Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Por que a mídia se retrata? Coragem, medo ou apenas interesses ocultos de cúpula?

Argemiro Ferreira, de Nova York

 

O

que há de fato com a mídia nos EUA? Por que tantos pedidos de desculpas? Por que os autores das reportagens contestam as cúpulas das empresas e reafirmam o que escreveram? A chave para se encontrar as respostas pode ser o New York Times, que resiste à moda das retratações e está reabrindo os casos Cincinatti Enquirer e San Jose Mercury.

Claro que nada há a se contestar em relação às fraudes que levaram à demissão dos jornalistas da New Republic (Stephen Glass) e do Boston Globe (Patricia Smith), que inventavam fontes e fatos. Mas são diferentes os casos do Enquirer e da CNN-Time, como o do Mercury antes deles. E o NYTimes, pressionado em mais um caso, não recuou. Reafirmou tudo.

Primeiro, a CNN. Indignados com a reportagem sobre suposto uso do gás sarin contra soldados americanos (operação Tailwind) no Laos, os militares do Pentágono pressionaram. Os dois veículos do império Time Warner de comunicação encomendaram investigação, feita sob critérios duvidosos – a partir da qual CNN e Time reconheceram falhas e demitiram profissionais.

Como CNN e Time, o Cincinatti Enquirer, jornal regional da cadeia Gannett, pediu desculpas por reportagem de denúncia sobre a multinacional de bananas Chiquita Brands. Demitiu o jornalista, acusado de ter roubado documento interno da Chiquita, retratou-se e prontificou-se a pagar US$ 10 milhões à multinacional, que sequer iniciara processo contra o jornal.

Toda a mídia ficou na defensiva (até porque, a reportagem mais antiga do San Jose Mercury também levara a reação vigorosa da CIA, pressões, retratação, pedido de desculpas e demissão). Só os episódios Glass e Smith eram claros. O da CNN-Time e o do Enquirer não. Mas TV, revista e jornal foram logo chamados de “corajosos” por reconhecerem “erros”.

Glass e Smith, claro, abusaram da confiança depositada neles (os veículos falharam por não notá-lo prontamente). Eram meros vigaristas – e os há em toda profissão. O episódio deles foi idêntico ao que na década de 1970 levara o Washington Post a demitir Janet Cooke, repórter ganhadora do Pulitzer, com reportagem fraudulenta sobre personagem que não existia.

Mas as autocríticas do Mercury, CNN, Time e Enquirer são outra história. A temida Canf (Fundação Nacional Cubano-Americana) tentou aproveitar a onda antimídia e forçar o New York Times a se retratar do que dissera sobre as ligações dela com o terrorista Luis Posada Carriles. O NYTimes fez o contrário: reafirmou tudo e defendeu seus jornalistas.

Mercado e lado mais fraco

Na retratação CNN-Time optou-se pelo popular “a-corda-arrebenta-do-lado-mais-fraco”. Os chefões do jornalismo da rede de TV (um dos quais acabara de ser tirado da ABC para dar um empurrão nos índices de audiência da CNN) omitiram a própria responsabilidade e botaram a culpa nos profissionais que trabalharam duro, durante meses, na reportagem.

Os demitidos da CNN, a produtora April Oliver e o produtor executivo Jack Smith, foram pressionados pelos chefões a comprimir em 18 minutos a reportagem de 60. Além disso, exigiu-se edição de grande impacto, a fim de se promover com barulho o lançamento do NewsStand, programa resultante da “colaboração” entre a CNN e as revistas da Time Warner.

Os chefões foram mais longe. Convocaram a apresentar a reportagem não os profissionais que a fizeram mas uma estrela da rede, Peter Arnett – que se considera repórter de ação, disse não ter contribuído nem com uma vírgula para o texto (saído no Time com assinatura dele à frente da de Oliver) e acabou sofrendo repreensão e vendo a própria reputação sair abalada.

Alguns viram “coragem” na CNN, no Time e no Enquirer? Oliver e Smith, como o repórter de Cincinatti, viram medo. E reafirmam tudo o que escreveram. Para eles, houve o clássico recuo de cúpulas ansiosas para se recomporem com poderosos. No caso da CNN, a falha real que admitem é atribuída à ingerência dos chefões – o corte de certas partes das entrevistas.

Da maneira como Oliver e Smith queriam a reportagem, ela teria durado uma hora e conteria todos os trechos importantes das entrevistas. Ao invés de bombástica, como exigia a cúpula da CNN, os dois preferiam deixar bem explícitos pontos nebulosos, contradições, etc. Eles dizem que lutaram pela integridade da reportagem. Mas que prevaleceu o jornalismo de mercado

A própria farsa da “cooperação”, no NewsStand, entre a rede de TV (hoje incorporada ao império Time Warner) e as revistas do grupo (primeiro a Time, em seguida Fortune, People e outras) acabou exposta publicamente quando a direção da Time confessou que nenhum profissional de sua redação participara da elaboração da matéria.

“Sinergia” X jornalismo

“Sinergia” é a palavra de ordem nos grandes impérios de mídia. A suposta “cooperação” resulta da obsessão das corporações gigantes de forçar cada um de seus veículos a “promover” o produto dos outros – coisa que, como disse recente editorial do New York Times, talvez não seja particularmente boa “para uma atividade meio fora de moda conhecida como jornalismo”.

O editorial referia-se à saída da jornalista Tina Brown da revista New Yorker para dedicar-se a ambicioso projeto “multimídia” da Miramax, subsidiária polivalente da Walt Disney Company – outro império de mídia, dono também da ABC, uma das três grandes redes de televisão dos EUA, e concorrente da Time Warner em várias áreas.

Quando se sabe que outra das grandes redes, a NBC, pertence ao império da General Electric (GE), e a concorrente CBS à Westinghouse, duas multinacionais fornecedoras de armas para o Pentágono, é confortador, para dizer o mínimo, ler um editorial do NYTimes – também parte de um império de mídia, embora não tão gigantesco – a advertir para tanta promiscuidade.

A imagem mais inofensiva da sinergia nos impérios de mídia talvez seja a dos bonequinhos de Walt Disney lançados junto com os filmes e promovidos com leviandade em programas jornalísticos. Mas o editorial do NYTimes lembrou outra, os tênis Nike nos pés dos repórteres da CBS na cobertura dos Jogos Olímpicos – lucrativo negócio que associou Nike e CBS Sports.

Perguntou ainda o NYTimes o que pode vir no futuro. E manifestou o temor de que venham a surgir na televisão repórteres a cobrir a Casa Branca e o Congresso usando na lapela emblemas da Archer Daniels Midland (que se proclama “supermercado para o mundo” e há poucos meses transformou em garoto-propaganda o comentarista político mais respeitado da ABC).

NYTimes resiste

Achei particularmente sintomático o NYTimes ter feito observações tão oportunas porque foi também esse jornal que rompeu, dias depois, com a nova moda das retratações (em seguida a pressões irresistíveis) e atribuição de culpa a profissionais competentes que cumpriram o dever, nunca a executivos de cima, parcial ou totalmente envolvidos no episódio.

O NYTimes resistiu – agora sim, com coragem – à intimidação da Canf, que tentou forçá-lo a se retratar da reportagem na qual os jornalistas Larry Rohter (ex-correspondente de Newsweek e Washington Post no Brasil) e Ann Louise Bardach expuseram os 30 anos de atentados do terrorista (treinado pela CIA e pelo Pentágono) Luis Posada Carriles.

Ao contrário da CNN, da Time, do Cincinatti Enquirer e do San Jose Mercury (que premiou com demissão o repórter que devassara a ligação da CIA com traficantes envolvidos na disseminação do crack nos EUA), o NYTimes rejeitou a intimidação. Respondeu aos protestos orquestrados em Miami e defendeu vigorosamente os dois repórteres dos ataques.

A pressão exercida sobre a cúpula do jornal pela Canf – um lobby multimilionário que há mais de 15 anos dita a política externa dos EUA para Cuba, forçando governos dos dois partidos a enterrarem o dinheiro do contribuinte na aventura da Rádio e TV Martí – foi repudiada publicamente com fatos e provas, inclusive um fax minucioso a outros veículos.

O repórter Rohter foi insultado e afinal expulso de uma conferência de imprensa em Miami na qual a Canf deu sua versão e exibiu videoteipe duvidoso com a intenção de desmentir a reportagem. É que o fundador da Canf Jorge Más Canosa, recebido na Casa Branca pelos três últimos presidentes, costumava intimidar e calar veículos que ousavam criticá-lo.

Más Canosa investiu em 1993 contra a rede pública de TV e em 1996 obrigou New Republic a pedir desculpas (e pagar US$ 100 mil) por tê-lo chamado num título de mobster (mafioso). Ele morreu ano passado, mas seus parentes, seus milhões, sua Canf e seus adeptos herdaram o hábito da ameaça, usada antes também para silenciar o Miami Herald.

Na mesma semana em que adotou a atitude firme e corajosa, o NYTimes reabriu na primeira página o caso (do Enquirer) das práticas ilegais da Chiquita Brands – multinacional de bananas, meio dona de Cincinatti, influente nos EUA e América Latina. E revelou relatório oficial que confirma a ligação da CIA com nicaragüenses envolvidos no narcotráfico (Mercury).

Claro que repórteres e editores não são infalíveis. Mas há algo de suspeito quando a cúpula de grandes corporações (caso de todos que se retrataram), às vezes a milhares de quilômetros da redação, força retratações que se ajustam a interesses empresariais. Há dois anos, por exemplo, a ABC pediu desculpas à Philip Morris sabendo que só dissera a verdade na reportagem.

A Time referiu-se em editorial à integridade do jornalismo “face ao difícil desafio da aplicação dos padrões tradicionais da profissão ao mundo explosivo da comunicação eletrônica, onde comércio e jornalismo se cruzam de formas novas”. O propósito mais alto do jornalismo, disse, “é muito mais tentar informar o público do que engordar os acionistas ou divertir sua grande platéia”. Amém.

 

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