Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Por um jornalismo conflituoso

TEORIA DA COMUNICAÇÃO

Ismael de Freitas (*)


"Para conhecer os príncipes é preciso ser povo." (Maquiavel)


Procurarei aqui propor algumas reflexões sobre a prática jornalística baseado nos trabalhos de alguns autores marxistas e do pensamento de Freud.

Para tal empreitada terei que me valer, como linha de apoio, do trabalho de Louis Althusser (Marx e Freud), no qual há uma discussão sobre alguns pontos convergentes entre os dois pensadores. Sendo assim, o foco principal será o momento em que Althusser delimita as duas grandes descobertas que "abalaram o universo dos valores culturais da época clássica", quais sejam, o materialismo histórico e o inconsciente.

Althusser salienta que essas duas descobertas provocaram uma cisão epistemológica com respeito ao modelo de ciência adotado, que privilegiava o sujeito centrado, observador objetivo, imparcial e eqüitativo. Tanto Marx como Freud trabalharam com um método que analisa a realidade a partir de um ponto de vista específico, que tinha um lado, engajado. Ele classifica essas descobertas como conflituosas e portadoras de algum tipo de verdade, portanto, perigosas para a ideologia burguesa.

Não só Althusser percebeu essas convergências, mas uma série de pensadores do século 20 deixou clara a preocupação em salientar os aspectos semelhantes entre Marx e Freud. A Escola de Frankfurt, nesse sentido, foi o maior expoente.

Creio que não seja demais sugerir que existe um fio condutor entre os textos de Horkheimer e Adorno, Dialética do esclarecimento (Jorge Zahar), "O fetichismo da música e a regressão da audição" e O eclipse da razão (Labor do Brasil). Todos eles percebem as implicações das descobertas dos mestres, quais sejam: um certo desconforto em relação à civilização, a objetivação de conceitos subjetivos e a crise da cultura, que a princípio, fruto dos relacionamentos humanos, acaba por excluir o seu ator principal, o homem.

Direto às cruzadinhas

Tomando primeiramente a discussão em Dialética do esclarecimento, podemos sugerir que os mesmos mecanismos que são dissecados em relação ao poder do capital sobre a cultura estão presentes numa prática jornalística que privilegia antes de qualquer coisa o mercado, mas que não se limitando a isso pretende antes obscurecer do que esclarecer. O que realmente possa ser pertinente à sociedade não alcança o status de "Fato", de notícia. Há no jornalismo, assim como na cultura (tomando cuidado para não excluir a pr&aacuteaacute;tica jornalística do quadro cultural), uma absolutização do banal, do impertinente, do transitório, do efêmero. Não existe uma preocupação em pensar a notícia como algo que interfira, primeiramente, na vida do jornalista como cidadão, e conseqüentemente na comunidade. Nós nos tornamos analistas distantes de nosso objeto, fazendo coro ao modelo positivista que nos aliena de nossa vivência cultural para nos dar um falso status de "pensadores objetivos", "imparciais", e portanto, a partir da ideologia burguesa, "éticos".

Quando nos divorciamos do processo histórico, das conseqüências dos fatos e das relações culturais para empreender uma avaliação fria dos acontecimentos estamos incorrendo no erro de nos imaginarmos capazes de fazer essa mesma avaliação, não levando em conta as estruturas sociológicas e como elas moldam nosso inconsciente; nos colocamos como juízes num tribunal em que na verdade somos os réus, ou pelo menos as vítimas.

Podemos perceber claramente isso quando em nossa prática elegemos a objetividade e a imparcialidade como absolutos, ou até como alguns, mais modestamente, um "devir". Agindo assim estamos representando num teatro de horrores, ou quem sabe sabores, ou como o paranóico, estabelecemos métodos para conseguir fugir de aspectos de nossa existência que nos incomodam. Não é desconhecida a assertiva de que jornalistas vivem frustrados por cobrirem um mundo fantástico e seus salários não possibilitarem que eles vivenciem esse mundo.

Existe em nosso modelo de jornalismo o que Adorno e Horkheimer chamam de "circulo da manipulação e da necessidade retroativa, no qual a unidade do sistema se torna cada vez mais coesa". O que é o lide senão essa prática que reduz um acontecimento a uma fórmula para então satisfazer pseudonecessidades de aproveitamento máximo do tempo, sendo que as sociedades ocidentais se demoram em frente à TV não menos do que quatro horas diárias? Esse afunilamento que não permite reflexões sobre as conseqüências dos fatos da vida é o equivalente jornalístico das reflexões frankfurtianas sobre a cultura.

Podemos nos perguntar quais são nossas reações após ler a edição semanal do jornal mais importante do país, que tem os melhores colunistas, jornalistas, comentaristas, chargistas e mais uma série de "istas". Posso arriscar que uma boa parte vai dormir com o exemplar cumprindo a função de escurecer o ambiente para que as vistas possam descansar, outra parcela vai sentir-se preparado para as cruzadinhas, alguns vão direto para os classificados em busca de emprego e com certeza existiriam outras práticas minoritárias que não haveria espaço para relacionar.

Catarse ilusória

Isso evidencia que o jornal perdeu sua razão de ser para tornar-se um bem adquirido pela sociedade que já não sabe o que fazer com ele, além do clássico "embrulhar peixe". Parafraseando a Dialética do Esclarecimento: atualmente a atrofia da imaginação e da espontaneidade do consumidor cultural não precisa ser reduzida a mecanismos psicológicos. Os próprios produtos ? entre eles o jornalismo ? paralisam essas capacidades em virtude de sua própria constituição objetiva. O jornalismo é feito de tal forma que sua apreensão adequada exige, é verdade, presteza, dom de observação, conhecimentos específicos, mas também de tal sorte que proíbem a atividade intelectual do leitor se ele não quiser perder os fatos que desfilam velozmente diante de seus olhos.

Essa superposição de fatos é o combustível ideal do encobrimento, é a formula encontrada pelo capital de esconder-se e sumir das reflexões que poderiam ser feitas colocando-o como vilão. Enquanto estamos ocupados em tentar (e desistir de) entender nosso contexto, o sistema se fortalece sob nosso nariz.

Enquanto nossa capacidade de apreender o mundo e suas relações culturais é relativamente limitada, nos deliciamos em um manjar de notícias farto, mas desprovido de sabor, ou seja, significação. Pior, acreditamos que estamos informados e que esse método é ideal e chegamos a dizer que alguém que lê jornais têm vantagem intelectual sobre outrem, o que pode ser verdade em algum sentido, mas somente se essa leitura for crítica o bastante para desvendar a ideologia que se dissimula por detrás da notícia. Definitivamente isso não está ao alcance de leitor médio.

Como Adorno salienta em "O fetichismo na música e a regressão da audição":

" …todos tendem a obedecer cegamente à moda musical, como aliás acontece igualmente em outros setores."

Simplesmente não há mais a possibilidade de escolha por critérios de conhecimento e de apropriação da prática jornalística. Aceita-se como legítimo um jornal que em aproximadamente 100 páginas não diz nada de relevante. E se o diz o faz de um modo que o leitor se sinta saciado numa catarse ilusória, que o isenta de ação ou reação a determinado fato.

Aos instintos primários

Outro aspecto é o do profissional gabaritado. Gostamos de dizer que lemos "Gaspari", "Cony", "Verissimo". Contudo, são profissionais de que não podemos desmerecer, mas o problema é como nos apropriamos do que eles escrevem. Muitas vezes apenas vamos usá-los em algum momento de masturbação intelectual em que os citaremos como suporte de nossa pouca capacidade para compreender as situações, ou agregaremos ao nosso rol de piadas. Adorno diz: "… sem grande oposição o ouvinte (leitor em nosso caso) se converte em simples comprador e consumidor passivo". Fiz questão de citar nomes de jornalistas críticos para mostrar que se isso acontece com o que fazemos do que eles escrevem, o que não acontece quando nos apropriamos de escritores menos escrupulosos.

No entanto, se posso ser classificado de pessimista, vejamos qual a perspectiva de Adorno:


"Toda vez que (os ouvintes) tentam libertar-se do estado passivo de consumidores sob coação e procuram tornar-se "ativos" caem na pseudoatividade."


Nesse ponto não posso deixar de retomar o que pretendia no início. Quando não estamos do nosso lado estamos do lado do adversário, não há meio termo. Pelo menos é o que posso perceber nas entrelinhas (se é que elas existem) do método utilizado por Marx e Freud.

Parafraseando Horkheimer em outro texto, O eclipse da razão, ouso dizer que quando nos movemos tenazmente em busca de fazer em nosso pouco tempo algo útil, caímos em futilidade aterradora. Nossas práticas e conceitos são tão absolutos em nosso inconsciente que jamais nos questionamos sobre qual a real utilidade delas. Já não nos valemos de nossa subjetividade para julgar quaisquer atos ou coisas, nos entregamos à ditadura dos absolutos ditados pelo mercado, pensamos não mais pelas nossas cabeças (se é que um dia isso aconteceu), mas nos curvamos a um sistema de coisas que nos tem simplesmente como objetos com função específica, ou seja, consumir sem indagações. Poderia sonhar e imaginar o jornalismo como um fórum em que nossa percepção da realidade fosse exposta, no entanto, vejo amoldar-se esse fórum aos interesses do capital, onde não pode haver voz dissonante, a não ser que tenha a função de catarse.

Poderia ser que Freud diagnosticasse nossa época como a que voltou aos instintos mais primários de necessidade do "outro" para poder reconhecer a si mesmo. E talvez esse seja um diagnóstico correto, porque não somos livres para escolher e temos que nos apegar ao que nos é imposto sob pena de não sobreviver, assim como nos apegamos ao peito materno, ou na "maturidade" à religião.

Mundo incapaz

Com respeito à fraqueza do método clássico talvez tenhamos que concordar com Guy Debord em A sociedade do espetáculo, quando, referindo-se a esse método, coloca-o como precedente do espetáculo; vejamos:


"O espetáculo é o herdeiro de toda a fraqueza do projeto filosófico ocidental, que foi um modo de compreender a atividade, dominado pelas categorias do ver; da mesma forma ele se baseia na incessante exibição da racionalidade técnica específica que decorreu desse pensamento. Ele não realiza a filosofia, filosofiza a realidade. A vida concreta de todos se degradou em universo especulativo."


A insistência em se distanciar dos fatos para analisá-los acaba fazendo com que não os analisemos. Não conseguimos ter uma visão pertinente a partir de um ponto neutro simplesmente porque não estamos longe das implicações do contexto, muito pelo contrario, estamos no cerne dele. No entanto, preferimos representar como atores hipotéticos desprovidos de nossas idiossincrasias.

Estamos tão distantes do que produzimos que mal sabemos o que é que estamos fazendo realmente. Alguém poderia objetar dizendo que damos ao mundo o que ele quer. Então, do alto de minha arrogância e falta de modéstia, eu diria que o mundo não sabe o que quer.

(*) Estudante de Jornalismo Universidade Estadual de Ponta Grossa, Paraná