Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Plínio Fraga

A DITADURA DERROTADA

“Livro ?não desilustra? Geisel, diz assessor”, copyright Folha de S. Paulo, 9/11/03

“À sombra do governo e da vida do presidente Ernesto Geisel (1911-1996), moviam-se discretamente dois personagens: Heitor Aquino Ferreira, 67, e Humberto Esmeraldo Barreto, 71.

São testemunhos importantes na reconstrução dos bastidores do período da série ?As Ilusões Armadas?, do jornalista e colunista da Folha Elio Gaspari, cujo mais recente volume, ?A Ditadura Derrotada?, chegou às livrarias na semana passada.

Heitor Ferreira foi assistente de Golbery do Couto e Silva no SNI (Serviço Nacional de Informações) e de Geisel na Petrobras, antes de se tornar seu secretário particular. Acumulou documentos, 222 horas de gravações e 1.500 páginas de seu diário, com minuciosas descrições dos bastidores do poder entre 1964 e 1975.

Hoje traduz livros -como ?Churchill?, biografia de Roy Jerkins, e ?A Revolução dos Bichos?, de George Orwell. Vive em Teresópolis, na região serrana do Estado do Rio. Recusou a sondagem da Folha para uma entrevista, citando um aviso que viu em Nova York, obra da administração do ex-prefeito Rudolph Giuliani: ?Nem mesmo pense em estacionar seu carro aqui?.

Humberto Barreto foi dirigente da Petrobras, da Caixa Econômica, da Norquisa Petroquímica e da Transbrasil, mas antes de tudo foi amigo de Geisel desde os 17 anos. Como exemplo da proximidade, Gaspari cita que o casal Barreto foi parceiro do casal Geisel por 20 anos no jogo de biriba.

Barreto recebeu com tranquilidade a repercussão das revelações do livro de Gaspari. ?Não se pode julgar Geisel nem a obra do Elio por um livro. A análise tem de ser feita em cima do todo. O que conta é que Geisel devolveu o país à normalidade democrática. Só não fez a anistia porque não quis. Mas a deixou pronta para o [João Baptista] Figueiredo fazer. O livro não desilustra a imagem dele como tenho lido por aí?, disse Barreto à Folha, numa resposta velada à declaração do presidente do Senado, José Sarney, de que o livro frustra a imagem que tinha do quarto presidente do regime militar.

Gaspari revelou degravação de conversas de Geisel com o general Dale Coutinho, seu futuro ministro do Exército, a um mês de sua posse na Presidência. ?Esse negócio de matar é uma barbaridade, mas tem que ser?, afirma Geisel, em uma de várias demonstrações de que sabia da morte de opositores sob custódia do regime.

Barreto afirma que Amália Lucy, filha de Geisel, não recebeu com simpatia a forma com que a imprensa tratou o livro de Gaspari, destacando o apoio à repressão e minimizando, segundo ele, o projeto de distensão política.

?Disse a ela que não há demérito para o Geisel. A obra é muito mais histórica do que jornalística. O que o jornal diz amanhã embrulha peixe. O livro fica?, diz.

?Na hora que o Geisel teve de brigar com a linha-dura, brigou. Como mostra o episódio da demissão do [ministro do Exército, Sylvio] Frota?, declara.

?Houve gente que, mesmo na oposição, compreendeu isso. O Tancredo [Neves] ajudou muito. O Ulysses [Guimarães] atrapalhou demais. Não conseguia entender as dificuldades que ele tinha. A linha-dura do Exército entendia que o presidente era um preposto dela. Na demissão do Frota, se não tivesse feito as coisas com inteligência, teria sido deposto?, afirma Barreto.

Continuidade

Trabalhando em funções públicas com Geisel desde 1969, quando o assessorou na Petrobras, até 1979, quando estava na direção da Caixa Econômica Federal, Barreto participou de articulações políticas, como o lançamento de Figueiredo como candidato à sucessão de 1979, contrapondo-se ao nome de Sylvio Frota, preferido pela linha-dura militar.

?A cada conversa que tínhamos, juntava as pedrinhas. Até por exclusão, a escolha batia no Figueiredo. A principal característica que procurava era alguém que continuasse a sua obra?, diz.

Barreto conta o episódio em que começou a perceber como era a relação de Geisel e Figueiredo. O primeiro já havia sido escolhido candidato por Médici à sua sucessão e discutia quem seria o vice. Geisel não queria que fosse o almirante Adalberto Pereira dos Santos, como pretendia Médici.

?Eu quero um vice para valer. O Adalberto é homem direito, mas não é um homem para isso. Quero que, na minha falta, não haja crise nenhuma?, disse Geisel, segundo o relato de Barreto.

Geisel reuniu-se no dia seguinte com Figueiredo, então chefe do Gabinete Militar da Presidência, na casa de Barreto. ?O preferido do Geisel era o brigadeiro Araripe Soares, mas ele tentou contornar a indicação do presidente dizendo ao Figueiredo: ?O Médici faz questão, porque, se dependesse de mim, o vice seria você?.”

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“Vozes do Sacerdote”, copyright Folha de S. Paulo, 5/11/03

“Em ?A Ditadura Envergonhada? e ?A Ditadura Escancarada?, a narrativa do jornalista Elio Gaspari para o nascimento, a consolidação e o endurecimento do regime militar de 1964 surpreendia por sua capacidade de relacionar o que se dizia nos palácios com o que se vivia nos porões. Saiu daí um painel sem precedentes na historiografia acadêmica ou jornalística sobre o período que o país foi comandado das casernas.

?A Ditadura Derrotada?, o terceiro volume da série sobre o ciclo militar ?As Ilusões Armadas?, que chega hoje às livrarias, revela as vozes dos senhores do regime, que falam coisas de assustar, como demonstra a seguinte conversa gravada de Ernesto Geisel (1907-1996), em 16 de fevereiro de 1974, um mês antes de assumir a Presidência da República.

?Acho que a subversão não acabou. Isso é um vírus danado que não há antibiótico que liquide com facilidade. Está amainado. Está resolvido. Você vê, de vez em quando, há uma articulação, morre gente ou é gente presa, ele continua a se movimentar?, afirma Geisel para o general Dale Coutinho, na conversa em que lhe faz o convite para que se torne o titular do Ministério do Exército em seu governo.

?O negócio melhorou muito. Agora, melhorou, aqui entre nós, foi quando nós começamos a matar. Começamos a matar?, afirma o então futuro ministro. É complementado pelo futuro presidente da República.

?Porque antigamente você prendia o sujeito e ia lá para fora (…). Ó Coutinho, esse troço de matar é uma barbaridade, mas acho que tem que ser.?

No diálogo com o general, Geisel cita que, semanas antes, foi ?pego e liquidado? Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, líder da guerrilha do Araguaia, na qual grupos de esquerda armados atuaram contra o regime até meados daquele ano.

?Nós não podemos largar essa guerra. Infelizmente nós vamos ter que continuar. É claro que vamos ter que estudar [algum ou novo, a gravação fica inaudível] processo, vamos ter que repensar…?, afirma Geisel.

Não há registro histórico dessa proporção. As duas mais altas autoridades brasileiras à época afirmando que o Estado brasileiro matou opositores que estavam sob sua custódia. Afirmando em alto e bom som.

É o caso, por exemplo, de Osvaldão, que foi capturado pelas forças repressivas do Exército e assassinado, como reconhece Geisel nas gravações.

O diálogo que o livro de Gaspari -colunista da Folha e de ?O Globo?- reproduz se origina de 222 horas de gravação de conversas de Geisel e assessores, feitas entre outubro de 1973 e março de 1974, sob a coordenação de Heitor Aquino Ferreira, seu secretário particular.

Os 70 rolos em cassete, depois convertidos para CDs, fazem parte do arquivo de Golbery do Couto Silva (1911-1987) e Heitor Ferreira, ao lado de mais de 5.000 documentos e de um diário de 1.500 páginas com minuciosas anotações do cotidiano do poder.

As transcrições só vêm a público graças à inspiração de um precedente americano, as transcrições das conversas dos presidentes John Kennedy e Lindon Johnson, que foram tema do livro do historiador Timothy Naftali.

Ferreira cedera as gravações a Gaspari em 1985, com o compromisso de que não pudessem ser transcritas. Com o precedente, Ferreira permitiu que fossem citadas livremente, desde que preservada a vida particular dos outros.

As conversas foram gravadas numa residência do Jardim Botânico e em um escritório do Largo da Misericórdia, no Rio, pertencentes ao Ministério da Agricultura na época. Eram captadas por um microfone, que transmitia por frequência modulada para um gravador Philips 85. Algumas conversas telefônicas também foram captadas, por meio de uma chupeta acoplada ao aparelho.

Mas o livro de Gaspari não se restringe à transcrição das fitas. É a continuação do desvendamento das ações e das razões que levaram Geisel (batizado de ?O Sacerdote?) e Golbery (?O Feiticeiro?) de participantes do golpe que implantou a ditadura militar a ativos desmontadores da estrutura então dita como revolucionária.

No livro fica claro que &eaceacute; obra do governo Geisel o recurso ao ?desaparecimento? para eliminar a necessidade de justificativas para a morte de contestadores do regime militar. De 1964 a 1970, os ?desaparecidos? somam nove, e os mortos com cadáver são 87, contabiliza Gaspari. Em 74, há 52 mortos e 52 ?desaparecidos?.

O jornalista então disseca a palavra: ?Englobava todos os cidadãos capturados cujos cadáveres sumiam sem ficar vestígio. Resultava da conjugação da política de extermínio com a clandestinidade do porão?, define.

?Clandestinidade, no caso, não significava paralelismo, autonomia ou descontrole. Os assassinatos eram praticados pela máquina do Estado, com beneplácito da hierarquia. Eram clandestinos, porque, dentro dela, ocultavam-se?, conclui Gaspari.

Para comprovar sua tese, como nos dois volumes que precederam a publicação de ?A Ditadura Derrotada?, mais de 1.500 notas biográficas trazem a fonte da informação. No caso do Araguaia, um documento do SNI (Serviço Nacional de Informações), intitulado ?Apreciação Sumária? e que foi encaminhado a Geisel, o texto é claro. Com o fim do período das chuvas na região do Pará, recomeçariam as operações ?visando à destruição dos elementos que ainda se encontram na região?.

?A Ditadura Derrotada? começa com as articulações surgidas a partir de junho de 1971, quando, em um bilhete cifrado, revela que o ?Alemão?, apelido de Ernesto Geisel, seria o presidente a sucedê-lo em 1974.

O volume narra os bastidores do poder durante os três anos e cinco meses que se seguem até a eleição para o Senado em 1974, quando a oposição vence e surpreende os militares.

Gaspari afirma que ouviu críticas que diziam que seus dois livros anteriores não tinham ?povo?. Ele concorda e explica por quê: o ?povo? só dá as caras nessa eleição em que a oposição venceu a disputa para o Senado nos principais centros urbanos.

?Que esperar de um eleitorado assim, um povinho assim?, perguntou Heitor Aquino a Golbery. ?Que melhore, praticando. O povo não está com a revolução?, respondeu Golbery.

Gaspari faz ainda uma reconstrução da trajetória pessoal e dos interesses e hábitos de Geisel e Golbery.

No caso de Geisel, cita a morte de um filho, atropelado por um trem, como separador de águas em sua vida. Escreve Gaspari: ?A educação austera, a disciplina da caserna e seu temperamento fizeram-no um retraído, mas a desgraça abateu-o a ponto de ele dizer, 30 anos depois, que ?ao longo de minha vida eu fui um infeliz?. A um amigo que passou por experiência semelhante, confessou: ?É uma dor que não acaba?. Nunca fora um lúdico, mas em 1957 perdeu até a capacidade de esperar que a vida lhe desse alegrias. Os dias festivos transformaram-se em jornadas de sofrimento, queria que se esquecesse o Natal, ?porque minha família não está completa?.?

A DITADURA DERROTADA. De: Elio Gaspari. Editora: Companhia das Letras. Quanto: R$ 49,50 (544 págs.).”

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“Gaspari envia mensagem a ?autoridade?”, copyright Folha de S. Paulo, 10/11/03

“Com um reprodutor de CD que acionava com um pedal, Elio Gaspari fez a transcrição -ao longo de 18 anos- das 222 horas de gravação das conversas de Ernesto Geisel, Golbery do Couto e Silva e dezenas de personagens da história política recente brasileira, entre outubro de 1973 e março de 1974. Parte sabia ou desconfiava estar sendo gravada. Parte não.

Algumas declarações não foram publicadas por dificuldades técnicas. Ao comentar a derrota governista na eleição para o Senado em 1974, o general João Baptista Figueiredo, então chefe do SNI (Serviço Nacional de Informações), aparece no livro afirmando: ?Povo de merda que não sabe votar?.

A expressão se origina de uma das 565 fichas eletrônicas com transcrições. Gaspari aciona o computador e ouve-se Figueiredo dizendo a sentença que está no livro, acompanhada da transcrição na tela. Mas se percebe que há uma frase anterior àquela publicada. O repórter da Folha não consegue entendê-la.

Obviamente, Gaspari e a equipe da Companhia das Letras foram mais longe. A equipe checou todas as transcrições publicadas no livro com o que pode ser ouvido nas fitas. Chegou-se a produzir uma versão em cadência mais lenta no laboratório que transformou as fitas em CDs.

Mas o autor e a equipe não chegaram a um acordo se Figueiredo dizia ?são todos uns putos? ou ?são todos uns burros?. Sugestionado, ao repórter pareceu correta a primeira opção. O sujeito da frase são os eleitores brasileiros, mas, sem saber qual predicado era a eles atribuído, Gaspari decidiu suprimir todo o período.

O jornalista diz que seus livros não existiriam sem o computador. Acompanhar Gaspari no computador torna-se um exercício quase lúdico. Ele digita: ?R038F03LA?, sequência que dá a impressão de ser letras e números colocados aleatoriamente lado a lado. Mas formam uma chave para o acesso a informações que, se transcritas, ultrapassariam 40 mil páginas -mais que os 32 volumes da Enciclopédia Britânica.

Na tela em seu computador Macintosh, surge a explicação: ?Rolo 038; fita 03; lado A – conversa em 31 de janeiro de 74. Geisel e a crise de 1961. Tomada do aeroporto de Curitiba?. O resumo é ínfimo perto da quantidade de informações. Geisel comenta, 13 anos depois, o que propunha para combater o movimento em defesa da posse de João Goulart após a renúncia de Jânio Quadros em 1961.

Liderado no Rio Grande do Sul por Leonel Brizola e com adesão de tropas militares à causa janguista, Geisel afirma ter discutido com o general Odylio Dennys que os pára-quedistas ocupassem o aeroporto de Curitiba como base para o ataque ao Rio Grande do Sul. Dennys refuta a idéia dizendo que os pára-quedistas não poderiam ser usados, por fazerem parte das tropas de reserva.

Em outra ficha eletrônica, pode-se ouvir e acompanhar a transcrição de conversas de Geisel, como quando articulava seu ministério. Num clique, ouve-se Geisel dizer: ?Não tem de ficar checando se é revolucionário ou não é revolucionário. Se for fazer essa triagem, você vai terminar sozinho?.

O jornalista afirma ter dispensado informações de ordem pessoal, a menos que retratassem a alma naquele momento de um personagem público.

Só são reveladas gravações de pessoas que não sabem que estão sendo gravadas quando elas ocupam cargos públicos, querem ocupar ou estão discutindo políticas públicas, ressalta Gaspari.

Nas fitas, por exemplo, Geisel aparece em conversas prosaicas, como a que tem com um irmão, Bernardo. ?Vou ficar só 30 minutos?, diz Geisel sobre o almoço com o irmão. ?Então é melhor não vir?, ouve como resposta.

Ao receber o arquivo de Golbery e Heitor Ferreira, Gaspari sabia da existência das conversas gravadas, mas reconhece que não imaginava a ?extensão da fitologia?. Admira-se por elas nunca terem vindo à tona, num país em que, na definição de Golbery, só guarda segredo quem não sabe.

O autor diz que seguiu uma diretriz ao escrever seu terceiro livro. Não deixar que a obra virasse a revelação das fitas, mas sim que amparassem a narrativa de fatos descritos a partir de outras fontes.

Gaspari tem a esperança de que seu livro seja uma mensagem a uma ?autoridade militar? que, segundo ele, tem as interceptações telefônicas de Janio Quadros no dia de sua renúncia. O jornalista espera que o livro evite que tal autoridade militar destrua as transcrições que mantém numa caixa de sapato no Rio. A atual série de livros de Gaspari é um trabalho de quase 20 anos. Os papéis da caixa de sapato são uma obsessão de outros 20 anos, quando tomou conhecimento de sua existência.”

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“Escritos do Feiticeiro”, copyright Folha de S. Paulo, 10/11/03

“Golbery do Couto e Silva tinha um apelido entre os muito inimigos no regime militar: geneDow. Uma corruptela de dois papéis que os militares consideravam inconciliáveis. O ?gene? era de general, patente com a qual criou o Serviço Nacional de Informações. Dow vinha da multinacional Dow Química, a qual presidiu depois de sair do governo em 1967. Era só um sinal do quanto colecionava inimizades.

Quando Emílio Medici ainda pensava na escolha de seu sucessor, abordou o chefe de seu Gabinete Militar, general João Baptista Figueiredo, perguntando se a escolha de Ernesto Geisel para a Presidência não trazia consigo o risco da volta de Golbery ao poder. Figueiredo mentiu, revela ?A Ditadura Derrotada?. ?Eles estão separados?, disse Figueiredo a Medici, informação que contrariava os encontros constantes e as trocas de documentos e reflexões de Geisel e Golbery.

A proteção que recebeu do chefe do Gabinete Militar pesou para que Geisel indicasse Figueiredo à sua própria sucessão, mas disso ainda não trata Gaspari, nesse terceiro volume da série. No quarto livro, o jornalista aborda os fatos acontecidos depois da eleição para o Senado em 1974 até a demissão do general Sylvio Frota do Ministério do Exército em 1978.

A escolha de Figueiredo e o atentado do Riocentro serão os temas do quinto e último volume da série. Um deve sair ano que vem e o outro em 2005.

No terceiro volume, Geisel e Golbery são os protagonistas. Foi a partir da idéia de traçar a biografia dos dois que surgiu a série. Tão próximos no projeto político, mas tão distantes no trato. Frequentaram-se poucas vezes. Conta-se nos dedos as vezes que se reuniram a sós. Golbery tinha uma artimanha para evitar chamar Geisel por você, desobrigando-se de qualquer pronome de tratamento. O que acha disso? Como vê aquilo?, dizia.

Gaspari reconhece que não pretende contar a história do regime militar. Mas a ação do Sacerdote e do Feiticeiro no período. Se pretendesse analisar o regime como um todo, o peso de Medici seria infinitamente maior, reconhece.

O livro mostra como Golbery foi o redator dos principais documentos do que Gaspari chama de a ?grande conspiração republicana de direita? desde 54. Revela como por meio de modificações dos discursos que Golbery redigia, Geisel dialogava com o assessor.

No discurso de posse, Golbery queria que Geisel prometesse: ?A coibição enérgica de toda violência ilegal, partida de onde ou de quem partir?. Geisel rebateu: ?Olha aqui, você tem um negócio (…) que não pode se referir agora. Quer ver? Isso é uma das grandes verdades (…). Isso é verdade (…), mas você não pode dizer?.

Noutro trecho, Golbery escreveu: ?(…) confiar num futuro próximo de grandeza, paz e justiça social que assegure, afinal, em nossa terra, clima salutar à plena expansão da potencialidade humana de cada cidadão brasileiro (…)?. Geisel rejeitou: ?Pois é. Eu não vou falar nisso. Vão me cobrar. E depois eu vou reconhecer, agora, que há constrangimentos arbitrários? Há, mas não sou eu que devo dizer isso?.

Golbery então escreve um parágrafo em que diz: ?Governo aberto, almejo assim, venha a ser o meu, no sentido de abrir e manter, arejados sempre, múltiplos canais de comunicação com as elites políticas e técnicas, a intelligentzia sempre trepidante das mais nobres insatisfações, a mocidade incontida embora, em seus arroubos de idealismo, por vezes transbordantes, todas as minorias autenticamente representativas e responsáveis do país e mesmo (…) a voz individual de qualquer cidadão ferido em seus direitos ou clamando por justiça?.

Geisel cortou o ?cidadão ferido?: ?Há referência velada às torturas. Eu não posso dizer isso, não é? Aí é que está, então o sujeito não pode dizer o que ele realmente quer dizer. O que que vai dizer? Vai embromar? É difícil?.”

“?O trabalho do Elio Gaspari é um passo a mais?”, copyright O Globo, 5/11/03

“A produção para o lançamento da coleção ?Ilusões armadas? é de Primeiro Mundo. Apenas na checagem de informações, grafia dos nomes citados e consulta em busca de ilustrações, a Companhia das Letras mobilizou uma equipe de nove pessoas em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. O esmero nesse trabalho de acabamento rivaliza com o perfeccionismo do próprio Elio Gaspari. Por trás desse aparato está o editor Luiz Schwarcz.

Por que ?A ditadura derrotada? não foi antecipado para a imprensa?

LUIZ SCHWARCZ: Pelo tipo de material do livro, achamos que todos deveriam ter acesso a ele ao mesmo tempo. Com isso, o livro terá o tempo que merece para ser analisado.

Quanto venderam os dois primeiros volumes?

SCHWARCZ: No primeiro (?A ditadura envergonhada?) estamos chegando aos cem mil exemplares. No segundo (?A ditadura escancarada?), em 88 mil, 90 mil. São, portanto, quase 200 mil exemplares vendidos desde novembro, quando foram lançados. Eles estão entre os dez mais vendidos da editora, próximos de Drauzio Varella e Amir Klink.

O volume que está sendo lançado hoje sai com quantos exemplares?

SCHWARCZ: Com 50 mil, como os anteriores. Mas isso não preocupa, pois não fazemos marketing em cima de números.

O que essa tiragem significa em termos de Europa e Estados Unidos?

SCHWARCZ: É bem razoável. Na França é muito comum tiragens menores. Nos Estados Unidos, por exemplo, um lançamento, em capa dura, com 20 mil exemplares já é considerado respeitável. E a média no Brasil continua sendo de 3 mil a 4 mil exemplares.

No mercado editorial, o que representa a obra de Elio Gaspari?

SCHWARCZ: Poucas vezes se fez uma união tão perfeita de jornalismo investigativo com pesquisa acadêmica. E inclusive o trabalho abre possibilidades para outras pesquisas. Além disso, apesar de extensa, a obra é de fácil leitura, por causa do texto de Elio Gaspari.

?Ilusões armadas? significa uma abertura de espaço para pesquisa historiográfica séria?

SCHWARCZ: Na verdade, ela já vem sendo feita no país. Temos o exemplo da ?História da vida privada no Brasil? e vários outros. São obras que também se preocupam com a qualidade do texto. Temos também os jornalistas que fazem biografias, como Fernando Morais e o Ruy Castro. Mas, sem dúvida, o trabalho do Elio Gaspari é um passo a mais.”

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“Os bastidores das ?Ilusões?”, copyright O Globo, 5/11/03

“Arquivos e pesquisa sustentam a coleção sobre a época dos generais

Márcia Copola, formada em letras com especialização em português e linguística, passou de janeiro a setembro, seis dias por semana, debruçada por longas jornadas num trabalho especial. Responsável pela edição de texto na Companhia das Letras, Márcia deu a palavra final na checagem de 1.144 nomes citados em ?A ditadura derrotada?- nomes de pessoas, ruas, monumentos, tudo. Nos dois livros anteriores haviam sido 2.220.

Vladimir Sacchetta, bacharel em direito pela escola do Largo de São Francisco, em São Paulo – sinônimo de elite advocatícia – e que a vida fez mergulhar com paixão na pesquisa iconográfica, precisou esquadrinhar cerca de três mil imagens para serem escolhidas as 89 ilustrações do livro. Para os dois volumes iniciais de ?Ilusões armadas?, calcula que queimou a retina em cinco mil fotogramas.

Ricardo Cavalheira, sócio da Cia. de Áudio, estúdio especializado em restaurar gravações musicais situado no bairro paulistano de Pinheiros, recebeu uma encomenda única: converter em CDs ?mais de 80? velhas fitas cassete (eram 120). Aceitou.

Passou um ano, entre 98 e 99, imerso na trabalhosa tarefa. Não foram poucas as vezes que teve de colocar cassetes num forno especial antiumidade. Ou emendar fitas próximas de virarem pó. Depois que saíram os dois primeiros volumes, percebeu a verdadeira importância do que tivera em mãos.

É muito provável que Márcia, Wladimir e Ricardo não passassem por essa experiência se Elio Gaspari não desembarcasse em Washington, em 1984, como bolsista do Wilson Center for International Scholars para um período de estudo de três meses. Editor e diretor-adjunto da ?Veja?, com respeitável quilometragem no jornalismo e no acompanhamento de perto – e por dentro – da vida política do país, Gaspari tinha um plano: iria escrever um texto sob o título ?Geisel e Golbery, o Sacerdote e o Feiticeiro?. Nada tão grande quanto um livro; um ensaio.

Na política desde jovem

Italiano de Nápoles, tendo chegado ao Rio com a mãe, aos 5 anos de idade, Elio desde jovem passou a transpirar política. Filiado ao antigo Partidão, o Partido Comunista Brasileiro, escreveu os primeiros textos para o jornal do partido, ?Novos rumos?. Foi preso, esteve sob a custódia da Marinha na Ilha das Flores (não pensa em pedir indenização por perseguição política), ascendeu rapidamente na profissão e conquistou a confiança de Golbery, Heitor e Geisel no período em que os três estavam na planície, depois da derrota de Castello na sua sucessão.

Em 1984, passado o governo Geisel, e com o projeto de abertura do Sacerdote e do Feiticeiro vitorioso, Gaspari se sentia em condições de arriscar-se naquele ensaio. Planejava escrever cem páginas. Depois das primeiras 30 percebeu que o trabalho exigia mais espaço. Teria o tamanho de um livro. E foi estimulado a assumir a empreitada no Wilson Center. Nascia o projeto de ?Ilusões Armadas?.

Um lance decisivo nesse xadrez aconteceria um ano depois, quando Heitor Aquino Ferreira, já um amigo, confiou-lhe a guarda de 25 caixas de papéis. Mofavam na garagem do sítio de Golbery, em Luziânia, em Brasília, e Heitor pedira-lhe que as preservasse. Nelas, estavam 300 horas de fitas gravadas.

Durante muito tempo, o assessor Heitor Aquino foi jogando em caixas de papelão mantidas debaixo da mesa tudo que Golbery lhe mandava: papéis rabiscados, recortes de jornais, documentos, relatórios, o que fosse. Nascia o ?Arquivo do Golbery?. Junto com o diário do próprio Heitor, uma espécie de chave de decodificação da papelada, todo aquele material passaria a fazer sentido. Ainda mais ao ser combinado com a massa de informações acumuladas paralelamente por Gaspari, e pacientemente digitadas em fichas num computador Macintosh. Ao todo, 28.176 fichas, incluindo a catalogação dos 5 mil documentos do arquivo do general, o diário de Heitor Ferreira e a transcrição de fitas.

Muito tempo depois chegou a hora de copiar tudo. O ano era o de 2000 e o projeto ?Ilusões Armadas? estava avançado. Foram tiradas mais de 20 mil cópias. Como a máquina não era grande, as reproduções de páginas de jornais precisaram ser depois pacientemente remontadas e coladas. O mesmo aconteceu com os telex. Quando a cópia não ficava nítida, tinha de ser retocada a caneta ou a lápis. Originais danificados pelo tempo exigiram o uso de uma lupa nos retoques.

As pastas estavam guardadas na biblioteca de Gaspari, a ?Malan?, instalada por ele num apartamento do prédio em que mora em São Paulo. O nome é uma prova do humor sarcástico do jornalista: homenageia o ministro Pedro Malan, um dos responsáveis pela política cambial e de juros, que lhe permitiu comprar o apartamento e transformá-lo em biblioteca e arquivo, diz.

Fitas e CDs não ficavam juntos

Elas saíam em lotes para serem copiadas. As cópias tinham de obedecer a mesma ordem na qual os originais estavam guardados. Ao serem devolvidos, originais e cópias eram checados um a um. Hoje, na biblioteca, estão apenas as cópias. Os originais ficam em outro lugar. Nada escapou da máquina copiadora: bilhetes entre Geisel e Heitor, contracheques do presidente Geisel, livros, listagens de apuração de eleições em estados com comentários manuscritos do tipo ?esse é nosso?, etc.

Cuidados extremos também foram tomados na transcrição das fitas. ?Ele me entregava uma pasta de couro velha com as fitas e logo me pedia para não deixá-la solta no estúdio?, lembra Ricardo Cavalheira. Iam fitas, sempre em lotes de dez, e voltavam os CDs (200 ao todo). Nunca fitas e CDs retornavam juntos, por precaução.

Elio Gaspari passou por um momento de tensão: ele mandou num dos lotes, sem avisar a ninguém, a fita de conteúdo mais pesado do conjunto, aquela em que Geisel e Dale Coutinho falam sobre mortes. E pela primeira vez, uma fita não foi transcrita. Exatamente esta. Depois, tudo ficou esclarecido: um simples acaso. Mais tarde, ela seria copiada, à noite, com o estúdio vazio.”

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“?Conheço os podres do Gordo?”, copyright O Globo, 5/11/03

“Geisel e ministros vigiaram Delfim Netto e presidente ameaçou intervir em SP para evitar sua eleição

Poucas pessoas ficaram tão marcadas para Geisel quanto Antonio Delfim Netto. Golbery não gostava dele, e intrigas foram tecidas com competência para enredar o todo-poderoso ministro da Fazenda do presidente Emílio Garrastazu Medici. Segundo ?A ditadura derrotada?, até Mário Andreazza, ministro dos Transportes do mesmo governo de Delfim e que fazia dupla com ele nos tempos do ?milagre econômico?, cravou seu punhal numa conversa com Geisel: ?Conheço os podres do Gordo.?

Outros que se encarregavam de implodir o futuro de Delfim eram Eugênio Gudin e o empresário Augusto Trajano de Azevedo Antunes, magnata do minério. Este garantira a Golbery que Delfim protegia um frigorífico. Já Gudin, do alto de suas funções na Fundação Getúlio Vargas, jurava que o ministro manipulava os índices de preços. Até o general João Figueiredo, do Gabinete Militar de Geisel, dizia que Delfim dirigia concorrências a favor da Camargo Corrêa.

?Ver declaração de rendimentos?

Se Geisel, depois de ter enfrentado o drama pessoal de explicar a Orlando, seu irmão, que ele não continuaria no Ministério do Exército, estava preparado para dizer não a qualquer um, mais fácil ainda seria barrar as pretensões de Delfim depois de todas essas acusações. Entre os papéis de Golbery e Heitor Ferreira encontra-se uma anotação, com a letra de Heitor, sintomática: ?Ver declaração de rendimentos de Delfim Netto.?

Continuar no ministério, impossível. Aspirar ao governo de São Paulo – sentiria na pele o próprio Delfim – também. Afinal, a imagem do ex-ministro deteriorara-se ainda mais para o grupo Geisel com o fim do represamento dos preços. O presidente considerava-se vítima de uma herança do ministro.

Havia, porém, razões estratégicas para barrar as pretensões políticas de Delfim Netto. Eleito governador de São Paulo, ele seria candidato natural à Presidência. E mais: com o ?milagre econômico? no currículo.

Os candidatos a governador eram escolhidos pelas convenções regionais da Arena, e Delfim, com o apoio de Laudo Natel, estava certo de conseguir a vitória no partido. Geisel não queria o precedente de se ganhar a indicação no voto dos convencionais. Muito menos se o autor do feito fosse Delfim. Se isso ocorre naquela eleição de 1974, o que poderia acontecer em 1978, último ano de governo, a um ano da sucessão presidencial?

?Eu estou muito preocupado com esse problema de o Delfim ser governador de São Paulo. O que nós faríamos se na convenção aparecesse o mais votado, ou por aclamação, o nome do Gordo? (…) Você pode ir para a cassação, você pode ir para a intervenção no estado, mas você vai a frio (…)?.

A frase de Geisel, registrada nos arquivos de Golbery e Heitor, dita numa reunião com os dois, mostra até que ponto o presidente iria para barrar Delfim Netto. Mas não foi preciso maior truculência diante da fórmula salvadora do senador Petrônio Portella.

Ele propôs mudar a lei e se transferir a escolha das convenções para os diretórios estaduais. O de São Paulo, garantiu Petrônio, ele já controlava. A manobra garantiu a ascensão de Portella à presidência da Arena e a Delfim, um exílio de luxo na embaixada de Paris.”