Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Pollice verso II, uma questão de gosto

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NÚMERO-NOTÍCIA

Antonio Fernando Beraldo

[Marchinha de carnaval do ano em que Martha Rocha não foi eleita Miss Universo]

Pollice verso: com o polegar virado ? a forma como a audiência, nos jogos romanos, pedia a morte de um gladiador derrotado nos combates.

O final do século passado foi pródigo em listas. A mídia bombardeou o distinto público com toneladas de "melhores" e "mais mais" disso e daquilo, desde a atriz mais devassa do século (ganhou Zsa Zsa Gabor) até o ranking dos 10 sujeitos mais odiados nos últimos dez séculos (ganhou Hitler, uma evidente injustiça). A revista IstoÉ fez também a dela, o "Brasileiro do Século", em que os leitores votavam em 30 figuras destacadas em cada setor da vida nacional [setores como esporte, música, cultura etc; a revista se esqueceu de outros, como corrupção, criminalidade, falta de vergonha, cara-de-pau etc.]. Logo na primeira enquete, surpresa geral: o desportista do século foi Ayrton Senna, e não Pelé, que era, ou seria, a barbada da corrida. O Atleta do Século foi superado por um ídolo de um esporte onde o atleta(?) corre deitado ? aliás, quem corre é o carro, não o atleta [e, curiosamente, automobilismo é um esporte que mata, assim como um outro, o boxe (boxe é esporte?)]. O próprio Pelé, recentemente, foi forçado a um constrangimento pelos resultados da pesquisa da Fifa, feita via internet, quando dividiu sua coroa com o Dieguito Maradona que, como todo mundo sabe, andou fazendo alguns gols com ayuda de la mano de Dios. E, pior, é argentino [e pior ainda, ganhou uma Copa quase sozinho].

O que está se medindo é uma espécie de "popularidade", digamos assim, uma questão de gosto. Quando lhe perguntam, por exemplo, qual é o Músico do Século, não estão lhe perguntando quem você acha que é o melhor, e sim quais músicos que são preferidos por você, da lista que lhe apresentam. É o que se chama, tecnicamente, de "erro de entrevistador". Daí que se pode colocar no mesmo saco (na mesma lista) artistas como Villa-Lobos e Roberto Carlos, Chiquinha Gonzaga e Milton Nascimento. No caso da IstoÉ, o Músico do Século é Chico Buarque (76,5% de indicações), seguido por Tom Jobim (73,8%). Curiosamente, a mesma dupla que foi estrepitosamente vaiada num festival de música, por uma platéia que não queria ouvir cantar uma sabiá. É, meu caro, as coisas mudam…

Já o desfile das escolas de samba é igualzinho a jogo de futebol. Ao mesmo tempo, ocorrem pelo menos cinco "passagens" diferentes:

1. aquela que você vê pela televisão, zonzo de sono e tentando se concentrar em outras coisas que não os corpos siliconizados das "grandes sambistas";

2. aquela que você vê quando está no Sambódromo, no meio de um monte de gente sambando na sua frente, comendo cachorro quente frio e bebendo cerveja gelada morna;

3. aquela que os comentaristas da TV explicam para você, destacando que fulano está desfilando mesmo com uma bruta dor de dente, e que beltrana (e que beltrana!) desfila na escola há 18 anos, tendo saído pela primeira vez na ala mirim, ainda no carrinho de nenéeacute;m;

4. aquela que os passistas e modelos percebem (percebem?) espremidos e empurrados dentro das alas, levando cotoveladas no baço e fisgadas no olho, das plumas do chapéu dos caras fantasiados de Pavão Misterioso na Ilha de Bananal, logo à sua frente ? e correndo na avenida, para que a escola não perca pontos por excesso de tempo de desfile;

5. e aquela que os diretores de escola defendem, no dia da apuração, com, é claro, cortesia, ponderações pertinentes e elevado senso de crítica construtiva. E olha que eles não estão nem armados…

Ah, e estou esquecendo daquela que os especialistas em samba, e só eles, assistiram. Verificaram que a quinta pratinela do instrumento do terceiro pandeirista da segunda fila estava com um som diferente das demais, e a o tapa-sexo da destaque no segundo carro alegórico estava com um comprimento superior ao permitido. Tem outras, mas paramos por aqui, antes que cheguemos à conclusão de que um fenômeno só ocorre quando é percebido pelos nossos sentidos (eu, hein?). Segundo o Jornal do Brasil (28/2/01), os internautas do JB Online escolheram a Mangueira (34%) como campeã, pelo menos no segundo dia. O especial Carnaval do JB "puxava" pela Grande Rio ? aquela do Joãosinho Trinta e seu astronauta saltitante. O júri de 11 especialistas da Rede Globo conferiu seu "Estandarte de Ouro" para a Beija-Flor. A Beija-Flor e a Grande Rio também fora apontadas como campeãs pelo público entrevistado pelo Ibope. O Ibope não divulgou sua metodologia de amostragem (havia 65 mil assistentes). No entanto, a campeã do carnaval, segundo o júri de 40 (!) jurados da Riotur e Liesa foi a Imperatriz Leopoldinense (tricampeã com nota dez em todos os quesitos, de todos os jurados). A Beija-Flor ficou em segundo e a Grande Rio ficou lá atrás, em 6o. A diferença entre a primeira e a segunda colocada foi de meio ponto em 300 possíveis, ou seja, 0,16%.

Dois males, dois bens

Certa feita, um desavisado me convidou para ser juiz de samba-enredo do desfile de escolas aqui na minha cidade. Eu, bobamente, aceitei, encantado com as mordomias de camarote, crachá com passe livre, essas coisas. No tal desfile uma escola apresentou um enredo sobre "O Selo", contando as maravilhas da filatelia. O samba-enredo era pavoroso, e muito complicado ? quase nenhum integrante da escola conseguiu cantar o danado do samba. Dei uma nota muito baixa para a peça e a escola foi lá para a lanterna do grupo. No dia da apuração, um dos diretores da escola entrevistado pela emissora de rádio, além de declarar que eu não entendia "nada de samba nem de povo" (o que era previsível) e, "muito menos de filatelia" (o que era verdade), me xingou de "parcela podre da sociedade". Jus sperneandi à parte, neste momento encerrei minha breve carreira.

Toda esta conversa, e a do artigo anterior [veja remissão abaixo], foi para mostrar a impropriedade de algumas pesquisas, emolduradas pela mídia que transforma em verdades generalizadas e absolutas, no tempo e no espaço, os reflexos de um momento, as paisagens de um lugar. O quase empate do Chico com o Tom, ex-vaiados no Maracanãzinho é um bom exemplo. E será que Ayrton Senna é o desportista do século porque os leitores da IstoÉ não viram o Rei Pelé jogar (quem tem menos de 31 anos de idade nem era nascido na maravilha de cenário da Copa de 70), mas assistiram às corridas de Fórmula 1 do tricampeão, morto em 1994? E, mesmo no caso de Ayrton Senna, será que foi tão melhor volante assim que Nelson Piquet, também tricampeão, mas portando uma timidez que o fazia arisco e "antipático", não "endeusável" (perdão)? Fittipaldi é a simpatia em pessoa, o interesse em Fórmula 1 no Brasil nasceu com suas vitórias, mas foi "só" bicampeão, e, infelizmente para ele, isso foi há bem mais de 20 anos ? e, felizmente para nós, ainda não havia Galvão Bueno (ou havia?).

Outra coisa: mesmo em um julgamento de especialistas, podem ocorrer resultados que descambam para o ridículo. O que é meio ponto em 300? Quem é melhor, Chico ou Caetano? Ary Barroso ou Assis Valente? Noel Rosa ou Ismael Silva? Guga ou Maria Ester Bueno (essa é antiga)? Emilinha ou Marlene (essa é jurássica)? São fenômenos que transcendem qualquer escala, estão para lá de infinito. Como comparar dois infinitos? Qual o critério? Aristóteles já dizia que não existe escolha entre dois males iguais, ou entre dois bens semelhantes. Estatisticamente falando, não há diferença nenhuma entre Imperatriz, Beija-Flor e Mangueira, ou entre Chico e Tom, ou entre, digamos, as duas Sheilas do Tchan.

Trânsito engarrafado

A pesquisite se alastrou por todos os cantos da mídia. Em quase todas, o respeitável público esquece-se (ou não é lembrado) que, como já dissemos uma dezena de vezes:

Não existe opinião pública. Existe "opinião de um público"

Este público não é, na maior parte das pesquisas, uma amostra estatística. É um subconjunto dos "leitores da revista X", "internautas que assistem o canal Y", "eleitores do candidato Z" etc. É aquela história: na Bahia, está mandando ACM, na atual versão homem-bomba; em Alagoas, Elle ainda domina (será?); na Argentina, um tal de Índice de Confiança do Consumidor caiu de 27% para 20%, em fevereiro, segundo os jornais,

Mesmo a opinião de um público muda no tempo e no espaço. A velocidade dessa mudança é determinada não só pela sucessão dos acontecimentos mas, também, pela forma com que esses acontecimentos são divulgados. Existe manipulação dos fatos, intencional ou não, e assistimos aos acontecimentos ora como espectadores do desfile das escolas na TV, ora assistindo no Sambódromo, ora como participantes. A maioria das vezes, um acontecimento é descrito por outra pessoa, talvez um "especialista" ou parte de um "corpo de jurados". Isto influi na nossa opinião, pela forma como esta narrativa nos atinge.

Daí que, neste trânsito engarrafado de números-notícia vindo de todos os lados, vamos com calma, mano, e muita atenção, mana. Tem gente muito esperta querendo nos passar uma rasteira e, por duas polegadas a mais, sabe-se lá por quê, desconsiderar a mulher mais bonita que existe em todos os tempos e de todas as galáxias ? e não me venha dizer que não. Questão de gosto.

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