Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

“Podemos tentar realizar a utopia em Timor-Leste”

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Entrevista com Sérgio Viera de Mello, administrador da ONU em Timor

“A desocupação dos jovens está na raiz da formação de ‘gangs’ que atuam em Díli e Baucau, acha o administrador da ONU, Sérgio Vieira de Mello, numa entrevista concedida há poucos dias ao Público na sede da UNTAET, em Díli. A ONU, garante, apoiará a reintrodução da língua portuguesa, mas o inglês virá a ser a primeira língua estrangeira do país. O brasileiro encarregado por Kofi Annan de levar Timor à independência pensa que os portugueses andam excessivamente excitados com a perspectiva de o escudo vir a tornar-se a moeda nacional. E diz que nunca as Nações Unidas se abalançaram a uma tarefa como esta em Timor-Leste.

Público – Na entrevista que o Público lhe fez em Outubro passado, em Nova Iorque, nas vésperas de chegar a Timor para desempenhar este cargo, disse que não podia, evidentemente, responder ainda a perguntas sobre a moeda e a língua a adotar, e qual o modelo de desenvolvimento. Comecemos pela primeira: qual será a moeda?

SÉRGIO VIEIRA DE MELLO – A rupia indonésia existe, é uma realidade e vai permanecer como moeda corrente. Por quanto tempo, o mercado determinará. Como moeda oficial, estrangeira, convertível, temos quatro opções: dólar americano, dólar australiano, dólar de Singapura e o escudo português (a ordem aqui não tem significado). Todas têm as mesmas características: são convertíveis, fortes e credíveis internacionalmente. A decisão será relativamente fácil do ponto de vista técnico, mas difícil do ponto de vista político. Será tomada pelo Conselho Consultivo [CC], espero, em meados deste mês, porque não podemos protelá-la mais.

P. – Mas há uma decisão já tomada, pelo menos informalmente. Há semanas, na inauguração de um armazém, o presidente Xanana explicou o apoio dado pelo CNRT [Conselho Nacional da Resistência Timorense] àquele tipo de loja porque pretendiam fazer com que os comerciantes começassem a intervir no mercado, em ordem a baixar-se os preços e possibilitar-se compras em dinheiro português. Mas a verdade é que o escudo continua a não ser corrente, e a rupia, como disse, continua a impor-se, parece que contra a vontade política do CNRT.

R. – Eu não acredito que a sua análise esteja inteiramente correta. A rupia não se está a impor. Continua simplesmente desempenhando o papel que desempenhava antes, porque o povo está acostumado. Isso não quer dizer que aos poucos não possamos introduzir outra. A administração civil das Nações Unidas em Timor precisa de uma moeda oficial. O nosso orçamento deve ser calculado numa moeda forte. Vamos ter de optar rapidamente por uma destas quatro moedas e a meu ver as mais prováveis são o dólar americano e o escudo português. Quando falamos de escudo português, falamos de euro e portanto o Banco Central Europeu também terá uma opinião. Acredito que exista lá disponibilidade e flexibilidade. Mas, repito, é uma decisão que eu gostaria que os timorenses tomassem.

P. – Alguns timorenses dizem que talvez a dificuldade de fazer passar a mensagem sobre esta opção se deverá a não estar instalado ainda um sistema de comunicação social. O que é que a UNTAET [Administração Transitória das Nações Unidas para Timor-Leste] pode fazer e não fez ainda?

R. – Está a fazer-me duas perguntas numa só. Em primeiro lugar, não acredito que seja apenas um problema de comunicação social. Porque seria preciso primeiro que uma decisão fosse tomada para que depois fosse comunicada à sociedade. E, que eu saiba, a decisão não foi ainda tomada, pelo menos no Conselho Consultivo, que é soberano nessa e em muitas outras matérias. Em segundo lugar, não é apenas uma questão de comunicação social: é preciso uma estrutura financeira e bancária, que não temos ainda. Não se pode varrer a rupia indonésia com uma varinha mágica e resolver, da noite para o dia, que o escudo, o dólar americano ou qualquer outra moeda estrangeira será, a partir daquele dia, a nova moeda oficial. Repito: o povo aqui está acostumado ao uso da rupia, não detecto qualquer antipatia popular em relação a essa moeda. Estivemos recentemente em Jacarta com colegas do Fundo Monetário Internacional a discutir com o Banco Central indonésio formas de ajuda, enquanto a rupia for de fato a moeda corrente. E no dia em que resolvermos recolher a rupia, se algum dia o fizermos, precisaremos da cooperação total do Banco Central indonésio. Se não, o que fazer com notas no valor de cento e tantos milhões de dólares (estimativa do FMI)?

P. – Quanto à difusão da informação…

R. – Estamos a fazer muitas coisas, só que não são ainda palpáveis. Já temos a nossa rádio. Não abrange o território inteiro, mas temos acordos com rádios locais que retransmitem as mensagens durante certas horas. Estamos a trabalhar para criar uma imprensa livre e democrática. Esta parece-me uma prioridade absoluta, para os timorenses terem a sua própria voz e nós tentarmos veicular a nossa mensagem por seu intermédio, não o contrário, que está acontecendo atualmente. Tudo isso está em gestação. Gostaríamos também de oferecer imagens, com um ou mais canais de televisão, mas isso já requer uma sofisticação tecnológica de que ainda não dispomos.

Apoiaremos o português se os timorenses o escolherem

P. – Há uma iniciativa para retomar a publicação do jornal diário ‘Suara Timor Timur’ (STT). A UNTAET vai apoiar a iniciativa dos jornalistas?

R. – Com certeza. É uma das nossas prioridades. Fizemos o mesmo no Kosovo e antes na Bósnia. Mas não queremos que haja apenas um jornal em Timor. Queremos pluralidade.

P. – Quanto à língua?

R. – É uma história mais complicada do que a moeda.

P. – Pensava que era o contrário…

R. – Não, a moeda é, no fundo, um assunto técnico. Não compreendo bem por que é que há tanto interesse, emoção, excitação com este tema. Se for o dólar americano, acho que os portugueses não deviam ficar decepcionados, e vice-versa. Agora a língua é outra história…

P. – Serão os timorenses que ficarão decepcionados. Pelo menos os timorenses da liderança política ficarão decepcionados se forem obrigados a continuar com a rupia.

R. – Certamente que não vão ter de continuar com a rupia. Mas eu acho que vocês portugueses estão mais excitados com o tema da moeda do que os timorenses. Enfim. A língua responde a várias necessidades – histórica, cultural, psicológica e também educacional, pensando no futuro. Essa é outra decisão que o CC vai ter de tomar. Em última análise, a administração das Nações Unidas podia decidir que a moeda de Timor será o escudo português, ou o dólar americano, ou o dólar australiano. Com base em critérios puramente objetivos, técnicos e com base em conselhos do FMI. A língua não. Essa sim deve ser uma decisão exclusiva dos timorenses.

P. – Que parecem já tê-la tomado, a fazermos fé nas intervenções públicas de Xanana Gusmão, de Ramos-Horta…

R. – Exatamente. Mas eu quero que eles tomem a decisão no âmbito do Conselho Consultivo. O bahasa desempenhou o seu papel durante 24 anos, continua a desempenhá-lo, e, mais até do que a moeda, a gente não pode varrer uma língua da noite para o dia. Não é culpa dos timorenses que nasceram nesta época e que tiveram de aprender o bahasa. Além do bahasa, só conhecem o tétum. Temos de permitir uma certa coabitação linguística em Timor, incluindo o bahasa. Não nos esqueçamos tão-pouco que há à volta de seis mil estudantes timorenses que continuam em universidades e institutos na Indonésia, e que quando voltarem não vão poder converter-se a outra língua de imediato. Fala-se também muito no inglês. A meu ver, o inglês vai-se tornar em Timor o que ele é na maioria dos outros países: a primeira língua estrangeira, a língua franca do mundo contemporâneo. Não o devemos desincentivar, reprimir ou limitar de qualquer forma. Restam portanto o tétum e o português. O tétum não parece ter adquirido ainda as características de uma língua no sentido próprio da palavra (com a sua sintaxe, vocabulário e gramática elaborados) e por isso não parece ser a solução a curto e a médio prazos. Resta o português. Se essa for a opção dos timorenses, daremos todo o apoio para que ele possa ser reintroduzido aos poucos e tornar-se a língua oficial deste país. Mas repito: tem de haver uma decisão dos timorenses, saída das deliberações do Conselho Consultivo. Espero que possamos incluir este item na próxima sessão, marcada para os dias 13 e 14…

P. – Já com Abílio Araújo [o antigo líder da Fretilin, que apoiou a autonomia]?

R. – Espero que já com Abílio Araújo e, quem sabe até, com um representante do FDPK.

Jamais a ONU administrou um território assim

P. – Olhando para Timor, parece que há uma animação no setor da restauração e de ‘rent a car’ (por australianos), mas o resto está parado.

R. – Está parado porque o senhor não vê além do imediato. Está vendo a realidade e a realidade, reconheço, dá essa impressão. Um dos resultados da Conferência de Tóquio (em 18 de Dezembro) foi o apoio financeiro que recebemos. Não teríamos conseguido 522 milhões de dólares [102,3 milhões de contos] para os próximos três anos se não tivéssemos apresentado o Apelo Humanitário (de Outubro, coordenado pelo meu escritório em Nova Iorque); o Plano de Reconstrução e de Desenvolvimento (formulado durante a missão de avaliação liderada pelo Banco Mundial, que aqui esteve em Outubro/Novembro, e que fez um excelente trabalho); e se não tivéssemos apresentado à última hora (tivemos de o preparar em poucos dias) um orçamento para a Administração Pública de Timor, no valor de 30 milhões de dólares para o ano 2000. Jamais uma operação das Nações Unidas tinha apresentado um orçamento tão elaborado para a sua administração de um território (porque jamais tínhamos administrado um território como administraremos Timor). O que quero dizer é que não haverá reativação econômica sem atividades de tipo emergencial, reabilitação, reconstrução e de desenvolvimento econômico, além da injeção de fundos da própria Administração Pública. Esta, logo após a reunião de 14, espero, começará a recrutar novos funcionários. E serão milhares…

P. – Não tantos como os que havia antes…

R. – Certamente que não. Havia 28 mil. A recomendação do Banco Mundial e do FMI é que baixassem para 12.203. No debate que tivemos no Conselho Consultivo resolvemos que não imporíamos limite arbitrário ao número total, mas pediríamos a uma comissão técnica que avaliasse as necessidades em cada setor.

P. – Resolve-se um problema (recomeça a Administração Pública), mas cria-se outro, o desemprego.

R. – Não. Vamos começar a recrutar milhares de funcionários públicos que passarão a contribuir para a reativação da economia através da sua remuneração regular. Vamos precisar da produção local para equipar a Administração Pública e isso também vai gerar emprego. Mas é principalmente nas áreas de emergência, reabilitação e reconstrução, além dos projectos de desenvolvimento a mais longo prazo (e que não serão prioritários) que nós vamos criar um mercado de trabalho. Temos dois fundos especiais: o nosso, para a Admnistração de Timor; e o do Banco Mundial, para todas as atividades de reconstrução e desenvolvimento. Tudo isto vai acontecer aos poucos, nas próximas semanas e meses. Vai ver que a economia será reativada. Estas coisas não acontecem por magia.

Desemprego na origem dos conflitos em Díli e Baucau

P. – Psicologicamente, as populações (não só os observadores) precisam de sinais. Por exemplo, a abertura do aeroporto (no dia 2 de Janeiro) foi um sinal importante e por isso os senhores lhe deram grande relevo. Se houvesse uma casa que fosse erguida; uma ponte que fosse construída; uma estrada reconstruída, isso seria sinal de que as coisas estavam a avançar. Ora, parece que tudo está lento porque nenhuma coisa visível foi já feita.

R. – Provavelmente tem razão. Houve uma certa lentidão no mês de Dezembro, devido a fatores bem conhecidos, como a distância, os custos, a logística. Timor é um país remoto. Não estamos nos Balcãs. Não posso mandar comprar 30 mil toneladas de materiais de construção na Macedónia ou na vizinha Itália. Posso na Austrália, mas a um preço altíssimo, em comparação com o mercado indonésio, e este não pode suprir todas as nossas necessidades. Também sofremos o fenômeno humano compreensível – poucas coisas funcionaram em Dezembro por causa das festas. Isso atrapalhou muito em todas as áreas. Mas vai começar a ver essas realizações palpáveis, tangíveis, a partir de agora: vários edifícios públicos importantíssimos para a Administração vão ser recuperados e renovados, a começar pelo Palácio do Governo, e tudo isso vai gerar emprego. O que mais me preocupa agora não é a ausência de resultados concretos do nosso trabalho, é não haver emprego. Os incidentes que se vêm produzindo em Díli e em Baucau (os dois maiores centros urbanos) são devidos à falta de trabalho: gente que não tem nada que fazer vai brigar ou vai-se embebedar com o pouco dinheiro que lhe sobra. Garanto-lhe que essas primeiras realizações tornar-se-ão visíveis nas próximas semanas.

P. – O que é que representa para si, nos vários planos, este trabalho em Timor?

R. – Esta é provavelmente das missões mais importantes e gratificantes encomendadas às Nações Unidas. Vejo nela o encerramento do ciclo da descolonização. É um ponto muito importante na história da nossa organização. Raros foram os elogios pelo que ela realizou nesse campo. Espero que Timor seja um êxito. Será esta talvez a conclusão deste longo ciclo iniciado no final dos anos 50. A título mais pessoal: é um grande desafio. Nunca anteriormente a ONU teve esta responsabilidade global em termos executivos, legislativos, judiciais e militares. Isso também cria um sentido de dever e responsabilidade únicos. Há duas faces desta moeda: podemos tentar realizar a utopia em Timor; construir um país verdadeiramente democrático, um Estado de direito onde sejam respeitados todos os direitos humanos, não só os cívicos e políticos mas também os econômicos e sociais, criar uma sociedade tolerante, realizar tudo aquilo que temos pregado pelo mundo afora estas últimas décadas. A outra face da moeda poderia ser uma administração autoritária, soberba, que impusesse do exterior soluções alheias aos costumes, aos anseios da população, e esse perigo mete-me muito receio. Um receio útil porque me dá consciência diária de tudo aquilo que se deve evitar, de tudo aquilo que temos de tentar para realizar a utopia. É o peso dessa responsabilidade que às vezes é difícil carregar. Acho que a organização está madura para esse papel. Posso contar com excelentes colegas (alguns vão chegar nos próximos dias) e contar com a parceria de pessoas como Xanana, José Ramos-Horta e muitos outros do CNRT e certamente dos outros partidos que ainda não pertencem ao CNRT.

P. – Também já se sente um timorense?

R. – Eu acho que todo o brasileiro se sente timorense por definição e por natureza. Como vocês.”

(*) Copyright Público, Lisboa, 13/1/00

 

 

Mário Baptista

Diário Digital

“Ensinar a língua portuguesa, conceber um sistema político e administrativo, definir um modelo econômico, apostar na divulgação da RTP Internacional, auxiliar o relacionamento externo, enfim, ‘ajudar no que for preciso’. Estas são as áreas de intervenção nas quais Portugal deve apostar, no entender de Ana Gomes, chefe da missão de interesses de Portugal em Jacarta. Uma oportunidade para ouvir uma das mulheres mais conhecidas da vida diplomática portuguesa falar sobre o futuro de Timor ou, como ela disse, «do crescimento de um bebê que tive nas mãos chamado Timor». Um discurso quase comovente.

No seminário dedicado ao tema ‘Timor, um país para o século XXI’, a diplomata Ana Gomes ocupou boa parte da tarde de terça-feira, discursando não só sobre a sua experiência enquanto chefe da seção de interesses em Jacarta, mas também sobre o futuro daquela que todos esperam seja a primeira nação do século XXI. Com um discurso sentido, em que se nota a grande preocupação pelo futuro dos timorenses, Ana Gomes apelou à ajuda portuguesa, ‘mas sem saudosismo nem preconceitos de qualquer espécie’.

As prioridades na intervenção portuguesa são claras, para a diplomata. O ensino da língua portuguesa é a ‘prioridade principal’, até porque falar português servia para, ‘no período da ocupação, os falantes se demarcarem da Indonésia’. Professores portugueses em Timor seriam uma ajuda preciosa, não só para ensinar, mas também para ‘reciclarem os professores que lá estão, e cujo português está um pouco enferrujado’.

Outra parte importante do processo de transição em Timor passa pelos meios de comunicação social, em particular da RTP Internacional: ‘a televisão terá um papel fundamental na identificação com os portugueses e com a transição para uma democracia participativa’. Assim, o apelo é dado de forma muito simples: ‘que hajam jornais, se não em língua portuguesa, então em indonésio, mas que hajam jornais!’.

Um dos aspectos mais técnicos da ajuda portuguesa poderá passar pelo envio de juristas, nomeadamente oferecendo assistência nas concepções do sistema político, judicial e administrativo. Relembrando a ‘qualidade e o potencial excepcionais dos timorenses’, Ana Gomes considera que o envio de juizes e formadores para o território seria ‘excelente’. Neste aspecto de envio de pessoal para o território, os militares têm um papel vital, nomeadamente na criação de um futuro exército timorense.

O discurso sobe de tom quando fala da viabilidade econômica de Timor, uma das perguntas que certamente Ana Gomes já ouviu diversas vezes. ‘Claro que tem viabilidade econômica, então não haveria de ter?’, responde, inflamada. E lembra, a este propósito, o caso de João Freitas, um pescador que a diplomata conheceu recentemente. ‘Em 1975, ele comprou um barco, por sugestão do então secretário de Estado das Pescas, e hoje já tem 22 barcos’. Este é o exemplo perfeito, remata a provável futura embaixadora na Indonésia.

A ajuda no relacionamento externo será também uma das prioridades preconizadas por Ana Gomes, que explica o porquê de considerar que o relacionamento com a Indonésia tem de ser bom: ‘percamos os atavismos em relação à Indonésia, porque até os timorenses já perderam os receios do relacionamento com os indonésios’. Recentemente, Xanana Gusmão visitou o presidente do antigo invasor, juntamente com um conjunto ‘dos seus melhores quadros’, para definir um pouco melhor o que será o futuro de Timor.

Com um discurso virado para o que Portugal pode fazer por Timor, Ana Gomes esclareceu um princípio estratégico da cooperação portuguesa com Timor: ‘a Indonésia terá de ser o nosso aliado para contrabalançar o enorme poder de influência que a Austrália vai ter’, afirmou, ressalvando que esta infuência australiana ‘não é necessariamente má’.”

(*) Copyright Diário Digital, Lisboa, 18/1/00

 

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“Um soldado australiano foi ferido e pelo menos quatro timorenses foram detidos durante distúrbios que marcaram da pior maneira uma campanha de recrutamento da ONU em Díli. Os distúrbios ocorreram ao final da manhã de ontem, hora local, em frente ao ginásio de Díli, onde, desde as primeiras horas da manhã, se concentraram milhares de desempregados, a maioria jovens.

Problemas de organização e falta de comunicação são as causas apontadas, tanto pela Interfet, como pelo Conselho Nacional da Resistência Timorense (CNRT) para os distúrbios que principiaram quando funcionários da ONU suspenderam, mais cedo do que era previsto, o processo de entrevista dos candidatos.

Mais de nove mil pessoas responderam a um anúncio da ONU que pretende preencher cerca de 1900 cargos no seio da administração transitória das Nações Unidas em Timor-Leste (UNTAET), que tinha anunciado que iria entrevistar os candidatos convocando-os a deslocarem-se ao ginásio de Díli, onde começaram a chegar cerca das 06:00 da manhã locais.

Apesar de recomendações de polícias civis da ONU, os responsáveis do setor de empregos da UNTAET não estabeleceram cordões de segurança nem filas adequadas para processar os candidatos. Uma multidão tentou desesperadamente entrar pela única pequena porta de acesso ao ginásio, que foi completamente cercado por arame farpado, causando graves problemas para os agentes de segurança.

Polícias civis que estavam no local disseram à agência Lusa que os primeiros problemas começaram quando a responsável da campanha de recrutamento da ONU tentou selecionar os candidatos, simplesmente com base no seu conhecimento de inglês.

‘O intérprete que ela estava a usar estava a traduzir mal as coisas que os candidatos diziam, mas, quando lhe dissemos isso, ela só se chateou e recusou ouvir’, disse um polícia civil. ‘Sabíamos que isto ia acontecer porque não havia o mínimo de organização nas filas de entrada’, disse um outro.

Os maiores problemas começaram contudo ao final da manhã quando um funcionário da ONU, usando um intérprete, comunicou à multidão que o processo de entrevistas estava terminado. Segundo a agência Lusa conseguiu apurar, apenas algumas centenas de candidatos tinham sido ouvidos quando a ordem foi dada.

A comunicação foi mal recebida pela multidão, levando muitos a rasgar o formulário de candidatura e alguns a apedrejar as janelas do primeiro andar do ginásio, onde estavam funcionários da ONU e jornalistas. Um cordão policial e militar começou a tentar afastar a multidão, provocando uma chuva de pedras que acabou por ferir um soldado australiano que tinha detido um dos timorenses que lançou as primeiras pedras.

Em resposta, o cordão de segurança afastou toda a multidão que estava no recinto exterior do ginásio, forçando-a a ficar na rua, de onde continuaram durante algum tempo a insultar os soldados, polícias e funcionários da ONU.

A multidão apenas se acalmou quando José Ramos-Horta, chamado pela UNTAET ao local, falou aos timorenses clarificando a posição do CNRT quanto à língua a adotar em Timor-Leste, garantindo que o inglês não vai dominar no território e referindo-se ‘a alguma desorganização na UNTAET’.

‘Nós não podemos confiar no funcionalismo. Temos que fazer outras coisas para viver. Já falamos com a UNTAET para arranjar uma solução para criar oportunidades de emprego’, disse Ramos Horta à multidão.’ Mantenham a confiança no CNRT’, apelou, apesar de reconhecer ‘a insatisfação e a crise’ que atualmente se vive e sente no território. ‘Durante 24 anos adquirimos o indonésio, e não podem vir aqui falar inglês. A ONU tem que aprender tetum e indonésio para falar com o povo’, referiu um jovem.

Ramos-Horta culpou a UNTAET por falta de preparação adequada para o processo de recrutamento, afirmando que houve erros de comunicação quanto ao aspecto da língua. ‘Informações que não são corretamente transmitidas para o povo e depois não são traduzidas adequadamente para tetum pelos intérpretes levam à distorção das coisas. Obviamente depois de esperar horas e horas, os ânimos exaltam-se e vem a agressão física’, alertou.

O dirigente timorense denunciou que a maior queixa se relaciona com a língua ‘já que a maioria do povo timorense fala tetum’, enquanto a ONU exige que só os que falam inglês é que podem ter emprego.”

(*) Copyright Público, 16/1/00

 

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Público

“Belo lidava com o exército indonésio e a juventude timorense à sua própria maneira. Os eventos de Santa Cruz tinham provocado um efeito devastador na sua consciência; continuava a ser assombrado por pesadelos porque provavelmente teria conseguido deter o confronto se tivesse sabido dos planos a tempo. Agora, três anos depois, estava decidido a evitar uma repetição do massacre.

A maior parte dos jovens [que se manifestavam em Díli em solidariedade com os colegas que ocuparam em embaixada dos EUA em Jacarta] não queria render-se. Segundo uma testemunha ocular, Belo mantinha uma certa distância dos jovens timorenses, cujo respeito pelo bispo era um respeito que não permitia qualquer tipo de familiaridade. De fato, num cenário daqueles, não pareceu particularmente compassivo para com a juventude. O bispo protegê-los-ia sem dar azo às suas emoções. Por ele, talvez tivesse vontade de os castigar, mas isso ficaria para outra altura. (…)

‘Estes agitadores têm de vir conosco’, disse um comandante militar ao bispo. Exigia que os jovens fossem detidos para interrogatório. Belo não o permitiria.

‘Chamaram-me aqui e eu digo que nada pode acontecer a estes jovens’, declarou Belo com firmeza aos comandantes militares e da polícia. ‘Tirem as vossas tropas e polícias da zona e eu arranjarei uma solução.’

‘Estes ‘hooligans’ são estúpidos e desenvergonhados e só conseguem viver escondidos debaixo das saias do bispo e dos padres’, acusou aos gritos um dos comandantes.

‘Toda a gente tem de sair da zona’, retorquiu o bispo calmamente aos comandantes indonésios. ‘Só então haverá paz.’

Em seguida, o bispo falou aos jovens. ‘Estou a pedir-vos que voltem para casa. No fim, vocês é que vão ser as vítimas. Vocês são ignorantes e estúpidos! Só causam problemas, utilizando a catedral para os vossos fins políticos!’ replicou o bispo com brusquidão.

(…) ‘Às vezes, como bispo, tenho de usar palavras feias, porque é muito mais importante para mim que eles não sofram, não sejam agredidos, torturados ou mortos; a minha convicção é que se a juventude de Timor Leste desaparece, amanhã não teremos ninguém para reconstruir Timor Leste’ (…).

A realidade que era do conhecimento de poucos era que Belo se encontrava perante um dilema mais complicado do que a maior parte das pessoas podia imaginar. Estava cercado por todos os lados, forçado a manter o equilíbrio entre interesses irreconciliáveis. Belo tinha poucos aliados – quase nenhum, verdade seja dita – que aceitassem a sua independência ou estivessem sequer dispostos a perceber a necessidade dessa independência. Quase todos queriam recrutá-lo para a própria causa e ficavam profundamente ofendidos quando ele rejeitava as suas aproximações (…).”

(*) Copyright Público, 16/1/00

 

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Diário Digital

“As doenças contagiosas continuam a matar refugiados em campos de Timor-Ocidental. Cerca de 500 pessoas, a maioria das quais crianças, já morreram desde setembro, segundo números fornecidos pela administração local. Com menos de cinco anos foram contabilizadas 262, num total de 310 crianças.

Apesar dos documentos não revelarem as doenças responsáveis pelo grande número de vitimas, um estudo conduzido recentemente pela UNICEF revelou que quase 30 % das crianças que se encontram em alguns dos campos sofrem de má-nutrição.

A maior parte das mortes (236) ocorreu no distrito de Kupang, seguido da zona de Belu, próximo da fronteira com Timor-Leste onde faleceram 177 pessoas.

Todos os 12 distritos de Timor-Ocidental acolheram timorenses, estando ainda espalhados pela metade indonésia da ilha cerca de 100 mil pessoas que fugiram de Timor-Leste.

Segundo as autoridades locais, até 10 de Janeiro regressou a Timor-Leste um total de 79.324 pessoas de 15.493 famílias.

Segundo a agência Antara, os timorenses podem decidir até 31 de Março qual a nacionalidade que preferem.

Um porta-voz do governo indonésio, John Payong Beda, disse que as autoridades locais incluíram no orçamento do ano financeiro que termina a 31 de Março próximo, uma média de 20 milhões de rúpias por cada refugiado (cerca de 520 contos).

Apesar dos problemas que continuam a existir, um porta-voz do ACNUR (Alto Comissariado da ONU para os Refugiados) revelou quarta-feira que um largo número de timorenses está a concentrar-se na localidade de Kupang para se registar no processo de repatriamento para Timor-Leste.”

(*) Copyright Diário Digital, 18/1/00

 

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Diário Digital

“A União Européia (UE) decidiu levantar o embargo de armas à Indonésia, decretado em Setembro passado, por considerar que Jacarta tem melhorado o seu comportamento quanto ao reforço da democracia. Para o dirigente timorense José Ramos-Horta esta é uma ‘decisão perigosa’, numa altura em que o país ainda não completou a sua transição para a democracia.

‘A UE registou as mudanças históricas que ocorreram nos últimos meses na Indonésia (…). É por isso que a UE não considera necessário renovar as medidas restritivas tomadas em Setembro de 1999 (…) e que hoje expiram’, refere uma declaração emitida segunda-feira pela presidência portuguesa em nome dos Quinze.

Contudo, e como salienta a presidência, ‘em matéria de exportação de armas, a UE aplicará de maneira estrita o código de conduta da União’.

Numa referência a Timor-Leste, a presidência portuguesa exprimiu a vontade dos Quinze em ver julgados e sancionados todos aqueles que venham a ser considerados responsáveis por violações dos direitos humanos após a violência que se viveu no território logo após o referendo de Setembro último.

O embargo foi decidido pelos ministros dos Negócios Estrangeiros dos Quinze devido à persistência da violência e dos atentados aos direitos humanos após o ‘não’ maioritário dos timorenses à integração na Indonésia.

Na ocasião, a UE deu um prazo de quatro meses a Jacarta para que revisse o seu comportamento, findo o qual as medidas expirariam por si próprias ou seriam renovadas caso houvesse uma decisão nesse sentido.

Após a eleição de ‘Gus’ Wahid para a presidência da Indonésia e as medidas por ele tomadas, nomeadamente no âmbito da reforma judicial e do exército, a UE mostrou-se segunda-feira satisfeita, tendo decidido deixar expirar as restrições.

A maioria dos grupos políticos representados no Parlamento Europeu discorda do levantamento do embargo, enquanto os portugueses se dividiram nesta matéria, com o PS e a CDU a apoiarem, enquanto a o PSD e o PP se manifestaram veementemente contra.

Igualmente contra a decisão da União Européia está o dirigente timorense Ramos Horta: ‘Acho que é prematuro estarem a vender armas à Indonésia antes da reforma das forças armadas indonésias, e acho que fazê-lo antes da consolidação da democracia é perigoso’, disse Ramos-Horta à agência Lusa.

O Nobel da Paz considerou que a decisão é especialmente ‘surpreendente’ numa altura em que dezenas de milhares de timorenses continuam em campos de refugiados em Timor Ocidental, impossibilitados de regressar à sua terra.

Questionado sobre a posição da presidência Européia e as divisões que o assunto provocou nos parlamentares portugueses, José Ramos-Horta considerou a situação ‘compreensível’, numa altura em que o contencioso com a Indonésia quase desapareceu.

‘Timor é praticamente independente, a Indonésia saiu e não existe um grande contencioso, além dos refugiados. Por isso é compreensível que haja pessoas que não discordem dessa posição’, disse Ramos-Horta.

‘Posso também compreender a postura da presidência portuguesa, em apoiar o levantamento (do embargo) para assinalar boa vontade relativamente à Indonésia’, considerou.”

(*) Copyright Diário Digital, 18/1/00

 

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