Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

É preciso começar do zero

TEMPO DAS IMAGENS

Dioclécio Luz (*)

Quando as duas torres caíram não havia nada lá dentro. Por isso, sob os escombros, não encontraram mortos sem rostos, braços sem donos, pés sem parentes; não havia nenhuma cara, nenhuma imagem. O que se viu foi somente a dor dos vivos que contaram dos seus sonhos e de suas almas heroínas. A imprensa não deu, o governo não mostrou e a história se indaga: existiram eles, os mortos? Havia realmente cadáveres incompletos nos 5 mil caixões que baixaram aos túmulos?

No tempo das imagens ? hoje, agora ? é assim: imagens são ícones e, portanto, devem ser selecionadas, ideologizadas e sacralizadas. As imagens fazem parte do show de entretenimento. Na Guerra do Afeganistão o mundo é virtual, simbolizado num tal Osama bin Laden, que ninguém viu, ninguém vê, ninguém sabe onde está. Ele, tão real para os de casa, mas ali, em sua casa, uma caverna imaterial, platônica, não existe. Lá, diz a TV nossa, a do bem, que é americana, existe a miséria, a fome, o mal. Tudo culpa desse tal de bin Laden. Felizmente os Estados Unidos invadem este espaço etéreo: chega a salvação: fiat lux! Nossos intrépidos jornalistas lêem os releases do Departamento de Estado: agora eles, os bárbaros, os afegãos, podem fazer a barba e jogar futebol. Alá é substituído por Deus. Jesus salva. A civilização chegou.

Tudo isso é falso. A peça é de mau gosto. O teatro é feito por atores canastrões. No fundo todo mundo sabe que é mentira. Mas, é o tempo das imagens e elas fazem sucesso. Aqui e acolá.

Os ícones são construídos, forjados ou recriados. O ídolo tem a lataria enferrujada? Pois então que se alise o metal. A estátua do santo está caindo aos pedaços? Pois, que se coloque betume e se pinte de azul. A mentira é como um arquétipo que baixa em todo canto. Imita-se aquilo que se é. Em vez da verdade a sua versão. Em todos os escaninhos do cotidiano. Nas artes, por exemplo.

Você liga a TV e Roberto Carlos, o cantor, faz um espetáculo ? imita Roberto Carlos há 30 anos. Ele não é ele, ele é o que foi. É um ritual canastrão. Uma caricatura do que foi. Os mesmos cabelos, o mesmo figurino, as mesmas músicas, o mesmo jeito de pegar o microfone, de cantar, dizer obrigado, jogar flores. Não. É pior porque tenta mudar a história, corrigir o herege do passado: não cantem mais essa música sacrílega, "que tudo mais vá pro inferno". Ele precisa mostrar que nunca foi um rebelde; e que é um homem santo, enquadrado, tão fiel à mulher que morreu quanto ao que ele foi e morreu também. É psicológico: a recusa da morte, a recusa em aceitar a morte; é patologia; é recusa do natural; anos de atraso; coisa do cristianismo. Jung explica. Vide Freud, Totem e tabu.

Roberto Carlos não é mais uma pessoa, ele não se considera mais uma pessoa, um ser humano comum. Ele é o ritual. Roberto Carlos não existe. Quem canta nos especiais de Natal, todos os anos, no mesmo horário e canal, é apenas um clone daquele que era bom e jovem nos anos 70. O que canta agora é um canastrão, um imitador do antigo, um burocrata. É este que assina contrato com a TV Globo proibindo-se de aparecer em outro canal. Como ele é um objeto, um objeto santo, mas um objeto, topa ser propriedade de uma empresa. E canta como quem reza, como quem repete uma ladainha da igreja que cultua, como um anúncio do novo detergente. Sem emoção. Temos que respeita-lo: é assim que ele tenta enganar o tempo e a morte.

Fossem outros tempos, o que se esperaria de cantores é que cantassem. Mas hoje não é assim. Não é preciso saber cantar para ser cantor.

Os sertanejos da moda ? devidamente modernizados como country ? não cantam. É o de menos. Sandy e Júnior se esgoelam, fazem parecer que cantam e dançam. Dá certo, são produtos da moda, são os símbolos de um tempo falso, antigo, vitoriano: jovens e bonitos, ela virgem e casta à espera do príncipe encantado; ele, garotão sarado, pronto para comer todas. Nesse tempo de música e divertimento padres-cantores dão três pulinhos para frente e mais três para trás, em nome de Jesus. Pulinhos com o devido respeito, pudicos. Depois vêm as bundas da axé-músic rebolando com a música-bunda.

O tempo das imagens é o do entretenimento. Mas nem para hedonismo serve. Todas as emoções são engarrafadas, tabeladas, é comer e jogar fora, como diria Torquato Neto. Mas quem tem imagem tem tudo. Por isso a TV Globo privatizou as alegrias nacionais: o samba, o futebol e, por fim, a telenovela. Cultura tem dono.

Nem mesmo os bons profissionais do teatro existem mais. Antonio Fagundes virou o mesmo personagem no cinema ou na TV ? é o garanhão, o homem maduro, o gostosão, o fazendeirão. É praxe. É tudo igual a eles mesmos: Fernanda Montenegro, Regina Casé, José Wilker, Lima Duarte… São atores canastrões ou meras repetições deles mesmos. Reduziram-se àquilo que o mercado queria; no que a empresa contratante quer. Não atuam, não criam; a diferença entre o personagem da novela anterior e da nova que está no ar, que é o mesmo no filme que vem aí, é o texto e a cor do terno. São artistas?

Depois que virou suco na Globo José Dumont só faz papel de nordestino. A grande atriz Marcélia Cartaxo não consegue trabalho porque é nordestina e não tem a beleza de uma estrela global. A nova atriz e o novo ator é outra coisa: caras e bundas, curvas e jeitos. Não é preciso interpretar, basta ser bonitinho ou bonitinha.

Imitação de estadista

Houve um tempo em que se lia Stanislavski, Antonin Artaud, Boal, Dario Fo, Ionesco, Becket, Grotovski… Até Shakespeare se lia. E o ator se formava aprendendo sobre voz, dicção, postura, dança, emoção, conhecimento. Claro, ainda existem escolas de teatro ensinando tudo isso. Pena que, no tempo das imagens, se a atriz não for bonita e gostosa e não firmar um contrato com a Globo não será conhecida. A cultura agora é outra: o povo vai ao teatro ou ao cinema para ver ator de novela. O poder da TV cria o ícone. O filme é ruim, a peça é um besteirol, mas se tem lá um ator global a casa é cheia. É uma mentira, os atores fazem de conta que são atores e o público faz de conta que viu uma peça de teatro. Além do mais, a mentira é geográfica: a gente fica achando que só existe ator e atriz no Rio de Janeiro e em São Paulo. Dizimaram os outros estados e os artistas que não moram no eixo.

A imagem televisiva invade o cinema criando modelos. Sobram elogios para o Auto da compadecida, o filme; mas é um equívoco, porque ele é televisão, não é cinema. Aí se explica Xuxa. Xuxa e o que ela é. Inclusive no cinema: onde o elenco do seu "filme" mais recente é formado por apresentadores de TV. O resultado é medíocre: crianças da quarta série fazem algo melhor, mais criativo. Xuxa é o tempo atual: a ignorância. É uma mulher que fala como criança ou uma criança que fala no corpo de mulher? Ou é somente uma máquina registradora?

No Fórum Social Mundial, Noam Chomsky afirmou que a futilidade democratizou-se. Ela está em toda parte. É para todo mundo. E a imagem é a embalagem do fútil. Por isso tantos canastrões. Nos esportes, por exemplo: Ronaldinho, o jogador, não joga futebol há mais de século e, no entanto, ele fala de si como se fosse o que foi um dia. Mesmo quando estava parado, cuidando do joelho quebrado, cuidando da esposa loirinha, resolveram batizá-lo de "o fenômeno". Mas ele não é. Ele agora é só uma peça publicitária. Ele fala de um outro, porque ele não é. Ronaldinho não existe. Se existe está numa caverna. Bin Laden é mais real que ele.

Talvez o povo queira isso: esse show de mentiras. Esse espetáculo com canastrões em tudo que é canto. Inclusive, e principalmente, na política. Talvez o povo queira Fernando Henrique Cardoso porque ele imita um estadista, um professor, um cara de respeito, um sujeito que quando abre a boca só sai coisas inteligentes ? imita um FHC que não existe. Mais importante do que o fato é a imagem. Por isso quando no início de fevereiro de 2002 o publicitário Washington Olivetto foi resgatado de um seqüestro que durou quase 60 dias, seu primeiro ato público foi um ato publicitário, uma imagem, soltar a pomba da paz.

A educação pela pedra

O que acontece ao país, ao mundo, é um show, mas é falso. Nem show é. É uma farsa ruim. Mas, com o aparato da publicidade e a contribuição da TV, parece até legal.

Na falsidade das imagens o SBT junta um grupo de artistas numa jaula e deixa o mundo vigiando-os. E então se inicia o espetáculo: eles fingem que estão agindo com naturalidade e nós fingimos que eles estão agindo naturalmente. Mas eles não são macacos. São seres humanos e figuras dos tempos modernos. Isto é, são competentes no uso das imagens. A mentira é esta: eles não são eles: são personagens: representam o que eles fariam se estivessem confinados numa casa. Então se inverte o contexto: não são eles que estão presos, somos nós que estamos presos a eles. Não conseguimos fugir de suas imagens. A gente gosta dessa falsa ficção. A gente espera surpresas que não acontecem, trepadas que não aparecem, brigas e futricas que acontecem quando eles querem.

O Big Brother Brasil da Globo repete a fórmula. Com mais glamour. Muito mais. Os que estão lá também representam. Mas o negócio não anda. Então a emissora alimenta brigas entre eles. E a Globo bota um dos seus melhores repórteres para fazer o papel medíocre de Chacrinha do BBB. E ele topa. O jornalismo vira entretenimento de vez. Um show. E ele, Bial, topa.

O tempo constrói templos. E bota o olho do grande irmão para nos observar dentro deles. Quem estiver fora da linha, quem não rezar a cartilha deve ser enquadrado. Quem não gostar de Coca-Cola ou Galvão Bueno deve ser eliminado. Não temos tempo, eles dizem, com a cara transgênica que Deus lhes deu. Fast food!, bradam na língua alienígena deles.

Mas a verdade é que temos tempo. Precisamos de um tempo ? para refletir, pensar, descartar este espetáculo ruim que nos obrigam a assistir e consumir. Tempo para negar o lixo, o fútil, a farsa, a mentira embrulhada em papel brilhante que oculta as realidades. Talvez tenhamos que começar do zero mais uma vez. Assim: no caminho tem uma pedra, tem uma pedra, uma pedra… Ou então, fazer a educação pela pedra. Isso já é mais da metade do caminho.

(*) Jornalista e escritor, autor do livro Trilha apaixonada e bem-humorada do que é e como fazer rádios comunitárias