Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Por que cantam os políticos?

MÍDIA & MPB

Muniz Sodré (*)

Aqui e ali, jornais do Rio e de São Paulo vêm registrando manifestações musicais por parte de políticos. Que cante o Ministro da Cultura é fato natural, já que é artista por profissão. Cantou no Ministério, cantou no Palácio do Planalto, e o fez muito bem, como sempre, não havendo quaisquer motivos para que colunistas (caso de um deles, da revista Veja) pudessem lhe recomendar silêncio definitivo, em benefício da cultura nacional.

Mas, prestem a atenção, cantou também um outro ministro, cantou a governadora do Rio de Janeiro, cantou até mesmo Orestes Quércia, acompanhado por um violão e aplaudido pelo sisudo Roberto Requião, governador do Paraná.

Estes fatos, dispersos no prolífico noticiário das disputas de cargos, das posses e das negociações políticas têm, entretanto, um nexo sintomático. Trata-se da chegada à esfera pública de um novo aspecto da dimensão afetiva. Como bem se sabe, a vida da sociedade civil não consiste apenas de pretenso racionalismo econômico e jurídico, já que o emocional permeia fortemente todas as instâncias sociais, principalmente a política. Desde a velha retórica dos oradores até a nova cosmética das figuras midiatizadas, a dimensão emotiva comparece como tática indispensável.

Além da retórica e da cosmética, há toda uma zona de sombras que não se mostra apenas nos desvãos tristes do que tem de ser ocultado (corrupção, mazelas, interesses ocultos etc.), mas também nas pontuações festivas do cotidiano. Zona de sombras, porque em tudo que se coloca à margem da argumentação pública e manifesta, sem tradução imediata para a racionalidade instrumental, levanta-se a hipótese da inexistência de sentido, de uma ação sem horizonte semântico ou finalístico. Foi por isto que Platão decidiu expulsar os poetas de sua República ? na verdade, os maus rapsodos.

"Como foi bacana…"

A compulsão ao canto público é conseqüência lógica de uma cultura, como a brasileira, fortemente marcada pela música popular. Parece não haver dúvidas de que a canção de massa é a manifestação artística mais valorizada pela mídia e pelo público nacionais desde os finais da década de 60. Em determinado momento do regime militar, cantar equivalia praticamente a respirar em atmosfera de chumbo. Bradava-se, cantando, pela "volta do irmão de Henfil". "Sinal Fechado", de Paulinho da Viola, dizia mais sobre o sentimento geral de existência do que um tratado de psicanálise política. Os verdadeiros heróis populares empunhavam violões. E a MPB, entidade mítica que sempre tivera suficiente qualidade para destacar-se na representação do nacional-popular, fortaleceu-se e ganhou mundo global.

Numa sociedade de mercado em ascensão, esse fortalecimento implica, evidentemente, uma indústria multimilionária, com a emergência de uma verdadeira "classe social do espetáculo", rica e prestigiada. Isto ocorre aqui e por toda parte, com graus de intensidade variáveis.

Passada a surpresa da rebeldia, assim como o brilho inovador dos anos dourados, permanece a qualidade industrial de um núcleo reduzido de criadores. São praticamente os mesmos de 30 anos atrás. A maioria industrializada reproduz, aos milhões, sons e letras de natureza rebarbativa e gosto duvidoso, por meio de estações de TV, discos e megaespetáculos. Não é uma conjuntura nova nem exclusiva do Brasil, sempre foi algo assim, exceto talvez pela atual magnitude dos públicos e das vendas, exacerbados pela proliferação dos circuitos audiovisuais.

Do ponto de vista dos desníveis qualitativos na criação, a música popular parece ter-se imposto como uma zona cultural propícia à conciliação de diferenças. Como a "massa crítica" que importa para a produção é constituída pelo próprio mercado (e não por críticos intelectualizados, a exemplo do teatro, das artes plásticas e das letras), pode-se combinar o sublime com o grotesco, um elevado ponto qualitativo pode apresentar-se ao lado de um abominável rebaixamento musical. Tudo depende da produção e seu público.

Já do ponto de vista da razão pública, a MPB parece servir atualmente para conciliar, ainda que temporariamente, diferenças político-partidárias. Não mais a velha guerra como continuação da política, mas a MPB como continuação de uma política que busca amaciar as diferenças reais com o imaginário da canção. Cantar é como dizer "eu quero paz e amor".

Cantando, assiste-se ao açodamento das velhas e novas elites contra os direitos adquiridos pela gente trabalhadora, à manutenção do espírito neoliberal com nova roupagem discursiva, a ACM e Sarney darem-se novamente as mãos no Senado. Um destes dois poderia mesmo ser tentado, quem sabe, a repetir o canto da governadora Rosinha Garotinho: "Pôxa, como foi bacana te encontrar de novo…"

(*) Jornalista, escritor e professor-titular da UFRJ