os seres humanos e o grau de paixão, confiança e sinceridade que a envolve, e tem a ver com o direito, a ética e a moral (cognição). A melhor ilustração da tríade de Peirce fica por conta da "economia da informação" descrita por Lévy. Segundo ele, no mundo atual as idéias são o capital mais importante, e que só pode ser adquirido quando as pessoas pensam em conjunto. Para isso, é necessária a produção de três capitais:

1) O técnico, que vai dar suporte estrutural à construção das idéias e pode ser exemplificado pelas estradas, os prédios, os meios de comunicação (coisa);

2) O cultural, mais abstrato, representado pelo conhecimento registrado em livros, enciclopédias, na world wide web (signo);

3) O social, que corresponde ao vínculo entre as pessoas e ao grau de cooperação entre elas (cognição).

O capital técnico gera as condições necessárias para a disseminação dos capitais cultural e social que, por sua vez, criam o capital intelectual, ou seja, todas as idéias inventadas e depreendidas pela população e que, uma vez expostas, passam ao domínio público. Esse capital, enfim, é o núcleo de toda a inteligência coletiva.

Lévy afirma que estamos apenas no início de uma nova etapa da evolução cultural. "A que tipo de civilização esse ambiente ecossistêmico de idéias vai nos levar?", provocou. Antes que o alertassem de que apenas 8% dos brasileiros têm acesso à internet ele deu sua opinião: "É claro que estamos longe do ideal, mas o índice de conexão no Brasil é notável. Não podemos esquecer que a escrita foi inventada há cerca de três mil anos, o alfabeto há mil, e não é a totalidade do mundo que sabe ler e escrever".

TV digital e comunidade

Enfim, a teoria do pesquisador pode ser resumida na sua chamada "ecologia das idéias", isto é, a relação bidirecional ? e algo darwiniana ? entre a população e as idéias. Se as pessoas (não) ajudam a reprodução de conhecimento, este lhe será totalmente (des)favorável. De outro modo, se as idéias (des)favoráveis são mantidas e disseminadas, a população (não) se reproduz. O papel da internet é fundamental para o funcionamento desse sistema. "O ciberespaço é a principal fonte para a criação coletiva de idéias, de forma que elas sejam usadas para o bem de todos, por meio da cooperação intelectual", concluiu Lévy, após 90 minutos de palestra.

A conexão cada vez mais densa entre os indivíduos realmente contribui para ações coletivas. O próprio Lévy dá exemplos em seu novo livro, Cyberdémocratie, de sites governamentais que se aproveitam da facilidade de comunicação com a população para debater temas relevantes para toda a sociedade. O crescente uso de ferramentas de groupware (tecnologias que auxiliam o trabalho cooperativo), que vão do prosaico correio eletrônico a sofisticados gerenciadores de workflow, também demonstra uma convergência necessária para a inteligência coletiva.

Mas você deve estar se perguntando: o que isso tem, afinal, a ver com imprensa? Tudo. O impacto da internet e do desenvolvimento das telecomunicações foi fundamental para a evolução e a modificação dos formatos da mídia de uns tempos para cá.

Por exemplo, há muito já se fala em interação entre o telespectador e a televisão. É óbvio que optar entre fulano e sicrano para sair do Big Brother Brasil não representa um avanço para o cidadão. Mas o fato mostra que é possível atrair, pela telinha, as pessoas a opinarem mais sobre questões sérias, que interessem realmente à comunidade. Quem sabe com a TV digital essa situação não se torna mais clara?

Sociedade planejada e pensada

Os weblogs (sites cujo conteúdo pode ser publicado facilmente pelo usuário) também simbolizam um caminho. Antes uma febre modista, hoje essa ferramenta é encarada com mais seriedade, sendo muito utilizada por jornalistas e órgãos de comunicação do mundo todo (ver uma boa lista em <www.cyberjournalist.net/cyberjournalists.html>). Uma das características marcantes dos weblogs é a oportunidade de captar comentários dos visitantes, facilitando o debate sobre determinados temas. Esse aspecto ganhou tamanha importância que já tem gente substituindo os já tradicionais fóruns de discussão por weblogs, como o portal americano MSNBC.com.

A possibilidade de uma comunicação mais direta entre o jornalista e o leitor/ouvinte/telespectador está próxima da realidade e representa um passo adiante na construção do sistema de troca de conhecimento previsto por Pierre Lévy. Entretanto, há muito ainda o que pensar. Muitas outras questões polêmicas estão diretamente ligadas à inteligência coletiva: direitos autorais, software livre, educação a distância e jornalismo online, por exemplo. Não se pode resumir um estudo tão amplo a alguns triângulos e tentar enquadrar os tópicos da pesquisa em cada um dos vértices. Essa exegese merece aprofundamento.

E um dos assuntos que podem ser estudados com mais afinco é exatamente o papel da imprensa e sua contribuição para a consolidação da inteligência coletiva. À primeira vista, bastava que a mídia, uma vez democratizada, oferecesse mais acesso à informação a quem não tem, aperfeiçoando individualmente os conhecimentos.

Mas por que não ir além? Os exemplos da TV interativa e dos weblogs são apenas o tiro de largada. A democratização dos meios de comunicação, se alcançada nos minutos seguintes da corrida, dá fôlego. A proliferação de rádios e TVs comunitárias mata a sede. Em seguida, é importante buscar o auxílio de ferramentas de groupware e o uso bem planejado e correto da internet como estrutura de apoio à disseminação de conhecimento. Assim, o principal obstáculo da corrida é a falta de empenho de cada um. E a chegada, enfim, oferecerá a nós um prêmio gratificante: uma sociedade mais bem planejada e, acima de tudo, mais pensada.

(*) Jornalista, mestrando em Sistemas de Informação pelo NCE-UFRJ, editor do Tá na Tela <http://tanatela.blogspot.com>, weblog sobre comunicação na internet, e co-editor do Ponto JOL <www.jornalistasdaweb.com.br/blog>, weblog sobre jornalismo online."