Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Por falar em ética…

Adelto Gonçalves (*)

A existência do Observatório da Imprensa na internet e na TV, do Instituto Gutenberg no Jornal dos Jornais e de outros meios têm contribuído para o levantamento de questões éticas relacionadas à atuação dos veículos de comunicação. Até agora, porém, propositadamente ou não, como jornalistas temos analisado pouco nossas próprias fraquezas, preferindo apontar as dos proprietários dos veículos e a de seus prepostos mais diretos. Está mais do que na hora de olharmos nossas próprias fraquezas.

A que vêm estas reflexões? Surgem a propósito da leitura da última edição do jornal mensal Unidade, do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo, mais especificamente o nº 224 (setembro de 2000). Nada contra o material jornalístico, feito com a participação de jornalistas experientes. Temos, sem dúvida, hoje, um jornal muito mais atuante e atraente, com maior número de páginas, que desperta até o interesse daqueles que não pertencem à categoria, tal a diversidade de assuntos que discute.

Mas a que preço? Percebe-se que, para fazer um bom produto, a direção do Unidade tem hoje um departamento comercial, a exemplo dos jornais que vivem da venda avulsa e do interesse que conseguem despertar em seu leitor-consumidor. Nada a opor, ainda que o Unidade não seja um jornal para o grande público, mas sim, como diz seu próprio subtítulo, um "jornal dos jornalistas".

Afirma-se isso porque, depois de uma leitura rápida, descobre-se, por exemplo, uma página de anúncio da Philip Morris em que se exalta a importância da liberdade de expressão e da democracia – "onde existe uma, está a outra", exorta-se. Em outra página, um anúncio garante que "confiança e transparência geram relacionamentos fortes e duradouros". E quem o faz? A companhia Souza Cruz. Em ambos os anúncios, não se diz que Philip Morris e Souza Cruz são fabricantes de cigarros, aliás, os maiores do país.

É ético um jornal de jornalistas aceitar anúncios de indústrias que hoje, perante a Justiça brasileira, já são consideradas culpadas pelos malefícios causados pelo tabaco a fumantes e ex-fumantes? Ninguém mais duvida que o cigarro é o responsável pelo aparecimento de vários tipos de câncer, como os de pulmão, boca, bexiga e estômago. De cada dez vítimas fatais de tumores malignos no pulmão, nove fumavam (Veja, 10/5/2000, pág. 130).

Vamos continuar a fechar os olhos, como se os anúncios não fossem de indústrias tabaqueiras? Tudo em nome da viabilização do projeto editorial? Valerá a pena? As perguntas são extensivas também aos responsáveis pelo site da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) na internet, que exibe banner da Souza Cruz.

Paremos para pensar. O que leva essas indústrias a dirigir anúncios de página inteira a um veículo setorial voltado apenas a jornalistas? Será que imaginam aumentar os números das vendas de cigarros? É claro que não. Até porque nos anúncios que fazem nem lembram ao leitor que são fabricantes de cigarros. O que querem, então? Ora, como têm hoje uma imagem extremamente desgastada, querem melhorá-la aliando-se a iniciativas meritórias.

Provavelmente orientadas por profissionais de Comunicação, tratam de apoiar iniciativas louváveis, como cursos de formação de jovens jornalistas, ou encetam mesmo campanhas publicitárias que visam a enaltecer a importância da liberdade de expressão. É claro que não pensam com isso comprar a consciência da categoria, imaginando que, dessa maneira, haverá menos reportagens e artigos contra os males do fumo em nossos jornais e artigos. Seus dirigentes não são tão primários.

Tampouco pretendem incentivar o vício também em jovens ou velhos jornalistas. Até porque, hoje, é proibido fumar nas grandes redações, não porque o hábito faz mal à saúde dos jornalistas, mas porque a fumaça e a cinza fazem muito mal à saúde dos computadores.

Na verdade, esta discussão nem existiria se nossos congressistas, seguindo o exemplo do Ministério da Saúde, preocupados com a saúde daqueles que os elegeram, já tivessem votado uma lei proibindo a propaganda de cigarros. Já não bastam as advertências em anúncios e em maços. Afinal, o consumo continua a aumentar.

Não é só. Na última edição do jornal Unidade vêem-se também anúncios de empresas como Cosipa e Rhodia. Será que estamos indo longe demais em nossa pregação ética? Talvez. Mas será que a Cosipa pretende vender mais aço ao publicar anúncios num jornal de jornalistas? Ou será que a Rhodia pensa em aumentar os lucros com a venda de seus produtos químicos, de saúde ou de beleza e, por isso, anuncia no Unidade?

É claro que não. Até porque essas empresas não compram o espaço para anunciar seus produtos, mas para fazer exortações edificantes: "O jornalismo é essencial para uma sociedade melhor, com qualquer tecnologia", pontifica o anúncio da Cosipa. "Jornalista faz de tudo por uma boa matéria. Se precisar, conversa até com máquina", garante o anúncio da Rhodia.

Será que é preciso lembrar que essas indústrias, como as empresas tabaqueiras, também tiveram problemas de imagem junto à população? Na Baixada Santista, não são poucas as famílias que perderam, ao longo das décadas, entes queridos vítimas de acidentes na unidade da Cosipa em Cubatão. E são muitas as famílias que têm seus leucopênicos, pessoas que se aposentaram precocemente porque trabalharam em condições inadequadas à saúde. E, hoje, sofrem as conseqüências.

E a Rhodia, empresa do grupo francês Rhône-Poulenc? No começo dos anos 90, a revista francesa Jeudi Événement publicou reportagem sobre a existência em Cubatão de um lixão químico instalado de maneira inadequada que teria causado doenças irreversíveis a pessoas carentes que, inadvertidamente, passaram a construir seus casebres na área.

Por que um órgão de imprensa do país da matriz do grupo Rhône-Poulenc se interessou pelo assunto, enquanto por aqui o tema não ganhou grande repercussão? Que fim levaram aquelas pessoas? Sobreviveram? Foram indenizadas? Como andam? Não é uma boa pauta para um jornalismo investigativo? Se tudo foi feito de maneira digna, a empresa só sairá ganhando com a publicação de uma reportagem sobre o caso.

Por enquanto, cabem aqui outras perguntas: será ético um jornal de jornalistas aceitar anúncios dessas empresas? Será que essas indústrias, com esse canto de sereia, não estão querendo justamente que os jornalistas esqueçam seu "lado escuro"? Também é verdade que, no caso da Cosipa e da Rhodia, se agirmos assim talvez estejamos negando a essas empresas um direito legítimo? Afinal, não vendem veneno à população, como as tabaqueiras. São úteis à sociedade.

Mas até que ponto essas empresas, como grandes anunciantes, podem influenciar indiretamente na linha editorial dos nossos jornais e revistas? É necessário, portanto, que estejamos alertas. Aos nossos órgãos de classe, não basta editar códigos de ética. É preciso refletir também sobre o tema. Não esqueçamos: muitas dessas indústrias que pertencem a grupos econômicos do Primeiro Mundo, como às vezes não conseguem em sua própria terra implantar fábricas que causam danos ao meio ambiente por causa da pressão social, transferem tecnologia destrutiva aos países do Terceiro Mundo. Valem-se, muitas vezes, da corrupção endêmica que aqui encontram e da fragilidade das nossas instituições.

Será que se recusar anúncios dessas empresas, especialmente de fabricantes de cigarros, o Unidade vai soçobrar? Durante mais de três décadas o jornal sobreviveu e trouxe à categoria tudo aquilo que o jornalista sindicalizado precisava saber. Sobreviveu, provavelmente, com os fundos do Sindicato, que, no fim das contas, é mantido com a mensalidade que nós, seus associados, pagamos.

Sem os recursos que esses anúncios representam, talvez tenhamos um exemplar do Unidade mais magro, com menos informações. Mas será ético que o Sindicato continue a abrir as páginas de seu jornal a empresas como essas? Cabe à categoria discutir. Não poderemos continuar a falar em ética para o público externo e cobrá-la dos outros se não a discutirmos em nossa própria casa. A palavra está com a comissão de ética e com a categoria.

(*) Jornalista, doutor em Letras pela USP, autor de Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2000) e professor de Legislação e Ética em Jornalismo da Faculdade de Artes e Comunicação da Universidade Santa Cecília, de Santos

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