Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Privilégios e riscos da ajuda estatal

SOCORRO DO BNDES

Luiz Egypto e
Letícia Nunes

Depois de muita negociação nos bastidores, as empresas
de mídia apelaram publicamente ao Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES) para ajudá-las a encontrar
uma solução factível para a crise econômica
em que estão metidas. O assunto foi tratado na última
edição deste Observatório [remissão
abaixo].

Em nota oficial divulgada em 29/9, a Associação Nacional
de Jornais (ANJ), Associação Nacional de Editores
de Revistas (ANER) e Associação Brasileira das Emissoras
de Rádio e Televisão (ABERT) anunciaram que irão
apresentar ao BNDES "uma proposta de política de financiamento
para as empresas da indústria de comunicação
social".

Não se sabe ainda como será montado esse programa,
encomendado pelas entidades patronais ? que "representam mais
de duas mil empresas de mídia nacionais, empregadoras de
dezenas de milhares de brasileiros e responsáveis pela divulgação
da informação, entretenimento e cultura em todo o
país" ? à consultoria MS&CR2 Finanças
Corporativas, empresa liderada pela executiva Maria Sílvia
Bastos Marques, ex-diretora do BNDES e ex-presidente da Companhia
Siderúrgica Nacional. Também não se tem notícia
sobre a disposição do banco estatal em liberar os
recursos. O que há, por enquanto, são especulações
sobre as possibilidades do negócio e os riscos da eventual
ajuda do BNDES a empresas privadas de comunicação.

A crise no setor de mídia no Brasil ganhou musculatura na
crise cambial de janeiro de 1999, anabolizada pelas temerárias
decisões de investimento em setores estranhos à atividade-fim
do negócio e engrandecida pelo estouro da bolha da internet,
operação na qual todas se meteram lépidas e
fagueiras. De acordo com informações apuradas pelos
repórteres Arnaldo Comin e Daniele Madureira, do Meio
& Mensagem
, três dos maiores grupos de mídia
do país ? Globo, Abril e Estado de S.Paulo ? têm dívidas
acumuladas de 5,9 bilhões de reais, dos quais 4,7 bilhões
de reais espetados na conta da Globopar e da TV Globo [leia íntegra
de matéria do M&M na rubrica Entre Aspas, nesta edição
].

O que se discute agora, quando a vaca caminha celeremente para
o brejo, não é apenas a possibilidade de um plano
de financiamento oficial ? posto que ministros do governo Lula têm
tratado o assunto como "questão de Estado" ?, mas
seus possíveis desdobramentos no bojo de uma relação,
digamos, mais íntima entre o Estado e a mídia.

Não é de hoje que as empresas estão reorganizando
suas estruturas produtivas, demitindo jornalistas e quadros intermediários,
e enxugando sem dó nem piedade os custos operacionais. No
fim do governo Fernando Henrique Cardoso, depois da pressão
organizada pelos grandes grupos de mídia, o Congresso Nacional
aprovou a emenda constitucional que alterou a redação
do artigo 222 da Constituição, o que formalmente permitiu
a participação de capital estrangeiro em empresas
de comunicação até o limite de 30% do controle
acionário.

Um ano depois da alteração constitucional, nenhum
negócio significativo foi concretizado embora as sondagens
tenham sido muitas. Uma das explicações possíveis
para o malogro das iniciativas é que a crise do setor atinge
empresas no mundo inteiro, e os prováveis investidores estrangeiros
estariam tratando de reorganizar e otimizar seu próprio patrimônio
antes de pensar em aumentá-lo.

Fio da navalha

O principal produto das empresas ora em graves dificuldades ? a
informação e o entretenimento ? constitui um fator
decisivo para a estruturação do universo simbólico
de uma nação. Por isso elas não devem ser postas
no mesmo patamar de empresas dos outros setores, em especial quando
se trata de ajuda estatal. Consolidado o eventual financiamento,
junta-se, de certo modo, o poder estatal ao poder da mídia.
Na nota divulgada semana passada, as três associações
patronais reafirmam, de sua parte, os "princípios de
total independência em relação a governos e
partidos políticos". Será?

Para Guilherme Canela de Souza Godói, pesquisador do Núcleo
de Estudos sobre Mídia e Política da UnB, "tudo
o que diga respeito ao financiamento das empresas pelo BNDES, um
órgão público, tem que ser posto em termos
de possibilidades; mas é preciso a exposição
de regras claras e públicas, no sentido de que estejam disponíveis
ao maior número de brasileiros, de preferência a todos".
Para ele, "esta é uma forma de minimizar potenciais
riscos de um negócio que possa ir além de uma aceitável
relação técnica entre um emprestador e um tomador
de empréstimo".

Para Canela, a divulgação da nota das associações
patronais foi um passo importante, mas essa questão mereceria
ser divulgada com mais transparência. "Valeria inclusive
um pronunciamento do presidente da República. Se o processo
for transparente, melhor para os cidadãos." E continua:

"É preciso lembrar que o BNDES é um banco: ele
empresta, mas cobra depois, mesmo com taxas mais baixas. As empresas
estão em crise e, por isso, dependentes. O problema é
que o dinheiro desse banco é público e a contrapartida
pode ser promíscua e penosa. Outro problema é que
os critérios para os empréstimos correm o risco de
não serem técnicos, mas políticos. O poder
de barganha do governo é muito alto e isso é um risco
para a democracia. É evidente que se a contrapartida das
empresas for além do pagamento do principal e dos juros,
haverá um problema central para a democracia. No entanto,
entendo, adicionalmente, que se essas empresas falirem também
poderemos ter um problema para a democracia. Por isso, infelizmente,
estamos caminhando no fio da navalha."

O pesquisador identifica "um problema de fundo" na falta
de regulamentação para o setor de mídia como
um todo, e da radiodifusão em particular. "A sociedade
tem dificuldades de estabelecer parâmetros na discussão
sobre um empréstimo como esse, dado que, a rigor, esses parâmetros
não existem por absoluta falta de um marco legal consistente
e adaptado a uma nova realidade ? o que não é o caso
da Lei de Imprensa e do Código Brasileiro de Telecomunicações.
E é estranho que o PT, um partido historicamente ocupado
das questões relativas à democratização
das comunicações, esteja, ao menos publicamente, calado
no que concerne a esse tema, seguindo uma postura semelhante à
da última campanha presidencial. O PT abdicou de discutir
a democratização do setor de mídia."

Transpar?ncia e legisla??o adequada

O Observatório ouviu mais três especialistas
em estudos de mídia, aos quais formulou questões semelhantes.
São eles Dênis de Moraes, professor do Programa de
Pós-Graduação em Comunicação,
Imagem e Informação da Universidade Federal Fluminense
(UFF); Venício Artur de Lima, criador do Núcleo de
Estudos sobre Mídia e Política da Universidade de
Brasília (UnB) e professor aposentado desta universidade;
e Murilo César Ramos, professor do Departamento de Comunicação
da UnB e coordenador do Grupo de Pesquisa em Políticas da
Comunicação. A seguir, suas entrevistas.


Nas páginas seguintes (clique
em
PRÓXIMO TEXTO,
no pé desta tela), leia a transcrição de
um depoimento da historiadora Alzira Alves de Abreu ao programa
Observatório da Imprensa na TV e, na seqüência,
um capítulo do livro Campos Sales, da propaganda à
presidência
, no qual o ex-presidente da República
(1898-1902) relata as ações de seu governo no
socorro do jornais da época, também encalacrados
numa crise ? guardadas as devidas proporções ?
bastante semelhante à atual.



Qual sua avaliação sobre um eventual plano de ajuda
estatal para o setor de mídia no país? O Estado deve
intervir na crise que o setor atravessa?

Dênis de Morais ? Primeiro é preciso conhecer
quais são os termos disso. Uma avaliação agora
é precipitada e corre-se o risco de formular um raciocínio
que os fatos podem não comprovar. Então, vamos ver
que tipo de financiamento o BNDES vai conceder às empresas
de mídia. Se isso acontecer, espero que o BNDES não
se transforme novamente em pronto-socorro de empresas endividadas
e mal administradas, quer sejam de mídia, de aviação
ou de energia elétrica. Considero um retrocesso o BNDES voltar
a ser pronto-socorro no momento em que o país atravessa uma
recessão, com desemprego recorde, com vários setores
sociais sofrendo cortes orçamentários para poder atender
a necessidade neoliberal de superávit primário. Espero
que o banco seja cauteloso, que leve o interesse público
na devida conta em relação a esses empréstimos.

Venício Artur de Lima ? Não é surpresa
porque havia uma série de sinais, alguns bastante explícitos,
por parte de figuras importantes deste governo de que a crise financeira
e de alguns veículos de comunicação ? e em
particular a crise da Globo ? seria encarada como uma questão
de Estado. O ministro José Dirceu (Casa Civil) tinha dito
isso, mais recentemente o ministro Miro Teixeira (Comunicações)
confirmou numa entrevista à revista CartaCapital.
Se, de fato, como tudo indica, houver aporte de capital via BNDES
para ajudar as empresas a resolver o problema que elas próprias
criaram, confirma-se mais uma vez que o Estado ? que na visão
de algumas dessas empresas já não teria mais um papel
importante a desempenhar no mundo contemporâneo ? vai resolver
o problema delas. Isso não é novo no Brasil, é
uma questão recorrente, e é uma incoerência
danada com o discurso neoliberal que essas empresas mesmas fazem.
É mais uma comprovação de como, no Brasil,
a iniciativa privada depende do Estado.

Murilo César Ramos ? Já existia uma expectativa
de que isso pudesse acontecer. Apenas materializou-se agora. A única
coisa que sabemos é o que foi dito na nota [das entidades
patronais
] e é tudo ainda muito vago. Não sabemos
nada em relação a linhas de crédito, volumes
de empréstimo etc. O governo provavelmente vai apoiar as
empresas de comunicação, pois isso já vem sendo
sinalizado há algum tempo, principalmente pelos ministros
José Dirceu e Miro Teixeira, que já disseram que a
crise no setor de mídia é uma questão de Estado.
Por hora, as questões que têm de ser pensadas não
são sobre o plano em si. O governo, se entender que esse
programa de financiamento é realmente necessário,
deve fazê-lo com total transparência. Se o setor de
mídia solicitou apoio institucional, o governo tem que levar
a sério a questão da transparência. Transparência
é discutir com a sociedade a contrapartida que as empresas
devem dar.

Por isso, duas questões devem ser pensadas pelo setor, pelo
governo e pela sociedade antes de ser feito qualquer tipo de financiamento
ou auxílio:

1. Tem que haver uma discussão
pública para ser criada uma regulamentação
atualizada para o setor de mídia. A legislação
existente é superada e não prevê qualquer tipo
de ação regulatória do governo. Deve ser feita
uma legislação que mostre os direitos e os deveres
dos concessionários, e do governo com relação
a eles.

2. Outro ponto a ser pensado:
qual é a origem desta crise? Muitas das pessoas que estudam
o setor de comunicação ? e eu sou uma delas ? apontam
como origem da crise vários problemas de gestão das
empresas. Problemas de incompetência e de negócios
equivocados.

Estas duas questões deveriam ser discutidas abertamente
por todos antes de qualquer plano de financiamento. Depois da criação
de uma nova legislação que regulamente o setor, e
se o governo chegar à conclusão de que a crise do
setor transcende os problemas de gestão, então o plano
pode ser concretizado. Mas tudo deve ser feito com muito cuidado.
E a imprensa, principalmente, deveria ser a responsável por
trazer esta discussão a público.

Como vê a relação entre o governo e as empresas
de comunicação no Brasil?

Venício Artur de Lima ? Se se considerar um grupo
como a Globo, por exemplo, que este ano, mesmo havendo redução
do volume de publicidade governamental, vai receber 57% de tudo
o que o governo gasta em publicidade, então este é
um dado da nossa realidade histórica: as empresas de comunicação
têm um vinculo muitíssimo forte, quase de dependência,
com o Estado. Isso não é novidade. Mas os problemas
que surgem desse tipo de relação são muito
grandes. O que eu acho mais sério é que o dinheiro
público está sendo usado para resolver o problema
de empresas privadas que cavaram seu próprio buraco. Por
que o dinheiro público tem que socorrer essas empresas, enquanto
há tantas outras áreas de necessidade onde falta o
dinheiro do Estado?

Murilo César Ramos ? O risco da relação
entre o poder estatal e o poder da mídia ser deturpada existe,
é claro. mas por enquanto isso é apenas especulação.
O que é importante lembrar é que a sociedade é
um agente fundamental nesse processo e, por isso, ela deve participar
da discussão.

Dênis de Moraes ? O que me intriga nessa história
é a seguinte questão: por que o governo federal tem
que ajudar empresas privadas, mal administradas, endividadas ou
necessitando de financiamento? Seja de mídia ou do que for.
Por que o governo federal tem que financiar os passivos dessas empresas?
E isso, repito, quando a sociedade brasileira atravessa um momento
de angústia, com desemprego recorde, falta de investimentos
maciços nas áreas sociais. Essa é uma indagação
genérica. Em relação à mídia,
eu gostaria de entender ? e espero que o governo Lula apresente
argumentos convincentes ? por que o governo federal tem que financiar
as dificuldades das empresas privadas. Eu sou contra o BNDES voltar
a ser pronto-socorro político de empresas privadas de qualquer
ramo de atividade que se encontrem em dificuldades, endividadas
ou precisando se capitalizar. A sociedade brasileira está
cansada de financiar o capital. É hora de financiar o trabalho,
as áreas sociais. E o governo foi eleito para isso. A tradição
brasileira de atender em primeiro lugar as elites, e deixar a sociedade
esperando o dia em que o bolo for crescer, já cansou a sociedade.

Há risco de perda de independência das empresas de
comunicação depois de auxiliadas pelo capital estatal?

Venício Artur de Lima ? A nota das entidades representativas
[ANJ, ANER e ABERT] deixou claro que não. O que há
de concreto é que essas entidades publicaram uma nota dizendo
que contrataram uma empresa especializada em projetos de financiamento
para recorrer abertamente, como qualquer outra empresa, aos recursos
públicos. Uma coisa grave é que as empresas de comunicação
não têm só a dimensão econômica:
elas são mais importantes exatamente pelo que não
é econômico, que é a dimensão simbólica.
São elas que intermedeiam no mundo contemporâneo toda
a construção da realidade, toda a representação
das coisas. Isso é muito complicado porque você resolve
o problema econômico-financeiro dessas empresas, mas elas
não são empresas puras. Elas não são
um fabricante de tijolo, por exemplo. Elas fabricam muito mais do
que isso: elas constroem toda a representação da realidade.
Num certo sentido elas criam a realidade.

O programa de governo do então candidato Lula era vago em
relação ao setor de mídia. Mas, historicamente,
o PT é favorável à democratização
dos meios de comunicação. Um plano de ajuda às
empresas pode ser considerado compatível com o objetivo de
democratizar o setor?

Dênis de Moraes ? Em vez de se preocupar em financiar
as empresas de mídia, o governo deveria se preocupar em estimular
e incentivar a diversidade cultural, descentralizar o sistema informativo
do país, criar novas formas de incentivo à produção
simbólica fora do eixo dos conglomerados de mídia.
Nós precisamos lutar pela democratização cultural
do país, e para isso é fundamental um apoio efetivo
do governo federal a novas formas de produção cultural
nacional, fora dos eixos da indústria cultural e da indústria
de mídia. Não adianta imaginar que se vai modificar
o sistema de comunicação concentrador oligopolizado
do Brasil ? não só do Brasil, mas da América
Latina e do mundo ? por meio de apoio aos conglomerados. Temos que
utilizar as verbas públicas para incentivar a diversidade
cultural e a descentralização informativa. Esse é
um dos males que o país enfrenta no campo da produção
simbólica.

No fim do governo FHC, houve uma abertura para a participação
de capital estrangeiro nas empresas de comunicação.
Isso era visto como uma espécie de salvação
para a crise. Um ano depois, nenhum negócio significativo
foi fechado. Por quê? Como avalia essa abertura?

Murilo César Ramos ? A abertura para capital estrangeiro
não foi feita de forma transparente e foi manipulada pelas
Organizações Globo. Foi um processo justo? É
claro que não. Transparência não é apenas
divulgar um nota: é discutir publicamente a questão.
Imaginava-se que a abertura seria uma salvação para
a crise, mas o capital estrangeiro não veio. E por que não
veio? Porque ele não vem para empresas mal geridas e para
um ambiente inseguro.

Dênis de Moraes ? Não sei se a medida foi tomada
apenas com a idéia de ser uma salvação. Os
vínculos das empresas de mídia com o ideário
neoliberal são muito mais profundos e consistentes do que
se imagina. Pensar que aquela concessão dos 30% diz respeito
apenas a questões de caixa é uma parte importante
do problema, mas talvez não seja a única. E o tempo
vai dizer quais as outras intenções que o Congresso
Nacional teve ? foi uma decisão do Congresso que o então
presidente FHC sancionou. Não aconteceu nada até agora,
mas vai acontecer. As empresas de mídia no Brasil seguem
a tendência internacional de crise de receita, crise de investimentos
e necessidades financeiras. Sou dos que acham que vamos ter no curso
dos próximos anos alterações na propriedade
das grandes empresas de comunicação no Brasil, dentro
da legislação dos 30%. A crise financeira coloca como
inevitável que haja associações acionárias.
Porque associações de fato e até de direito
já acontecem ? a Disney, a Warner, a Fox, a Sony, os grandes
grupos de mídia estão todos trabalhando em parceria,
em joint ventures, em alianças com as empresas de
mídia do Brasil. Isso não é novidade, basta
ligar a televisão para ver que nos desenhos animados não
há nenhuma produção nacional, são todas
produções desses conglomerados. O que está
se discutindo agora é a questão da propriedade-participação
acionária, e eu espero que o PT, que lidera uma coalizão
governamental ? conservadora, a meu ver ? não se esqueça
de que tem compromissos históricos com a luta pela democratização
da comunicação e pela diversidade cultural.

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– Luciano Martins Costa