Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Probus perdeu seu tempo

LINGÜÍSTICA & LINGÜISTAS

Attila Louzada (*)

Esta celeuma em torno do Pasquale Cipro Neto é cansativa, desperdiça tempo útil e não leva o leigo ? e uso o termo sem preconceito, apenas referencialmente ? nas ciências da linguagem a entender o que se passa de fato nesse mundo da fala e da escrita [veja remissões abaixo]. Mas a postura intolerante e desrespeitosa desse senhor é inegável. O que Marcos Bagno escreve é citação, não interpretação. Pasquale nos chama de ociosos, idiotas, relativistas (o que quer que tenha tentado dizer com isso), escreve que nossos estudos são balelas. Alguns de nós ficamos na nossa, usamos nosso espaço de professores (coitados?) nas universidades para contrapor modernas teorias lingüísticas à tradição gramatical normativa e analisar a língua em uso.

Particularmente, deixo claro aos estudantes que há normas lingüísticas adequadas a diversas condições de emprego e que à lingüística não cabe julgar o que é bom ou ruim, mas descrever o que se passa e procurar explicações. Até porque não há como controlar e impedir a fluxo natural da variação e mudança.

O caso da concordância em expressões do tipo a maioria de x + verbo é um bom exemplo. A regra é clara (copyright Arnaldo César Coelho): o verbo concorda com o núcleo do sujeito. Assim a maioria das pessoas é, e pronto. Mas não é nada categórico o uso: os falantes dividem-se entre o verbo no singular (concordando corretamente com maioria) e no plural (concordando erradamente com pessoas). O mais legal é que o manual da Folha de S.Paulo, jornal no qual Pasquale é consultor, recomenda a concordância errada como padrão nos textos do jornal: a concordância se fará com o adjunto adnominal.

Alguns autores de livros didáticos já se dão conta de "novidades" no uso do português, e deixam, por exemplo, de obrigar crianças a conjugar a segunda pessoa do plural, um ente em franca extinção na língua falada no Brasil, não importa o grau de educação do falante ou a formalidade de seu discurso. Também o assombroso "cujo" começou a sair de circulação há tempos, e vem sendo substituído pelo singelo "que" desde a primeira metade do século 19. Não sei se isso é bom ou ruim, e não importa. É assim que se dá no português falado e escrito no Brasil. Fazer o quê? Brigar com o mundo, chamar todos de idiotas, porque não sabem falar ou escrever o que defino como correto? Ou procurar identificar o que os falantes, mesmo os chamados cultos, fazem com a língua e descrever os processos que subjazem essas evidentes e inevitáveis mudanças?

Mas, em sua heterogeneidade, a sociedade treme insegura diante desse fenômeno, como se seus valores fundamentais estivessem sendo destruídos, deturpada a sua identidade cultural. Nesse quadro, agarrar-se à língua da tradição é normal. Há sempre um momento na história das línguas ? todas as línguas ? em que as coisas meio que saem do controle. Impulsionadas por fatores pra lá de identificados por estudiosos de todo o mundo, elas começam a se mover na direção de formas não cultas, consagrá-las e adotá-las, empurrando para um canto formas cultas que desaparecem ou são readaptadas a novos usos.

Bate-boca inútil

O famoso index probi está aí para não me deixar mentir. Anexo a uma gramática de Probus, no início da era cristã, recomendava, por exemplo, que não se dissesse rius, forma errada, mas flumen. O usuário do latim vulgar ? isto é, o povão das diversas classes sociais das diversas regiões onde o latim era falado então ? agradeceu a recomendação e, para encurtar a história, séculos mais tarde, a forma culta do português é "rio", de cuja origem suponho ninguém duvide. Já o vocábulo "janela" tem sua origem no diminutivo de janua, do latim, que significava "porta".

E aí? Parece que o sujeito que emendou a gramática do Probus, acrescentando-lhe uma longa lista de certos e errados, perdeu seu tempo: melhor teria feito procurando sistematizar o que de fato se usava no século 3, descrevendo a fala então contemporânea e explicando as novas formas e seu emprego.

Uma coisa garanto: não sou ocioso, nem idiota, nem invejoso. Trabalho muito, não amealhei meus poucos títulos sem estudo e competência, e tenho meu espaço de trabalho, de que muito me orgulho e que tento fazer profícuo, contribuindo honestamente para a formação de professores de línguas na minha universidade. Não vou entrar nesse bate-boca inútil, xingando pra lá e pra cá. Mas gostaria mesmo é de ver esse tema debatido na imprensa a sério, sem broncas, sem narizes torcidos nem olhos roxos porque, do jeito que vai, esse troço acaba em pancadaria.

(rolar a página)