Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Pinochet, escrúpulos e escritos

José Antonio Palhano (*)

“Sua prisão viola a soberania do Chile, que
encontrou numa solução de compromisso a
maneira de superar o trauma provocado por uma
ditadura que um terço dos chilenos, ainda hoje, endossa.”

 

A

frase acima, de autoria de Otavio Frias Filho (Pinochet encarcerado, Folha, 26/11), suplica por uma reflexão mais profunda. Não parece sensato, a esta altura, falar em soberania – muito menos em eficácia – no contexto de uma nação em que o processo de redemocratização evoluiu sob a batuta dominadora do ditador que o precedeu. Que através de infame soberba esnobou a noção de anistia, optando por subjugar a todos através da imposição da sua imunidade particular. Uma democracia que, ainda nas dores da sua ressurreição, “inventa” um cargo de senador vitalício para o tirano que a revogou anteriormente com o sangue dos seus irmãos, vem ao mundo (ou retorna) congenitamente desmoralizada. Assim, não se pode falar em superação de trauma, como sugere o articulista. O dito cujo persiste vivíssimo, algo cristalino que contradiz o autor logo adiante, no final da mesma frase: “…trauma provocado por uma ditadura que um terço dos chilenos, ainda hoje, endossa”.

Só o danado deste terço tem uma força terrível, bem mais que a faculdade de perenizar traumas. É capaz também de provocar abalos institucionais cuja intensidade lembra os ventos brabos que vez ou outra açoitam o Caribe. Desse modo, invocar “soluções de compromisso” no sentido de reforçar uma suposta soberania do Chile não leva a lugar nenhum, pela simples razão de que tais soluções jamais se legitimaram como tal. Ilustrando: seria cômica, não fosse trágica, a continuada exposição do presidente chileno na televisão, tentando pateticamente “defender” Pinochet. Trata-se de algo humanamente inassimilável, principalmente para milhares de cidadãos chilenos. Como ao presidente não restava outra alternativa, ao menos na nobre intenção de prestar reverência à liturgia do cargo, criou-se uma situação exuberantemente afeita ao jeito latino de ser. Algo assim entre o tal realismo fantástico e o samba do crioulo doido.

O que só aponta, dolorosamente, para a constatação segundo a qual a ditadura chilena ainda não acabou. Está engasgada na goela do povo chileno. Ou imprensada entre dois terços para cá e um terço para lá, como escreve Otavio Frias Filho. O qual, talvez um tanto assustado, trata de fazer alguns reparos (ou seriam advertências?) à sua própria colocação, segundo a qual o processo contra Pinochet significa uma grande vitória para a campanha internacional pelos direitos humanos, contida no primeiro parágrafo. À guisa de um inconveniente freio de mão, sinaliza para a inexeqüibilidade do encarceramento de um líder chinês. Ora, se estamos a falar de grandes vitórias em campanhas por direitos humanos, matematicamente estamos também desconsiderando os orientais. Até aqui, a geopolítica vigente não permitiu sequer míseras tentativas na direção de uniformizar conceitos assim tão sensíveis entre o Ocidente e o Oriente. Pode parecer cruel, mas é apenas real. Afinal, lá se mutilam meninas impúberes com intenção supostamente igual à que aqui se vacinam crianças contra vírus malvados. Na maior felicidade.

O que importa a nós, ocidentais, é que a barata da hora chama-se Augusto Pinochet Ugarte. E que deve ser prontamente pisada (ou caçada a vassouradas). Sacar de atenuantes em função da existência de outros tantos tiranos nos mais variados pedaços do planeta carece de substância. Não se pode imaginar uma freira francesa, americana ou baiana que, à frente de um imenso batalhão de crianças barrigudas que agonizam de fome num desses infernos africanos, recuse-se a alimentar algumas, ou até umazinha só, sob a alegação de que não adianta nada, pois outras continuariam a morrer feito moscas. A pobre da madre, se posta em semelhante situação, na certa atearia fogo às vestes.

 


Isak Bejzman

 

P

or formação acredito numa ciência chamada psicanálise, que ensina sobre a existência de um inconsciente no ser humano, e que muitas vezes este inconsciente comanda silenciosamente a conduta do indivíduo. Nesse mundo interno do ser humano não existe neutralidade. Sou judeu, e quando um judeu escreve sobre nazismo a neutralidade se torna mais difícil. Portanto, meu texto, por mais objetivo que eu pretenda ser, sempre estará eivado de um certo nível de paixão.

Hoje, 23 de novembro de 1998, os três jornais mais importantes de Porto Alegre apresentaram na primeira página as seguintes manchetes: Correio do Povo: “Barros e Resende são recebidos por FHC”; Jornal do Comércio: “CNA registra queda de 10% – Agropecuária é o único setor superavitário na balança”; Zero Hora: “Ministro pede demissão a FH”.

Na página 52, na Geral, o Zero Hora traz notícia originária da Casa Zero Hora/Novo Hamburgo, assinada pelo jornalista Itamar Pelizzaro, com o seguinte texto:

“Vale dos Sinos – Bandeira nazista em Nova Hartz – Suástica foi instalada numa torre de 90 metros de altura na madrugada de sábado”

Nova Hartz – Um dos ícones do genocídio de 6 milhões de judeus na II Guerra Mundial despertou atenção durante o final de semana no alto de uma torre no centro de Nova Hartz., município do Vale do Sinos. A bandeira nazista foi instalada na madrugada de Sábado – um dia depois da comemoração do Dia Nacional da Consciência Negra – a 90 metros de altura, na torre da CRT (Cia. Riograndense de Telecomunicações). O símbolo do movimento liderado pelo ditador Adolf Hitler monopolizou as conversas dos 12 mil habitantes do município, a 70 quilômetros de Porto Alegre, colonizado por alemães a partir de 1854.

Entre risos e indagações, o comerciante Joel José Wagner, 29 anos, observou que a bandeira foi feita sob medida para ser colocada no alto da torre metálica, cujo acesso é dificultado por uma cerca de tela e arame farpado. O bancário Marco Rech, 34 anos, disse que não lembra de incidente que evidenciasse segregação racial na cidade.

Quem escalou a torre o fez depois das 3h de sábado. Até aquele horário, o empresário Júlio Paulo Souza Britzk, 27 anos, estava na rua , em uma festa com amigos, e não percebeu movimento no local, iluminado apenas no ponto mais elevado. O secretário de Agricultura do município, Claurício Hagen, que de seu sítio, a 2,5 quilômetros do centro da cidade, avista a bandeira, acredita tratar-se de traquinagem de adolescente. Essa é a mesma impressão do prefeito Edson Trindade, que estava viajando no fim de semana e retornou ontem à noite à cidade.

– Creio que é uma brincadeira isolada e de mau gosto. A história da comunidade, que tem forte ascendência alemã, mostra que nunca houve por aqui qualquer manifestação extremista de simpatia a movimentos fascistas – comentou Trindade, que ontem tentava armar uma operação para retirar a bandeira.

Informada sobre a presença da bandeira, a escrivã judicial Maria Eloísa Santos, do Fórum de Sapiranga, manteve contato com o juiz Alexandre Kosby Boeira. Conforme ela, o Judiciário não recebeu comunicação formal do ato, o que impediria à Justiça determinar o recolhimento. Ela garantiu que o plantonista da delegacia de Policia Civil de Nova Hartz teria autoridade para retirar a flâmula e registrar a ocorrência. O policial de plantão na DP informou que o registro deveria ser feito pela CRT. A assessoria da empresa não conseguiu localizar o responsável pela área.

Irreverência juvenil ou não, a bandeira em um local de fácil visualização dá destaque a seu artífice, um dos maiores criminosos da História. Hitler chegou ao poder em 1933, em uma Alemanha fragilizada. O ditador prometia recuperar o orgulho perdido na I Guerra Mundial. A II Guerra se estendeu de 1939 a 1945,, e a Alemanha não obteve êxito. Mesmo derrotada, a ideologia nazista resiste, com grupos radicais como Skinheads e White Power.

Quem colocou a bandeira na torre da CRT de Nova Hartz pode ser enquadrado na Lei 7.716, de 1989, que pune a difusão de símbolos racistas, como a suástica. A pena varia de dois a cinco anos de prisão.”

O Correio do Povo, na página 23, Serviços/polícia, numa pequena notícia de fundo cinzento com título em negrito, “Bandeira nazista em torre da CRT”, informava:

Uma bandeira vermelha com a cruz suástica – símbolo do nazismo – foi hasteada ontem no alto de uma torre da CRT no município de Nova Hartz, distante 80 quilômetros da capital. Conforme a Brigada Militar do município, ainda não há suspeitos da autoria do fato. A torre, de cerca de 30 metros, está localizada na Rua Guilherme Albino Müller, no centro de Nova Hartz.

A polícia acredita que ela foi escalada entre 2h e 3h da madrugada de domingo. O delito foi comunicado à BM por populares. A bandeira deve ficar no alto da torre até que a CRT oriente sua retirada, o que deve ocorrer hoje.

Quanto ao Jornal do Comércio, procurei, procurei, e não encontrei nada. Talvez eu tenha procurado mal; e se assim foi, mil perdões.

Duas notícias sobre o mesmo fato. Uma, detalhada. Outra, sintética, entendida como caso de polícia, e não sei por que sobre fundo escuro.

Após 1945, tentaram impingir ao mundo que o povo alemão da época ignorava o que se passou durante a Segunda Guerra Mundial, e negaram o Holocausto até onde deu. Agora, em Nova Hartz, numa noite quente, em pleno centro da cidade pessoas escalam uma torre metálica de 30 metros de altura, iluminada, e ninguém viu.

E tem mais, que aula magnífica sobre a burocracia oficial nos deu o jornalista Pelizzaro. Seu texto é de uma educação exemplar. De maneira elegante, sem agressão, mostrou quem é quem.

Sem dúvida, os três jornais perderam a oportunidade de dar um furo: Nazismo em Nova Hartz.