Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Por trás do protesto

INTERESSE P?BLICO

APREENSÃO

Gilmar Antonio Crestani (*)

A Associação Nacional dos Jornais (ANJ) divulgou nota protestando contra decisão judicial que determinou a apreensão do jornal Tribuna Popular, de São Lourenço do Sul (RS). Esse é o fato resumido de forma simplória [Aspas abaixo].

Ao ler a notícia, lembrei-me de uma da seguinte história.Um oficial alemão teria encontrado Pablo Picasso quando da exposição do quadro Guernica, no Louvre, e perguntado ao artista: "Foi o senhor quem fez isso?" Picasso teria respondido: "Não, foram vocês!"

A escolha da pequena Guernica como "campo de provas" pelos alemães deveu-se ao fato de que a cidade era um alvo fácil, sem proteção antiaérea. A obra de Picasso, mesmo que de forma involuntária, foi uma premonição que se viu reproduzida depois contra as populações de Varsóvia, Londres, Leningrado, Hamburgo, Dusseldorf, Hiroxima e Nagasaki.

A preocupação levantada pela ANJ comungaria desse raciocínio. A apreensão pode se tornar rotina, o que evidenciaria uma certa fragilidade democrática, e um atentado à liberdade de imprensa. A apreensão de jornal, numa democracia, deveria ser encarada como um fato. Controverso, sim, mas um fato, até porque a imprensa dispõe de espaço para
discuti-lo ? o atacado, não. Da mesma forma que um cidadão acima de qualquer suspeita pode ir preso, mesmo um senador da República investido de presidente do Senado, também uma empresa infratora dos dispositivos legais deve sofrer algum tipo de sanção. E quem melhor que o Judiciário para aferir?

Há no raciocínio da ANJ a idéia de que as "empresas de comunicação jornalística" podem fazer o que bem entenderem, inclusive ao arrepio da lei. Na clássica tripartição de Montesquieu, os poderes de Estado são o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, independentes e harmônicos entre si. A imprensa ainda não foi incluída ? embora já se comungue da opinião de se constitui num quarto poder. Neste sistema de freios e contrafreios, evita-se o abuso de qualquer um dos três. Mesmo dentro do poder Judiciário,
antes de ser condenado alguém tem de passar por um processo de investigação. Terá necessariamente direito a ampla defesa, constitucionalmente consagrada, para só depois ser julgado. E esse julgamento ainda pode sofrer uma série de recursos, tudo com vistas a se
praticar justiça. No caso do Direito Penal, a punição maior, no sistema brasileiro, é a restrição da liberdade. Para se chegar a um veredicto dessa envergadura, há uma profunda análise da qual fazem parte vários atores especializados.

Direitos ponderados

Na imprensa tudo é mais sucinto. Investiga-se, acusa-se, julga-se e condena-se. Muitas vezes sem ouvir o "réu". Um código de auto-regulação, aos moldes daquele que regula a publicidade, talvez evitasse os "insultos impressos".

Não é possível que todos os veículos tenham publicado a nota da ANJ como se fosse um oráculo de Delfos, ou um "a pedido". Da forma como foi veiculado, deixou a (má) impressão que a ANJ é contra a apreensão de qualquer jornal, independente do conteúdo. Mas não só. As garantias individuais, também previstas na Constituição, subordinam-se ao interesse "jornalístico". Mas, como no bolero, isso ocorre "às vezes sim e às vezes não". E para isso o Judiciário é chamado para atuar como árbitro.

Os jornais repercutiram como verdadeiros atacadistas, ou atravessadores, a nota da ANJ. Cadê a palavra da juíza ou pelos menos as razões que embasaram a decisão? Não se deu vez e voz ao jornal apreendido? O que havia para ser dito a respeito da apreensão? Muito menos apareceu a defesa do maior interessado na apreensão, o prefeito de São Lourenço do Sul. Ora, a liberdade de imprensa não é um valor absoluto. A própria Constituição se encarrega de elencar outros direitos que devem ser ponderados juntamente com a liberdade de imprensa. O exercício dessa liberdade não pode perder de vista o direito que as pessoas têm à intimidade, à honra e à imagem. E a competência para fazer essa aquilatação é o poder Judiciário, se provocado.

Conceitos suspeitos

As empresas jornalísticas têm interesses políticos, sim senhor. Os exemplos sobejam. Para falar apenas do que conheço, basta citar a RBS (Rede Brasil Sul). Nenhum gaúcho minimamente informado desconhece a relação dessa empresa com o ex-governador Antonio Britto. E a interferência foi de tal monta, na escolha do candidato ao governo do estado, que pôs todo o PMDB gaúcho contra a parede, obrigando-o a preterir o deputado federal Mendes Ribeiro para atender os propósitos da RBS. Como resultado, Mendes Ribeiro transferiu-se para a empresa Jornalística Caldas Júnior e Britto venceu a eleição, com o apoio escancarado da RBS. E não se pode esquecer que sua primeira grande obra, ao tomar posse, foi vender a empresa gaúcha de telefonia à RBS. O edital foi montado de tal forma que o Correio do Povo gravou o nome de Antonio Britto no index. Como a RBS não dorme no ponto, já trabalha o nome do funcionário (e atual presidente da Assembléia Legislativa) Sérgio Zambiase para uma futura composição política estadual. É legítimo, desde que às claras, aberto aos consumidores de seus veículos, embora não se deseje um Sílvio Berlusconi no Rio Grande do Sul…

Um exemplo de abuso de liberdade foi publicado no diário Zero Hora, em 21/7/1994: "Soube que os filhos de Bisol ? ou é Bichol, nunca sei ao certo, já ouvi as duas versões ? pensam em me processar porque chamei o pai de ladrão". Na época, a RBS batia continência para Fernando Collor, José Paulo Bisol era candidato à vice-presidente da República na chapa encabeça por Lula, e Zero Hora já havia suspenso Luis Fernando Verissimo por destoar da linha editorial do veículo.

O Sindicato dos Jornalistas do Rio Grande do Sul publica em seu sítio <www.jornalistas-rs.com.br/61entrevista.htm> uma entrevista com o jornalista Geraldo Canalli que confirma o raciocínio acima, em âmbito nacional.

Algo que não pode ser esquecido diz respeito à freqüência, principalmente em épocas que antecedem disputas políticas, de "plantação" de manchetes que irão adubar os debates na colheita eleitoral. Não se pode relevar o "ambiente" local das disputas políticas.

A ANJ e a Associação Gaúcha de Rádio e Televisão (Agert) comungam de um conceito muito suspeito do que seja liberdade, e particularmente, liberdade de imprensa. Como diz o texto introdutório no site da Associação Rio Grandense de Imprensa, em <www.ari.org.br/ARI/index1.htm> : "A Associação Riograndense de Imprensa (ARI) nasceu por iniciativa de um grupo de jornalistas, escritores e trabalhadores de jornais, revistas e editoras. Os profissionais desejavam constituir uma entidade de classe, defensora da democracia e da liberdade de imprensa, mas igualmente atenta às necessidades
culturais e de prestação de serviços".

A conjunção adversativa "mas" dá a entender que, para a ARI, pode haver um conflito entre a defesa da democracia e da liberdade de imprensa com a prestação de serviços. Um
episódio, pelo menos, revela essa dicotomia: a ARI perfilou-se ao lado da RBS contra o Governo do Estado e silenciou quando essa processou o Sindicato dos Jornalistas por matéria, por ela considerada ofensiva, no jornal Versão dos Jornalistas.

Outro aspecto diz respeito ao sigilo da fonte. Até a Igreja Católica, tão ortodoxa quanto uma caixinha das pastilhas Valda, volta a debater o conflito entre guardar o sigilo do confessionário e acobertar um crime. Como fica uma empresa jornalística que detém, ao mesmo tempo, também o sistema de comunicação por telefone? Poderia escutar e manter em sigilo suas fontes sem maiores problemas. Já que os atores não se identificam com suas próprias obras, ou pelo menos não medem as conseqüências de seus atos, bem que a
juíza prolatora da decisão poderia, mesmo fora dos autos, usar as palavras de Picasso para devolver o tijolo que a ANJ distribui e os seus associados publicaram: "Não, foram vocês!"

(*) URL <http://www.crestani.hpg.com.br/> # e-mail <crestani@ieg.com.br>

    
    
              

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